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Desde inícios de 1975 vinha se produzindo a progressiva desagregação das estruturas militares tradicionais e um ascenso, por vezes acentuado, do movimento de massas, particularmente no âmbito da classe operária. Esse ascenso alcançou o auge do seu desenvolvimento no mês de Novembro de 1975 e só decresceu quando a direita iniciou o seu contragolpe vitorioso.
O acontecimento que marcou o início deste último período foi a luta dos funcionários do Ministério da Comunicação Social pelo saneamento do Coronel Ferreira da Cunha, um fascista que fora ligado à polícia política do anterior regime e que agora ocupava um alto cargo nesse Ministério.
Essa luta iniciou-se no dia 7 de Novembro. A primeira iniciativa dos trabalhadores foi de colocarem-se frente ao Ministério para impedir a entrada no local do Coronel Ferreira da Cunha. Mas este piquete dos trabalhadores foi vencido por uma violenta carga da GNR e da PSP. Após esse confronto, <as massas populares, atendendo aos apelos da Comissão de luta dos funcionários do Ministério, começaram a afluir para o local. Na tarde desse mesmo dia começaram a afluir também para ali os soldados de várias unidades militares de Lisboa. O afluxo em número considerável de soldados — que não estavam armados mas estavam fardados — deu novo cariz à luta. Assim a GNR e a PSP, cercadas dentro das instalações do Ministério e temendo as possíveis consequências de uma acção repressiva, sentiram-se aliviadas quando ali chegou uma companhia conjunta de fuzileiros navais e militares do RALIS, que passaram a «proteger» as instalações.
Dessa forma, e mais uma vez, o governo viu-se obrigado a «recuar», e suspendeu temporariamente o Coronel Ferreira da Cunha, «até a conclusão de um inquérito que seria aberto para apurar as acusações que lhe eram movidas».
Naquela mesma noite, porém, quando ainda estava concentrado no Ministério da Comunicação Social um grande número de populares e soldados, deu-se a destruição dos emissores da Rádio Renascença ordenada pelo Conselho da Revolução.
Poucos dias depois iniciou-se a luta dos operários da construção civil. Essa luta, cujo motor inicial foram reivindicações puramente económicas, ultrapassou rapidamente os seus objectivos iniciais.
No entanto, estando conduzida e rigidamente controlada pelo PCP, não poderia ultrapassar os limites reformistas, como efectivamente aconteceu.
Os operários da construção civil queriam reivindicar aumentos salariais perante o Ministro do Trabalho. Como este mandou fechar as instalações do Ministério e remeteu o assunto para o Conselho de Ministros, a massa operária (mais de cem mil manifestantes, segundo cálculos imparciais) cercou o Palácio de São Bento, residência oficial do Primeiro Ministro e sede da Assembleia Constituinte.
O cerco durou duas noites completas e tanto o Primeiro Ministro como os ministros e deputados que se encontravam dentro do Palácio não puderam sair de lá antes que os operários vissem atendidas as suas principais reivindicações.
Nessa ocasião, se bem que os soldados tenham se recusado a reprimir os operários, não lhes prestaram nenhuma solidariedade activa. Não houve contactos entre eles embora nessa época (13 de Novembro de 75, data do início do cerco à São Bento) a luta dos soldados também estivesse em ascensão, como era o caso dos soldados paraquedistas, que logo a seguir veremos. Isso se deveu ao facto de estar por trás das justas reivindicações dos operários da construção civil a manipulação política do PCP, veiculada através do sindicato da Construção Civil. Esse partido tinha todo o interesse em não permitir que as lutas sectorizadas que então estavam sendo levadas a cabo fossem coordenadas dentro duma visão de conjunto, pois isso poderia provocar a ruptura do equilíbrio social existente, já de si extremamente instável, o que não era de maneira nenhuma de seu interesse. O jogo de tensões promovido pelos reformistas não contemplava uma mudança do sistema vigente mas apenas o aumento de sua influência na gestão do Estado burguês.
Depois de dinamitação da Rádio Renascença os paraquedistas rebelaram-se e sanearam 123 oficiais da sua unidade militar. A partir daí entraram em auto-gestão. Note-se que, antes de se rebelarem os paraquedistas que haviam participado na operação de destruição da Renascença tomaram por conta própria a iniciativa de montarem guarda ao jornal «República» na disposição de impedirem que se verificasse uma acção do género contra esse jornal, assumindo assa iniciativa como «um acto de autocrítica».
Baseados no precedente do caso do RASP, os paraquedistas iniciaram um processo de luta tendente a sanear também os comandos reaccionários da Força Aérea, os quais, por sua vez, responderam dissolvendo a unidade militar contestatária, a Base de Tancos. Imediatamente após esta medida do comando da Força Aérea os paraquedistas avançaram na sua luta e ocuparam, numa só noite, diversas bases aéreas e até o Estado Maior de sua Arma.
Muito se tem especulado sobre a sublevação dos soldados paraquedistas. A controvérsia consiste em definir se essa sublevação visava apenas a resolver problemas internos da Força Aérea ou se, pelo contrário, tinha objectivos mais gerais. Em todo o caso, ao examinar o comportamento do PCP em relação aos acontecimentos talvez se possa lançar algumas luzes sobre essa questão.
Desde a formação do VI Governo Provisório, no qual o PCP ficara absolutamente subalternizado (fora-lhe concedido um Ministério de menor importância — o do «Equipamento Social e do Ambiente» — e algumas Secretarias de Estado), este partido iniciou uma táctica de cerco ao governo em todas as frentes. Com a sua acção visava dobrar o governo às suas exigências de maior participação no elenco ministerial e, ao mesmo tempo, modificar a composição do Conselho da Revolução, o que permitiria aumentar a sua influência nos organismos centrais de poder. Foi assim que iniciou um processo de movimentação de massas, de greves e ameaças de greves e, em cada acção desenvolvida, chamou às negociações e colocou as suas exigências: «mais oficiais revolucionários para o Conselho da Revolução» e formação de um novo governo, que excluísse o PPD e que fosse composto pelo Partido Socialista, pelo próprio PC, e por militares progressistas.
Enquanto a direita promovia concentrações de massas em todo o país, numa busca desesperada de apoio social ao governo, o PC continuava a fechar o cerco. As greves e manifestações dos operários metalúrgicos e dos operários da construção civil, a paralisação parcial do trabalho em todo o país, as manifestações e concentrações populares — principalmente em Lisboa e no Alentejo — todas apontavam para o mesmo objectivo e davam a impressão de que o PCP acabaria por se sentar triunfalmente à mesa de negociações. E o PC realmente seguia confiante e triunfante na sua política.
É nesse contexto que tem lugar a acção dos paraquedistas de Tancos. Esses militares exigiam precisamente a demissão do comando da Força Aérea e a destituição dos representantes dessa arma no Conselho da Revolução, o que, evidentemente, se tivesse sido possível, viria a mudar a correlação de forças, em prejuízo da direita, nesse organismo.
Quando os paraquedistas iniciaram o processo de luta e, face à medida de dissolução da unidade tomada pelo Estado-Maior da Força Aérea, entraram em regime de auto-gestão contaram com o apoio imediato da Marinha e de várias unidades militares da Região Militar de Lisboa — particularmente dos fuzileiros navais e do RALIS. Assim resolveram imediatamente o problema da alimentação criado com o corte de fornecimento de alimentos pelo comando superior da Força Aérea. Ressalte-se que o número de paraquedistas concentrados na Base de Tancos era superior a 1.000 e que esse foi aumentado dia-a-dia com a chegada de paraquedistas de outras Bases e ex-paraquedistas solidários com a sua luta. No momento mais agudo da luta os militares concentrados em Tancos ultrapassaram a cifra dos 3.000. Mas o apoio das outras unidades militares não parou aí: a Marinha colocou à disposição dos paraquedistas uma fragata que os transportou até ao navio que chegava de Angola com seus camaradas e que não havia atracado no porto para impedir que houvesse um contacto directo entre eles — os paraquedistas esperavam seus colegas no cais para explicar-lhes os motivos de sua luta e solicitar-lhes o apoio; o RALIS, por seu turno, havia transferido armas para os paraquedistas. Além do apoio de outras unidades militares, os paraquedistas contavam também com apoio activo de organizações operárias, a maior parte das quais afectas ao PCP, como o Sindicato dos Rodoviários de Lisboa, o Sindicato dos Metalúrgicos e o Secretariado das Comissões de Trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa.
Perante esta situação, a direita compreendeu que não podia esperar mais tempo para dar o golpe que preparava. Possuindo já um Estado-Maior golpista montado e uma coordenação mínima, resolveu jogar a carta definitiva.
Vejamos, porém como se desenvolveram os acontecimentos em outras frentes.
No dia 19 de Novembro o Presidente Costa Gomes conferenciou com o embaixador norte-americano, Carlucci enquanto Pinheiro de Azevedo teve um encontro com o embaixador soviético, Kalinin. Esses encontros, que poderiam ser considerados rotineiros em tempos normais, tinham agora um significado «especial, dado o ambiente de tensão em que se vivia e as graves opções que estavam em jogo. As influências externas exercidas no processo revolucionário português, bem como os condicionamentos por elas impostos, personificavam-se na presença desses embaixadores. Nesse mesmo dia o VI Governo suspendeu as suas funções alegando falta de autoridade para governar. O lock-out governamental manter-se-ia, afirmava o governo, até que esse problema fosse resolvido.
No dia 20 de Novembro Álvaro Cunhal interrompeu intempestivamente uma viagem a países do Leste Europeu e, ao chegar a Lisboa, declarou que havia que «fazer todos os esforços possíveis para evitar um confronto e encontrar uma solução política para a crise político-militar». Entretanto, nesse mesmo dia, o Secretariado das Comissões de Trabalhadores da Cintura Industrial de Lisboa, apoiado pela Inter-Sindical e todos os sindicatos controlados pelo PC, chamou a uma paralisação geral do trabalho e à concentração frente ao Palácio de Belém. Nessa concentração, motivada pela auto-suspensão das actividades do Governo, o PC, mais uma vez, exigia a formação de um novo governo e «mais oficiais revolucionários para o Conselho da Revolução».
A solução política proposta por Cunhal não foi, porém, levada em conta pela burguesia. No dia 21 de Novembro o Conselho da Revolução destituiu o General Otelo Saraiva de Carvalho do Comando da Região Militar de Lisboa e nomeou Vasco Lourenço, um oficial do «grupo dos nove», para aquele posto, visando com isto resolver o problema de falta de autoridade alegado pelo VI Governo. A maioria das guarnições dessa Região Militar não aceitou essa nomeação, evidentemente, pois isso equivaleria a reconhecer de antemão a vitória da direita. A partir daí o impasse tornou-se definitivo.
Quando os paraquedistas tomaram as bases aéreas, nas primeiras horas da manhã de 25 de Novembro, visavam, como já vimos, a resolução do conflito interno que existia no interior dessa arma. Mas a direita aproveitou o impacto da situação criada e accionou o seu dispositivo.
No decorrer do dia 25 a situação manteve-se confusa mas, no início desse mesmo dia, o PC já havia recuado, desmobilizando-se logo a seguir e comprometendo todo o seu esquema militar na capitulação. A Marinha, onde o PC exercia uma influência determinante, ficava assim neutralizada.
A maioria das unidades militares de Lisboa, por sua vez, situadas quase todas no âmbito da esquerda revolucionária, também ficaram absolutamente paralisadas. Havia uma coordenação embrionária entre determinado número de oficiais progressistas que deveria agir no momento em que a direita desencadeasse um golpe de Estado. Esta coordenação, porém, que não contava com a participação da classe operária, quando constatou que o PC e, através dele, a Marinha de Guerra, tinham-se posto de lado, não funcionou e as guarnições militares revolucionárias, isoladas umas das outras, foram-se rendendo progressivamente.
A posição dos militares progressistas em relação ao PC era bastante ambígua. É certo que esses militares chegaram a elaborar um documento de alternativa revolucionária (o documento do COPCON, que tinha sido actualizado e apresentado novamente em 20 de Novembro, numa manifestação frente a Belém) mas na prática, quase todos eles achavam que não seria possível avançar sem o PC ou, em outras palavras, que o PC seria forçado a apoiá-los no momento decisivo. Essa posição se devia ao facto de que o PC era quem, dentre todas as forças políticas, tinha o maior poder de mobilização de massas, pelo menos em Lisboa. Mas diga-se de passagem que não eram só os militares progressistas que pensavam dessa maneira; boa parte da esquerda revolucionária mantinha o mesmo tipo de ilusões em relação ao reformismo.
É certo que a cúpula «comunista», devido ao seu próprio carácter, não teria condições de, naquelas circunstâncias decisivas, opor-se frontalmente a um avanço da esquerda revolucionária rumo à tomada do Poder. Aliás, os reformistas não tinham condições de encarar o problema do Poder nem mesmo face à direita, como se comprovou na prática. Daí porque o problema não consistia em esperar um apoio do PC, que nunca poderia ter-se dado, mas sim em contar com a sua neutralização nos momentos decisivos e com as tentativas de negociações que logo a seguir ele viria propor aos vencedores, fossem de que lado fossem.
Depois da paralisação da esquerda revolucionária no âmbito militar e da neutralização da Marinha resultante do recuo do PC, os soldados paraquedistas, já completamente isolados, ainda resistiram durante três dias, mas acabaram também por render-se. O golpe da direita estava consumado. Os líderes dos paraquedistas, bem como a maioria dos oficiais progressistas de Lisboa, foram presos e a burguesia iniciou imediatamente o processo de recuperação das Forças Armadas em todas as suas instâncias.
Inclusão | 19/09/2019 |