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O objectivo deste livro não é praticar esse tipo de pesquisas psicológicas autónomas que frequentemente tentam, hoje em dia, de se substituir à análise social e histórica. O nosso campo de observação trata antes de mais das grandes forças motoras da história que têm um carácter supra-pessoal. A monarquia é uma dessas forças. Mas todas essas forças agem por intermédio dos indivíduos. A monarquia está ligada à individualidade em virtude do seu próprio princípio. Assim se justifica por si o interesse dado à personalidade de um soberano que o desenvolvimento da história confrontou coma revolução. Nós esperamos, além disso, mostrar no seguimento, pelo menos parcialmente, quais são os limites do individual no indivíduo - muitas vezes mais estreito do que parece - e como, em muitas ocasiões, o ''sinal particular'' não é outra coisa senão a marca individual de uma lei geral superior.
Nicolau II recebeu a herança dos seus avós não somente um imenso Império, mas também a revolução. Eles não lhe deixaram nenhuma qualidade que o tornasse apto a governar seja o Império, uma província ou um distrito. No fluxo da história, cujas vagas se aproximavam cada vez mais das portas do palácio, o último Romanov opunha uma despreocupação surda: dizer-se-ia que entre a sua mentalidade e a sua época se erguia uma ligeira mas impenetrável divisão.
As personalidades que frequentavam o czar relataram mais de uma vez, após a revolução, que nos momentos mais trágicos do seu reinado - quando da rendição de Port Arthur e quando a frota russa foi afundada em Tsou-Shima, e depois dez anos mais tarde, quando as tropas russas bateram em retirada, abandonando Galicia, e depois ainda dois anos mais tarde, nos dias que antecederam a abdicação, enquanto a Corte se sentia esmagada, amedrontada, consternada - Nicolau II era o único que se mantinha calmo. Ele continuou a informar-se do número de verstes (antiga unidade de medida utilizada na Rússia) por si percorridas nas suas viagens pela Rússia, evocava os incidentes de caça, anedotas relativas às recepções oficiais e, de maneira geral, interessava-se às futilidades da sua vida habitual, enquanto a trovoada rebentava sobre a sua cabeça e que o seu céu riscava-se de relâmpagos.
''O que é que isso significa? perguntava um dos generais que o abordava. Seria um, quase inacreditável domínio de si devido à educação, à fé na Providência divina, ou a uma inconsciência dos factos?''
A questão trás é já em si metade da resposta. O que se chama ''educação'' do czar, sua faculdade em dominar-se em circunstâncias muito extremas, não se explica unicamente de forma nenhuma por fingimento: o seu foro era duma indiferença profunda, duma grande indigência de forças morais, a fraqueza dos impulsos volitivos. A máscara da indiferença, que em certos meios, se nomeia ''educação'', confundia-se naturalmente com o próprio rosto de Nicolau.
O diário particular do czar tem mais valor que qualquer testemunho: de um dia ao outro, de um ano ao outro, estende-se nessas páginas, anotações perturbadoras do seu vazio moral.
“Passeei demoradamente e matei dois corvos. Ainda estava claro quando tomei chá. Passeei a pé, canoagem. Outros corvos mortos e chá”.
Tudo nos limites da fisiologia. As cerimonias de igrejas são mencionadas no mesmo tom que as bebidas.
Na véspera da abertura da Duma do Império, enquanto todo o país estava em convulsão, Nicolau escrevia:
“14 de Abril. Passeei de blusa fina e retomei canoagem. Tomei chá na varanda. Stana jantou e andou de canoa connosco. Depois, leitura.”
Nem uma palavra sobre a leitura: era um romance sentimental inglês ou um relatório de polícia?
“15 de Abril. Aceitei a demissão de Witte. Jantaram connosco Maria e Dmitri. Foram levados de carruagem ao palácio.”
No dia que se decidiu o adiamento da Duma, quando os altos dignitários assim como os círculos liberais passavampelas angústias do medo, o czar escrevia no seu jornal:
“7 de Julho. Sexta-feira. Manhã muito ocupada. Atrasámos-nos meia hora pelo almoço dos oficiais... Houve trovoada e uma atmosfera abafada. Passeio conjunto. Recebido Goremykine; assinado o oukase do adiamento da Duma! Jantei na casa da Olga e Petia. Li toda a noite.”
O ponto de exclamação que segue o anúncio do adiamento da Duma exprime o máximo das emoções do czar.
Os deputados da Duma dispersada exortaram o povo a recusar o pagamento dos impostos e do serviço militar. Várias revoltas militares tiveram lugar: em Sveaborg, em Cronstadt, nos vasos de guerra e entre as tropas; o terrorismo revolucionário dirigido contra os altos dignitários cresceu de maneira inaudita. O czar escreveu:
"9 de Julho. Domingo. A coisa está feita! A Duma fechou hoje. Ao pequeno-almoço, após a missa, as caras fechadas eram visíveis...Belo tempo. No passeio encontrei o tio Micha, que veio instalar-se aqui desde o inverno, vindo de Gatchina. Até ao jantar e toda a noite, trabalhei tranquilamente. Passeio de canoa."
Que ele tenha passeado de barco, a coisa é clara; mas no quê ele trabalhou? Ele não diz. É sempre a mesma coisa.
Vejamos mais longe nesses dias fatais:
“14 de Julho. Vestido, fui de bicicleta à casa de banhos, banhei-me no mar com deleito.” “15 de Junho. Tomei banho duas vezes. Estava muito calor. Jantar a sós. A trovoada passou.” “19 de Julho. Banhei-me esta manhã. Recepção na herdade. O tio Vladimir e Tchaguine ao almoço.”
Os levantamentos, as explosões de dinamite são indicadas por esta apreciação:
“Quanto aos acontecimentos, têm piada!” Somos fulminados por esta baixa indiferença que não chega a um cinismo consciente. “Às nove horas e meia da manhã, visitámos o regimento da Caspiana...Feito um longo passeio. Um tempo magnífico. Banho de mar. Após o chá, recebi Lvov e Goutchov.'”
Nem uma palavra para dizer que esta audiência extraordinária, concedida a dois liberais, foi motivada por uma tentativa de Stolypine de incluir políticos da oposição no seu ministério. O príncipe Lvov, que devia encontrar-se mais tarde à cabeça do governo provisório dizia então desta audiência:
“Esperava ver o soberano esmagado pelo tormento; em vez disso ele avança para mim, jovial, desenvolto, um valentão em camisa cor framboesa.”
A visão do czar não ia mais longe que a de um medíocre funcionário da polícia, com a única diferença que um polícia conhecia melhor a realidade e era menos sobrecarregado de superstições. A única gazeta que Nicolau tinha lido durante anos, e na qual ele inspirava suas ideias, era um semanário publicado, pago pelas finanças públicas, pelo príncipe Mechtchersky, um ser vil, vendido, desprezado pelo seu próprio meio, jornalista das cliques reaccionárias da burocracia. A perspectiva geral do czar em nada mudara no decurso de duas guerras e de duas revoluções: entre a sua mentalidade e os acontecimentos erguia-se sempre uma parede impenetrável de indiferença.
Não é sem razão que se chamava Nicolau fatalista. É necessário acrescentar que o seu fatalismo era completamente oposto a uma fé activa na sua “estrela”. Pelo contrário, Nicolau considerava-se ele próprio como um falhado. O seu fatalismo não era senão uma forma de defesa passiva diante do desenvolvimento histórico e acompanhava-se de arbítrio mesquinho nos seus motivos psicológicos, mais monstruosos pelas suas consequências.
“Eu quero assim, assim deve ser”, escreveu o conde Witte. “Esta formula se manifestava em todos os actos desse soberano débil que fez, unicamente por fraqueza, tudo o que caracterizou o seu reino – vertendo constantemente sangue mais ou menos inocente, e, a maior parte das vezes, sem nenhuma utilidade...”
Comparou-se por vezes Nicolau ao seu trisavô meio louco, Paulo I, que uma camarilha sufocou, com o consentimento do próprio filho, Alexandre I, o imperador “benigno”. Esses dois Romanov aproximavam-se com efeito pela sua desconfiança em relação a todos, procedendo com desconfiança em relação a eles próprios, pelas mesmas disposições desconfiadas de toda a sua poderosa nulidade, pelos sentimentos de relegados, e, poder-se-ia dizer, por uma mentalidade de párias coroados. Mas Paulo I tinha infinitamente maior brilho, as suas divagações comportavam um elemento de fantasia, ainda que demente. No seu descendente tudo é terno; sem um traço vivo.
Nicolau era não somente desequilibrado, mas desleal. Os seus aduladores diziam dele que era um sedutor, um encantador, por causa da amenidade nas suas relações com a Corte. Mas ele mostrava-se particularmente carinhoso em relação aos dignitários que ele decidia despedir: tal ministro, contentíssimo do seu acolhimento encontrava, voltando a casa, uma carta de destituição. Era para o czar uma maneira de vingar a sua nulidade.
Nicolau desviava-se com hostilidade de tudo o que era talentoso e grande. Ele não se sentia à vontade senão no meio de espíritos indigentes, desprovidos de qualquer talento, de devotos, de deliquescentes, que ele não tinha que olhar de alto a baixo. Ele tinha o seu amor-próprio, mesmo bastante refinado, mas inactivo, sem uma ponta de iniciativa, mantendo-se na defensiva de invejosos. Na escolha dos seus ministros, o seu princípio era de os tomar sempre mais baixo. Só chamava a ele gente de espírito e de carácter em caso último e se não houvesse outra saída, como se chama o cirurgião quando se está em perigo de morte. Assim foi com Witte, seguidamente com Stolypine. O czar considerava-os, um e outro, com uma aversão mal dissimulada. Logo que a crise estava resolvida, Nicolau apressava-se de se desembaraçar dos conselheiros que eram demasiado grandes para o seu tamanho. A selecção era de tal forma sistemática que Rodzianko, presidente da última Duma, atreveu-se a dizer ao czar, no 7 Janeiro 1917, quando a revolução batia à porta:
“Majestade, à sua volta, não fica um homem seguro e honesto: os melhores foram afastados ou abandonaram; só restam os que gozam de má reputação.”
Todos os esforços da burguesia liberal para discutir com a Corte não levaram a nada. Incoercível, e ruidoso, Rodzianko tentava sacudir o czar através de relatórios. Em vão! Nicolau calava-se, não somente sobre os argumentos invocados, mas sobre as impertinências, preparando em segredo a dissolução da Duma. O grande duque Dmitri, outrora favorito do czar e que devia, mais tarde, participar no assassinato de Rasputine, queixava-se diante do príncipe Iossopov, seu conjurado, do que o czar por qualquer mistura que lhe tolhia as suas faculdades espirituais.
“Segundo certos rumores, escreveu por seu lado Miliokov, historiador liberal, este estado de apatia intelectual e moral do czar era entretido pelo abuso do álcool.”
Tudo isso não passava de invenção ou exageração. O czar não tinha necessidade de estupefacientes; a “mistura” mortal, tinha-a no sangue. Mas os sinais de intoxicação pareciam particularmente impressionantes sobre o fundo dos grandes acontecimentos da guerra e da crise interior que conduzia à revolução. Rasputine, que era psicólogo, dizia brevemente do czar “que lhe faltava qualquer coisa lá dentro”.
Este homem desinteressante, ponderado, e “bem-educado”, era cruel. Não de crueldade activa, perseguindo fins históricos, de um Ivan o Terrível ou de um Pedro – que de comum entre Nicolau e eles? - mas crueldade cobarde de um rebento assustado por sentir-se condenado. Desde da aurora do seu reino, ele felicitou “os bravos do regimente de Fanagoria” que tinham disparado sobre os operários. Sempre ele “lia com prazer” como se tivesse fustigado a golpes de nagaika os estudantes “de cabelos curtos”, como pessoas sem defesa tinham tido o crânio quebrado nos progroms de judeus. Refugo coroado da sociedade, ele era levado de todo a sua alma para os fundos imundos, para os bandidos Cem Negros, e não somente ele pagava abundantemente na base das disponibilidades do Tesouro, mas ele gostava de se entreter com eles sobre as suas proezas e agraciá-los quando, por acaso, eles estavam convencidos de ter assassinado deputados da oposição. Witte, que se encontrava à cabeça do governo na época onde se reprimia a primeira revolução, escreveu nas suas Memórias:
“Quando inúteis sevícias cometidas pelos chefes desses destacamentos chegavam ao conhecimento do soberano, ele aprovava ou, pelo menos, cobria-as”.
Como o governador-geral das províncias bálticas pedia que se disciplinasse um certo capitão chamado Richter que
“procedia a execuções por sua livre vontade, sem qualquer julgamento, mesmo em relação de pessoas que não tinham oposto resistência”,
o czar notou sobre o relatório: “Ah! Esse folgazão!” Ele distribuía sem contar tais encorajamentos. Esse “sedutor”, sem vontade, sem objectivo, sem imaginação, foi mais terrível que todos os tiranos da história antiga e moderna.
O czar encontrava-se sob a influência da czarina, influência que aumentava com os anos e as dificuldades. Juntos, eles constituíam uma espécie de tudo. Esta combinação mostra já em que medida, sob a pressão das circunstâncias, o individual se completa pelo elemento do grupo. Mas convém falar primeiro da czarina.
Maurice Paléologue, antigo embaixador da França em Petrogrado durante a guerra, psicólogo refinado para académicos e para porteiros, deu um retrato cuidadoso lambido da última czarina: ansiedade moral, diz ele substancialmente, melancolia crónica, angústia sem limites, alternativas de sobressaltos de forças e de crises de astenia, meditações dolorosas sobre o mundo invisível, superstições – todos esses traços, tão fortemente marcados na pessoa da imperatriz, não são os que caracterizam o povo russo? Tão estranho que possa parecer, há um grau de verdade nesta ficção adocicada. Não é sem erro que o satírico russo Saltykov dizia dos ministros e dos governadores saídos das baronias bálticas que eles eram “alemães com alma russa”: está fora de dúvida que precisamente alógenos, não tendo nenhum laço com o povo, elaboravam a mais fina cultura do administrador “verdadeiramente russo”.
Mas então porquê o povo retribuía um ódio tão declarado à czarina que, acreditando em Paléologue, tinha tão bem adaptado a alma nacional? A resposta é simples: para justificar a sua nova situação, esta alemã tentava assimilar, com um frio frenesim, todas as tradições e as sugestões da Idade média russa, de todos o mais indigente e o mais grosseiro, num período onde o povo fazia poderosos esforços para se emancipar da sua própria barbárie medieval. Esta princesa alemã era literalmente possuída pelo demónio da autocracia: tendo saído do seu buraco provincial até à cimeira do despotismo bizantino, ela não queria por nada no mundo aí voltar. Ela encontrou na ortodoxia uma mística e uma magia misturada ao seu novo destino. Ela acreditou tanto mais inabalavelmente na sua vocação que a ignomínia do antigo regime se desvendava cada vez mais. Com carácter forte, capaz de uma exaltação seca e dura, a czarina completava o czar mole, dominando-o.
No 17 de Março 1916, um ano antes da revolução, quando o país rasgado se torcia já nas tenazes da derrota e do desespero, a czarina escrevia ao seu marido, no G. Q. G.:
“...Tu não deves deixar-te dobrar; sem ministério responsável, etc. - nada do que ele queiram. Esta guerra deve ser a tua guerra, e a paz a tua paz, em tua honra, e a da pátria, mas em nenhum caso em honra da Duma. Essa gente aí não tem o direito de dizer mesmo uma só palavra sobre essas questões.”
Era de qualquer forma um programa acabado e que, precisamente, ganhava sempre sobre as continuas hesitações do czar.
Quando Nicolau partiu para a tropa, na qualidade de generalíssimo fictício, foi a czarina que se ocupou abertamente dos assuntos do interior. Os ministros apresentavam-se a ela com os seus relatórios, como a uma regente. Ela conspirava com uma pequena camarilha contra a Duma, contra os ministros, contra os generais do G. Q. G., contra toda a gente, parcialmente mesmo contra o czar. No 6 de Dezembro 1916, ela escreveu a Nicolau:
“No momento que disseste que querias manter Protopopov, como ele se atreve (o presidente do Conselho, Trepov) agir contra a tua vontade? Dá um bom murro na mesa, não cedas, sê o mestre, escuta a tua mulherzinha e o nosso Amigo. Acredita-nos”.
Três dias depois:
“Tu sabes que tens razão. Levanta bem a cabeça, ordena a Trepov a trabalhar com ele... Dá um bom murro na mesa...”
Essas frases parecem inventadas. Mas são extraídas de cartas autênticas. E não são coisas que se inventem.
No 13 de Dezembro, a czarina volta à carga:
“Sobretudo, não a esse ministério responsável que é a marioneta de todos. Tudo se acalma e vai cada vez melhor, mas queremos sentir o teu punho. Há muito tempo, anos inteiros, que me repetem a mesma coisa“
A Rússia gosta que lhe acariciem com a chibata, escreve a czarina da Rússia, ao czar da Rússia, falando do povo russo, e isso dez semanas antes do dia que a monarquia caia no abismo.
Ainda que mais dotada de carácter do que o marido, a czarina não lhe é superior intelectualmente, ela é-lhe mesmo inferior; ainda mais que ele, ela procura a sociedade dos pobres de espírito. A estreita amizade que, durante longos anos, liga o czar e a czarina com a dama de honor Vyroubova marca o nível espiritual do casal imperial. Vyroubova dizia-se ela própria idiota, e não era modéstia. Witte, a quem não se pode recusar a segurança do golpe de vista, caracteriza-a como
“a mais banal, a mais imbecil dama do género petersburguês, vilã, igual a um inchaço sobre uma pasta de brioche”.
Na sociedade desta pessoa que cortejava servilmente os dignitários encarnecidos, embaixadores, financeiros, e que tinha portanto bastante tino para não negligenciar de encher os bolsos, o czar e a czarina passavam horas e horas, consultavam-na sobre negócios, correspondiam com ela e relacionavam-se com ela através de cartas. Vyroubova era mais influente que a Duma do Império e mesmo que o ministério.
Ela própria não era senão o médio do “Amigo” cuja autoridade dominava essas três pessoas.
“...Tal é a minha opinião particular – escreveu a czarina ao czar – mas vou tratar de saber o que pensa o nosso Amigo.”
A opinião do Amigo não é uma “opinião particular”; ela é decisiva.
“...Eu sou forte – insiste a czarina, algumas semanas mais tarde – mas ouve bem, isto é, escuta o nosso Amigo e confia-nos em tudo... Eu sofro por ti como uma criança delicada, de coração terno, que tem necessidade de ser dirigida, mas que dá atenção aos maus conselhos quando um homem está aí, enviado de Deus, que lhe diz o que deve fazer.”
O Amigo, o enviado de Deus, é Grigori Rasputine.
“...Com as preces e a assistência do nosso Amigo, tudo irá bem.” “Se não o tivéssemos perto de nós, tudo teria terminado há muito tempo, estou absolutamente convencida disso.”
Durante todo o reinado de Nicolau e Alexandra, chamaram à Corte curandeiros, magos, possuídos, angariadores não somente de toda a Rússia, mas do estrangeiro. Existia para esse efeito dignitários com títulos de fornecedores, que se agrupavam à volta do oráculo para o momento, constituindo junto do monarca uma Câmara Alta toda-poderosa. A esse meio não lhe faltava nem velhas beatas, nomeadas condessas, nem excelentes hipocondríacos por falta de emprego, nem financeiros que consolidavam gabinetes ministeriais inteiros. Considerando com ciúmes a concorrência não patenteada de hipnotizadores e de bruxos, o alto clérigo ortodoxo apressava-se a trilhar escoamento no santuário da intriga. Witte chamava o círculo dirigente, que lhe tinha partido a espinha por duas vezes, “uma camarilha leprosa”.
Mais a dinastia se isolava, mais o autocrata se sentia abandonado, mais ele ressentia a necessidade de uma ajuda do mundo espírita. Certos selvagens, para obter bom tempo, fazem revolver no ar uma prancheta agarrada a um fio. O czar e a czarina serviam-se de pranchetas para os mais diversos fins. Existia no vagão imperial um oratório bem montado com grandes e pequenos ícones e toda a espécie de objectos de piedade que foram opostos primeiro à artilharia japonesa, mais tarde à artilharia alemã.
O nível intelectual da Corte não tinha, propriamente dito, mudado muito de uma geração à outra. Do tempo de Alexandre II, apelidado “o Emancipador”, os grandes duques acreditavam firmemente nos diabos que assombram as casas e nas bruxas. Sob Alexandre III, a coisa não era melhor, mas era mais calma. A “camarilha leprosa” existiu sempre, modificava a sua composição, mudando os procedimentos. Nicolau II não criou, mas herdou dos seus avós a atmosfera de selvajaria medieval que reinava no palácio. Mas, durante essas dezenas de anos, o país transformou-se, os problemas tornaram-se mais complexos, a cultura aumentou, e o círculo da Corte encontrou-se empurrada para trás, ultrapassada de longe. Se a monarquia fez, pela força, concessões às forças novas, ela não chegava a se modernizar interiormente; pelo contrário, ela fechava-se sobre ela própria; o seu espírito medieval engrossava sob a pressão do ódio e do temor, até que tomou o carácter de um terrível pesadelo que cobriu o país.
No primeiro de Novembro 1905, isto é no momento mais crítico da primeira revolução, o czar escreveu no seu diário:
“Fizemos conhecimento de um homem de Deus, Grigori, da província de Tobolsk.”
Tratava-se de Rasputine, camponês siberiano que tinha na cabeça uma cicatriz indelével consequência de golpes recebidos por roubo de cavalos. Valorizado no momento oportuno, “o homem de Deus” logo encontrou auxiliares bem colocados, ou, mais exactamente, encontraram-lhe, e assim se formou uma nova cotaria dirigente que meteu fortemente a mão sobre a czarina e, por intermédio desta, sobre o czar.
A partir do inverno de 1913-1914, na alta sociedade petersburguesa, dizia-se já abertamente que da clique de Rasputine dependiam todas as altas nomeações, os comandos e as adjudicações. O “santo idoso”, o peregrino, tornou-se pouco a pouco, uma instituição do Estado. Vigiava-se cuidadosamente pela sua segurança e, não menos cuidadosamente, os ministérios rivais espionavam-no. Os agentes do departamento da Polícia mantinham a dia um horário da sua existência e não faltavam os relatórios segundo os quais Rasputine, em visita à familia, na aldeia de Pokrovskoie, bêbado, ter-se-ia batido violentamente com o seu próprio pai. No mesmo dia, 9 de Setembro 1915, Rasputine mandou dois telegramas afáveis, um para a imperatriz, em Tsarskoie-Selo, outro para o czar, no G. Q. G..
São épicos os relatórios dos bufos, escritos, no dia a dia, sobre as estroinices do Amigo. “
Ele voltou para casa, hoje, às cinco horas da manhã, completamente bêbado”. “O artista V. dormiu na casa de Rasputine na noite do 25 a 26.” “Ele chegou com a princesa D. (mulher de um gentil-homem da Corte) ao Hotel Astoria.”
Lê-se um pouco mais à frente:
“Ele voltou para casa em Tsarkoie-Selo cerca das onze horas da noite.” “Rasputine voltou para casa com a pr. Ch.; ele estava muito bêbado; todos os dois voltaram logo a sair.”.
No dia seguinte, pela manhã ou à tarde, visita a Tsarskoie-Selo. Um bufo, perguntando com arrependimento ao santo velho porquê ele parecia preocupado, obteve esta resposta: “Não posso decidir se deve convocar-se ou não a Duma.”
Lê-se a seguir:
“Voltou a casa às cinco da manhã, bastante bêbado.”
Assim, durante meses e anos, a mesma melodia tocava-se sobre três tons: “bastante bêbado”, “muito bêbado”, “completamente bêbado”. Essas informações de alta importância para o Estado eram coligidas e assinadas pelo general da guarda Globatchev.
O desenvolvimento da influência rasputiana durou seis anos, nos últimos anos da monarquia.
“A sua existência em Petersburgo – conta o príncipe Iossopov, que participou em certa medida nesta vida de Rasputine para se matar em seguida – era uma núpcia continua, a bebedeira e o regabofe de um forçado que teve sorte.”
“Dispus – escrevia Rodzianko, presidente da Duma – de um grande número de cartas de mães cujas filhas tinham sido desonradas por esse descarado devasso.“
Nesse mesmo tempo, é a Rasputine que Pitirim, metropolita de Petrogrado, e o arcebispo de Varnava, que lia com dificuldade, que deviam os seus lugares. É sobre Rasputine que repousou durante muito tempo o poder de Sabler, alto procurador do Santo Sínodo, foi com o acordo de Rasputine que foi despedido o presidente do Conselho Kokovtsev que não quis receber o “santo velho”. Rasputine nomeou Stürmer presidente do Conselho de ministros, Protopopov, ministro do Interior, Raiev, novo alto-procurador do Santo Sínodo, assim como outros. Paléologue, embaixador da República francesa, obteve audiência de Rasputine, abraçou-o e disse: “Eis um verdadeiro iluminado!” Ele pensava conquistar assim o coração da czarina para a causa da França. Um judeu chamado Simanovitch, agente financeiro do “santo velho”, identificado pela polícia como jogador nos clubes e como usurário, nomeou, com a ajuda de Rasputine, ministro da Justiça um homem completamente vicioso, Dobrovolsky.
“Guarda na tua posse a pequena lista – escreve a czarina ao czar, sobre as novas nomeações. O nosso Amigo pediu que tu converses de tudo isso com Protopopov.“
Dois dias mais tarde:
“O nosso Amigo diz que Stürmer pode ficar ainda por um certo tempo presidente do Conselho de ministros.”
E ainda o seguinte:
“Protopopov venera o nosso Amigo, ele será bendito.”
Um dia, como os bufos tinham assinalado mais uma vez o número de garrafas e de mulheres, a czarina confessava a sua aflição numa carta ao czar:
“Acusam Rasputine de ter beijado mulheres, etc. Lê os Apóstolos, eles beijavam todos e todas, em jeito de boas-vindas.”
É duvidoso que essa referência aos Apóstolos tenha sido persuasiva para os bufos. Numa outra carta, a czarina vai mais longe:
“Durante a leitura do Evangelho da noite, escreve ela, pensei tanto no nosso Amigo: eu vi-o como os escribas e os fariseus perseguiram Cristo, fingindo serem perfeitos... Na realidade, ninguém é profeta no seu país.”
Era hábito, nesse meio, de comparar Rasputine a Cristo, e de forma nenhuma por acaso. O temor diante das forças sussurrantes da história era demasiado penetrante para que fosse suficiente ao casal imperial um Deus impessoal e da sombra não carnal de um Cristo de Evangelho. Era-lhes necessário um novo acontecimento do “Filho do Homem”. Em Rasputine a monarquia condenada e agonizante encontra um Cristo à sua imagem e à sua semelhança.
“Se Rasputine não tivesse existido – disse um homem do antigo regime, o senador Tagantsev – teria sido necessário inventá-lo.”
Esta palavra tem mais sentido do que pensava o seu autor. Se compreendermos por “malandragem” a expressão extrema do parasitismo anti-social na escumalha da sociedade, pode-se dizer, a propósito, da aventura rasputina que é em primeiro lugar uma questão de malandragem coroada.
Inclusão | 01/05/2010 |