O Poder Popular em Portugal

M. Vieira e F. Oliveira


IV - O MFA e o Processo de Organização e Luta das Massas


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Os avanços do processo revolucionário e as transformações verificadas no seio do MFA, sobretudo a partir da tentativa do golpe contra-revolucionário de 11 de Março de 1975, tiveram importantes reflexos na dinâmica das lutas e da organização da classe operária.

Em princípios de 1975 já se revelavam grandes avanços na politização e organização das massas, especialmente nas empresas com maior número de trabalhadores e naquelas com maior experiência de luta. O processo de luta foi actuando como depurador e em muitas empresas as Comissões de Trabalhadores ou alguns de seus membros que deixaram de representar os interesses da classe foram substituídos em assembleias. Nessa época houve uma primeira tentativa de criar um organismo coordenador das Comissões de Trabalhadores na área da Grande Lisboa. Esse organismo, a Inter-empresas, foi quem promoveu a primeira manifestação unitária e apartidária, no dia 7 de Fevereiro de 1975, em Lisboa. A Inter-empresas limitar-se-ia, no entanto, a essa realização. Logo após a grande jornada de 7 de Fevereiro, as tentativas de controlo e instrumentalização partidária a que foi submetida conduziram-na a uma rápida dissolução. À medida que se intensificava a luta sectária das organizações partidárias pelo seu controlo, foram-se desprendendo as Comissões de Trabalhadores, até que a Inter-empresas se dissolveu. As Comissões de Trabalhadores, entretanto, continuaram à frente das lutas dos trabalhadores, embora essas lutas não contassem com uma coordenação que ultrapassasse os limites da própria empresa.

O facto das Comissões de Trabalhadores não terem conseguido estruturar uma direcção central autónoma foi uma das principais causas dos sérios revezes que o projecto político do Poder Popular veio a sofrer. O movimento operário, devido a isso, não conseguiu estabelecer um ponto central de convergência nem para si, nem para os partidos políticos que gravitavam ao seu redor. Aliás, essa dinâmica deu-se quase sempre num sentido contrário, pois foram os partidos que procuraram trazer para o seu interior as organizações unitárias de base. O resultado foi que os organismos populares, tanto civis como militares, não puderam coordenar-se com uma perspectiva própria nem sequer a nível local. Desta maneira as organizações da pequeno-burguesia radicalizada conseguiram transportar suas divisões conceituais para o seio das massas e, em alguns casos, chegaram até a impor-se como mediadores entre as organizações unitárias dos operários e dos oficiais progressistas e soldados* Desta forma, pode-se dizer que, embora os organismos de Poder Popular fossem autónomos e unitários na base, não o eram na cúpula. O movimento operário praticamente dividiu-se em tantas tendências quantas eram as organizações políticas que tinham influência e implantação no seu interior. O pano de fundo desta realidade é, logicamente, a relativa imaturidade política da classe operária portuguesa.

Mas, em Portugal, o aparecimento do Poder Popular e a relativa afirmação que as organizações autónomas chegaram a alcançar em determinados momentos, apesar de não ter conseguido estruturar uma direcção autónoma e consequente, que pudesse colocar correctamente o problema do Poder, contou com outro factor fundamental para o aprofundamento do processo, que foi a presença dos militares (tanto a cúpula como a base das Forças Armadas), no cenário da luta de classes. Este factor, que produziu situações de enorme complexidade, tanto para a análise como para a prática da esquerda revolucionária, e da classe operária, foi o que forneceu os aspectos mais singulares deste processo e, por isso, deve ser visto detalhadamente.

Os primeiros contactos entre trabalhadores e mitares deram-se logo depois do «25 de Abril», quando a vaga das lutas operárias começou a intensificar-se e os homens que haviam desencadeado o golpe de Estado tentaram ainda desempenhar o papel de mediadores nesses conflitos sociais, Não o conseguiram, evidentemente, e a sua posição foi por vezes bastante ambígua, ora se colocando ao lado dos patrões, ora se deixando convencer pela justeza da luta dos explorados. Registaram-se, inicialmente, algumas atitudes repressivas do MFA, mas pode-se dizer que o resultado final dos contactos havidos entre militares e operários significou um apreciável avanço para o processo revolucionário, pois a compreensão do fenómeno da luta de classes foi veiculada para dentro dos quartéis.

Nesta fase do processo que estamos a analisar começaram a haver também os primeiros contactos das nascentes Comissões de Moradores com algumas unidades militares, principalmente aquelas que estavam sob a jurisdição do COPCON. O contacto das unidades militares com as populações das zonas onde se situavam, realizando sessões de esclarecimento político, tomando conhecimento dos problemas que a população enfrentava e participando na sua solução também contribuiu para impulsionar a organização das Comissões de Moradores. Ao mesmo tempo, estes contactos tiveram fundamental importância na consciencialização política dos militares e, por sua vez, impulsionaram indirectamente a organização nos quartéis. Assim, foram-se rompendo os muros que separavam os militares do povo.

As Comissões de Moradores começaram a surgir em fins de 1974 e, desde a sua criação, centraram as suas lutas na solução de problemas habitacionais. Até princípios de Março de 1975 essa forma de organização não havia ainda se generalizado, limitando-se quase exclusivamente a algumas zonas da grande Lisboa, especialmente nos lugares onde já existia um contacto e uma colaboração mais estreita entre os moradores e as unidades militares. Essas zonas eram também aquelas onde a população enfrentava maiores problemas habitacionais, ou seja, onde havia uma maior concentração proletária. É natural, portanto, que as primeiras Comissões de Moradores fossem menos heterogéneas na composição social de seus membros.

Paralelamente a isso gestava-se dentro dos quartéis um processo de democratização e organização a todos os níveis, quase sempre incentivado pelos oficiais progressistas. Várias unidades militares já haviam instituído a prática da realização de assembleias onde oficiais, sargentos e soldados discutiam os problemas políticos nacionais, os problemas da unidade militar e da população da zona onde estavam inseridos. Já existiam numerosas formas organizativas, que variavam de um quartel para outro: equipas e Comissões de Soldados, Centros Culturais e Assembleias de Delegados de Unidade (ADU). Os sargentos já possuíam uma organização a nível nacional — a Comissão Nacional de Sargentos, com estatutos próprios. Duas importantes unidades militares do exército na região de Lisboa — o Regimento de Artilharia Ligeira N.° 1, RAL-1 (que depois do 11 de Março, por ter aumentado o seu potencial bélico, passou a chamar-se simplesmente Regimento de Artilharia de Lisboa, RALIS) e o Regimento de Engenharia N.° 1, RE-1, destacavam-se entre as que mais longe haviam levado o processo de democratização e organização. Foi essa, aliás, uma das razões principais do ataque ao RAL-1 no dia 11 de Março. Os golpistas diziam, então, que esse quartel estava em «auto-gestão».

As campanhas de Dinamização Cultural levadas à prática pelo MFA em quase todo o norte do país foram outro importante factor de consciencialização política dos militares, pois, ao participar nelas, muitos deles tiveram oportunidade de tomar contacto directo com o atraso e a miséria das populações do interior e discutir com o povo os seus problemas.

As primeiras Campanhas de Dinamização Cultural limitaram-se a sessões de esclarecimento político e discussões dos problemas concretos da população e, por isso mesmo, contribuíram muito mais para a consciencialização política dos militares do que para a politização e organização das populações. No campo, exceptuando o proletariado agrícola do Alentejo, o nível de organização era muito baixo e o atraso em todos os aspectos era gigantesco.

As campanhas de Dinamização Cultural não podiam, evidentemente, romper em dias o obscurantismo sedimentado ao longo de séculos. Além disso, enquanto os militares passavam pelo lugar alguns dias, ali viviam permanentemente os agentes da opressão e do obscurantismo: o pároco da aldeia e o cacique local.

O Boletim Informativo do MFA n.° 24 (25/Julho/1975) assim descreve essas Campanhas e alguns dos seus resultados:

«Em 17 de Maio (1975) iniciou-se mais uma campanha de dinamização promovida pela CODICE (Comissão Dinamizadora Central), conhecida por ‘Maio-Nordeste’, centralizada em Bragança onde funciona o seu Centro Director, e em moldes totalmente diferentes dos anteriores.

«AS CAMPANHAS ANTERIORES — Estas revestiam-se de um carácter de esclarecimento sobre o que é o MFA, os objectivos da nossa revolução, e o significado das diferentes ideologias em presença e veiculadas pelos partidos. Desempenharam um papel importante, colocando o militar português, nomeadamente oficiais com uma origem de classe pequeno-burguesa, em contacto com a realidade do nosso povo a miséria em que o fascismo o deixou, deficientemente alimentado, ele que tudo produz, sem hospitais, sem estradas, sem água, sem luz, sem instrução. Levou muitos deles a compreender que a revolução se faz no meio do povo e não apenas com a queda de um governo burguês, e sobretudo mostrou profunda necessidade de voltar de novo ao Povo, não apenas para esclarecer mas para com ele trabalhar, não de uma maneira paternalista e demagógica, mas com humildade revolucionária, utilizando constantemente a crítica e autocrítica nessa actuação.

«AS CAMPANHAS ACTUAIS — Todavia não interessa apenas contribuir para a resolução dos problemas. A perspectiva fundamental é que o povo reconheça, ao resolver esses problemas, com o MFA a acompanhá-lo, que tem a capacidade a a força para continuar mais tarde sem o MFA mas com a confiança e a força que este lhe imprimiu. Por isso se reconheceu também como fundamental criar, na prática e na acção concreta, os meios para continuar, e que assentou na organização das populações, dentro do espírito do que foi aprovado na Assembleia do MFA, conduzindo à criação de um poder popular, embrião, desde já, de um aparelho de Estado de tipo novo.

«O MFA lançou com esta perspectiva a já citada campanha do ‘Maio-Nordeste’. Mais concretamente, é desta forma que se criará no povo a capacidade de distinguir os seus inimigos reais, aqueles que aproveitando-se do isolamento, do seu poder económico, o mantém numa situação de humilhação, fazendo-o crer que o MFA não se interessa pela realidade que os cerca. Esses inimigos, que hostilizam o processo revolucionário, e que são os intermediários, os grossistas, alguns médicos e grandes proprietários agrícolas e comerciantes, apropriando-se de uma parte importante do valor criado na circulação dos produtos, e que utilizam para sua defesa o aparelho administrativo das câmaras e das juntas de freguesia—e o aparelho ideológico que é a religião — serão, com o avanço dessa capacidade de organização, inexoravelmente reconhecidos, e então afastados sem qualquer apelo, dos lugares que ocupam. (...)

«ALGUNS RESULTADOS — Após ter-se apercebido dos problemas mais urgentes e concretos com que se defrontam as populações do nordeste transmontano, após ter efectuado uma real aproximação às populações locais, a equipa de dinamização cultural e acção cívica destacada para a Campanha Maio-Nordeste, subdividindo-se em equipas concelhias (doze), a viverem junto das populações nas sedes do concelho e nas aldeias, tem procurado fomentar e fortalecer as organizações populares, em torno de objectivos concretos e directamente relacionados com as condições reais de vivência das populações.

«A concretização dessas organizações populares, a resolução efectiva de alguns problemas concretos locais (resolução efectiva já por essas organizações populares, em especial por Comissões de Aldeia), acelerou a sua constituição e o seu desenvolvimento, desbloqueando as mentalidades e estando a conseguir a integração progressiva das populações na dinâmica do processo revolucionário, processo revolucionário que delas não pode prescindir, nem colocá-las em lugar secundário.

«No entanto, a constituição de organizações unitárias de base e o seu funcionamento apontando para a defesa dos interesses das classes mais desfavorecidas (com a força de essa defesa não ser feita por intermediários) não é só (muito pelo contrário) um problema de organização associativa de alguns indivíduos em torno de alguns objectivos: é essencialmente um problema político, um problema de luta contra toda uma série de privilégios que alguns (muito poucos) possuem à custa da exploração e opressão das massas trabalhadoras, um problema de luta contra toda a espécie de obstáculos e boicotes que tais privilegiados (eles já, e desde sempre, organizados) levantam perante as massas trabalhadoras, cada vez mais conscientes da necessidade da sua união. É, concretamente, um problema de luta de classes. (...)»

As incursões que as equipas do MFA fizeram pela província, especialmente no Nordeste Transmontano, que é uma das regiões mais pobres e atrasadas do país, deram poucos resultados práticos, mas em alguns casos chegou-se a constituir cooperativas e órgãos de Poder Popular local, a que se denominou «Conselhos de Aldeia», os quais viriam a ser, logo a seguir, «institucionalizados» no «Documento-Guia da Aliança Povo-MFA» como organizações unitárias de base.

Ao empreender essas campanhas certamente estava presente nos homens do MFA o exemplo dos Movimentos de Libertação das ex-colónias portuguesas da África e o tipo de trabalho político que os guerrilheiros faziam junto às populações das zonas onde actuavam. O modelo não poderia ser copiado, evidentemente, mas algumas exigências imediatas levaram a que esse tipo de tarefas fosse realizado pelos militares.

Em primeiro lugar não se pode deixar de levar em conta os imperativos de ordem político-militar que estavam em jogo. O norte e o nordeste do país, embora situados bastante longe dos centros de decisão, nunca constituíram motivo de preocupação para o regime salazarista. Sendo a população extremamente atrasada e submissa, submetida quase que incondicionalmente ao rígido controlo religioso da Igreja Católica, haviam muito poucas tropas e forças militarizadas na região, dada a inexistência de conflitos sociais. Após o «25 de Abril», porém, a situação inverteu-se completamente. A Espanha passou a representar um inimigo potencial, pois foi lá, principalmente na parte que faz fronteira com o norte e o nordeste de Portugal, que se refugiaram os adversários de primeira hora do novo regime. Tomava-se necessário, pois, ganhar essas populações para o processo revolucionário para diminuir a base de apoio da contra-revolução, particularmente naqueles lugares onde os seus agentes pudessem encontrar um «habitat» quase natural.

O Partido Comunista já havia tentado iniciar, logo após o «25 de Abril», um processo de implantação nessa região, através de uma campanha de alfabetização levada a cabo por equipas de estudantes. Não o conseguiu, e esse insucesso viria a custar-lhe bastante caro posteriormente, pois foi aí precisamente que a maioria das suas sedes foram incendiadas e saqueadas pela reacção.

Mas a conclusão mais importante que se pode tirar dessas campanhas de dinamização é sobre a própria posição do MFA no processo revolucionário. Com efeito, o Movimento, enquanto existiu, e enquanto esteve hegemonizado pelo seu sector progressista, desempenhou por vezes um papel de verdadeira vanguarda do processo. E mesmo quando isto não acontecia, essa era a ideia de que estavam imbuídos os seus principais activistas. Sendo uma organização por natureza apartidária, mas tendo ao mesmo tempo que conviver com um leque de partidos políticos que se reivindicavam da classe operária, era natural que o MFA buscasse formas adequadas de organizar o povo e de ligar-se a ele directamente, contornando a presença dos partidos. É assim que assumiu a ideia das organizações autónomas de massa e procurou dinamizá-las nas áreas onde actuou.

Na verdade, o próprio MFA foi também uma organização autónoma surgida dentro de um determinado sector da sociedade para levar adiante um processo de luta específico (anti-colonialismo e anti-fascismo). Mas, cumpridos que foram esses objectivos, bastante amplos e genéricos, tomou-se inevitável que o Movimento, projectado para muito mais além de suas finalidades originais, não pudesse continuar a ser um todo coeso e homogéneo. O problema consistia em que o MFA, apesar de suas ambiguidades e contradições, foi praticamente levado algumas vezes a desempenhar um papel de organização de vanguarda no processo revolucionário. Para isso contribuiu, evidentemente, o facto de ter sido a única organização realmente responsável pela queda do regime fascista, bem como o facto do movimento operário ser, ainda, bastante débil política e ideologicamente e incapaz, portanto, de projectar uma vanguarda extraída do seu próprio meio e que estivesse à altura das transformações que a acelerada derrocada das velhas estruturas fascistas impunham à sociedade portuguesa. Por outro lado, a posição de vanguarda do Movimento advinha muito mais da posse das armas — fonte e base de todo e qualquer poder — do que da sua identificação com a classe revolucionária e da sua capacidade real de liderança. Além disso, seria necessário considerar também a sua extracção de classe, predominantemente pequeno-burguesa, e o facto de que o contacto de seus activistas com o fenómeno da luta de classes deu-se de uma maneira desordenada e depois do «25 de Abril». Todos esses factores determinaram a incapacidade histórica do Movimento em liderar um processo revolucionário complexo e agitado, que requeria a cada momento transformações de carácter socialista na sociedade.

Apesar disso, pode-se dizer que o MFA cumpriu em boa medida a finalidade para a qual tinha sido concebido (derrubada do fascismo e descolonização). Se não conseguiu conduzir o processo revolucionário até o final é porque realmente a sua natureza mesma não lhe possibilitava essas condições. Ele era apenas uma parte do corpo; nunca poderia ter sido a cabeça do conjunto de forças sociais que deveriam fazer a revolução. Enfim, não são nas falhas que o Movimento apresentou, mas sim nos problemas inerentes ao movimento operário, que devem ser procuradas todas as causas dos percalços sofridos pelo processo político português.

Porém, se o MFA não conseguiu liderar a Revolução Socialista em Portugal, não se pode negar o papel que desempenhou, tanto ao nível da cúpula — Assembleia do MFA — como ao nível de certos organismos intermediários e bases — COPCON e ADU’s — na dinamização e tentativas de estruturação dos organismos de Poder Popular em todo o país. Isto foi possível, como já vimos, devido ao facto de que o próprio Movimento era também uma organização unitária e que não podia, consequentemente, instrumentalizar as suas congéneres. E o papel de direcção que por vezes desempenhou, com todos os erros e deformações daí decorrentes, deve ser visto, fundamentalmente, no contexto da debilidade do movimento operário em geral e da esquerda revolucionária em particular.

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A dinâmica acelerada que assumiu o processo revolucionário a seguir à tentativa de golpe contra-revolucionário de 11 de Março ampliou consideravelmente o campo ao desenvolvimento das lutas e da organização das massas. As medidas políticas e económicas adoptadas ao nível dos centros de poder, aliadas ao novo ascenso do movimento de massas, criaram as condições propícias para o rápido aprofundamento do processo revolucionário. Com efeito, as nacionalizações da banca e outras empresas monopólicas, impostas pelo sector progressista do MFA, foram a base de um forte impulso à luta e à organização dos trabalhadores. Dessa forma, estendeu-se rapidamente a numerosas empresas o exercício do controlo da produção e da gestão pelos trabalhadores.

Nessa época, desencadeou-se a ocupação de casas vazias e alastrou-se por todo o país a organização das Comissões de Moradores. Era bastante elevado o número de famílias sem casa e era também grande o número de casas desabitadas. Nessas condições, foram ocupadas em pouco tempo milhares de casas ao longo do país e ao lado da solução do problema de alojamento de milhares de famílias, criaram-se infantários, creches e centros populares de cultura em casas ocupadas. Nessas ocupações muitas vezes foi obtido o aval de unidades militares, principalmente quando eram feitas nas zonas onde estas se situavam. O Comando Operacional do Continente — COPCON —, após um período de oposição às ocupações, acabou também por apoiá-las. É assim que no dia 27 de Abril de 1975 o General Otelo Saraiva, Comandante do COPCON, afirmou em uma conferência de imprensa que as Comissões de Moradores eram «pequenas células do povo português a viver intensamente a sua revolução». Embora afirmasse que «houve oportunismos e abusos em algumas ocupações de casas», considerava que era essencial que essas Comissões fossem apartidárias e estivessem honestamente interessadas na resolução do problema habitacional e dava-lhes o seu «integral apoio».

No campo, particularmente na região do Alentejo, os trabalhadores agrícolas, apoiados por algumas organizações políticas de esquerda, ocuparam um grande número de herdades transformando-as em cooperativas.

Nas unidades militares intensificou-se o processo de democratização com a institucionalização das Assembleias de Delegados de Unidade (ADUs). A ADU estava composta pelo Comandante da unidade, os delegados à Assembleia do MFA e representantes dos oficiais, sargentos e soldados, sendo o número de soldados sempre superior à soma do número de oficiais e sargentos. Embora se considerassem as ADUs como órgãos de apoio do Comando e a elas estivessem estatuídas funções específicas, na prática muitas delas ultrapassaram largamente os limites que lhes eram impostos. Nas unidades militares comandadas por oficiais progressistas, eles próprios alargaram o poder das ADUs e incentivaram a participação política e a organização dos soldados e sargentos. Naquelas unidades militares onde os comandantes eram oficiais reaccionários as ADUs abriram um processo que levou à quebra da disciplina rígida imposta hierarquicamente e anulou em grande medida a acção desses oficiais. De facto, como se previa na directiva para a estruturação das ADUs, estas contribuíram em grande medida para «estabelecer nas Forças Armadas uma hierarquia de competência» e uma disciplina que resultasse de «uma adesão voluntária e consciente».

É claro que o processo de democratização iniciado nas Forças Armadas e sancionado pelo MFA não significava a quebra total da hierarquia e da disciplina do velho exército burguês e muito menos o estabelecimento de um exército revolucionário. Mas esse processo, ao permitir que soldados e oficiais pudessem sentar-se à mesma mesa para discutir desde diferentes pontos de vista políticos e posições ideológicas até a justeza das ordens a serem cumpridas, accionou as alavancas que abririam as comportas por onde corria o risco de esvair-se o controlo que a burguesia tinha que ter nas Forças Armadas para poder governar.

Por outro lado, as ADUS quebraram alguns obstáculos interpostos pelos oficiais reaccionários à integração dos militares nas lutas do povo. Dessa forma, estreitaram-se bastante os vínculos das Comissões de Moradores e Comissões de Trabalhadores com as Unidades Militares. As articulações entre as organizações unitárias de base e os quartéis começaram a ser estabelecidas na prática das lutas das massas.

Quando a Assembleia do MFA aprovou, no dia 9 de Julho, o «Documento-Guia da Aliança Povo-MFA», em muitas zonas já existia uma coordenação entre os organismos unitários de base e as unidades militares.

A experiência mais avançada neste sentido foi levada à prática na zona do Regimento de Engenharia n.° 1 (RE-1). Esta experiência, que foi coroada com a realização da Assembleia Popular do RE-1, está relatada no Boletim Informativo do MFA n.° 24 (25 de Julho de 1975) da seguinte forma:

«O PRIMEIRO PASSO — No dia 10 de Dezembro de 1974, no RE-1, é eleita a Assembleia de Delegados da Unidade (ADU) e são aprovados os respectivos estatutos. Foi também decidido criar o Centro de Informação e Acção Cultural (CIAC) da unidade, com o objectivo de dinamização da unidade e dinamização externa na zona.

«Internamente, promoveram-se sessões de debate e esclarecimento entre os militares, criou-se uma cooperativa de livros, um jornal, está em formação uma biblioteca, passou a haver um refeitório único, os bares passaram a ser comuns, aboliram-se as formaturas, e as relações entre os militares dos diversos postos tomaram-se informais, de mútuo respeito, de verdadeira comunicabilidade. Externamente, a dinamização começou por sessões de esclarecimento político das populações, incentivando-as para a vigilância popular e a organizarem-se nas Comissões de Moradores, Comissões de Trabalhadores, cooperativas, etc. Destes contactos com as populações e o seus problemas, saíram os militares reforçados na sua consciência política e na necessidade duma mais íntima colaboração a todos os níveis. (...) A par desta, uma outra actuação começou a ganhar corpo. O RE-1 na posse de muita maquinaria vinda das colónias, para responder aos pedidos de apoio cada vez mais frequentes por parte da população, para a resolução de problemas concretos procurou adaptar as estruturas da unidade, e criar condições objectivas que lhe permitissem um apoio efectivo à população. Soldados e operários da Lisnave, voluntariamente, trabalham em conjunto no restauro das máquinas.

«DEPOIS DO 11 DE MARÇO — À semelhança do 28 de Setembro, também no 11 de Março o RE-1 deu um valioso contributo à luta contra a tentativa golpista e reaccionária encabeçada por Spínola. Concretamente, foi por intervenção do RE-1 que as linhas telefónicas foram restabelecidas para o RALIS, RE-1, 5.a Divisão e COPCON. Nessa altura foi também aprovada em Assembleia Geral de Unidade uma moção exigindo saneamento nas Forças Armadas e julgamento dos revoltosos.

Entretanto, com o caminho agora mais aberto, intensificam-se os contactos com as já existentes comissões de moradores e trabalhadores da zona. As solicitações de apoio começam a ter resposta por parte da unidade.

«Tipos de Trabalho realizados:

1. Obras de saneamento — abertura de valas para esgotos e abastecimento de água.

2. Obras de terraplanagem: a. Abertura de arruamentos e estradas; b. Desmonte de terrenos.

«Os resultados desta progressiva e cada vez mais íntima colaboração e a acção conjunta desenvolvida, levam a população a encaminhar-se para formas representativas de organização no sentido de estabelecer prioridades efectivas nas necessidades a satisfazer. As dificuldades ultimamente opostas à actuação do RE-l pelo aparelho de Estado (juntas de freguesia, câmaras municipais, ministérios) reforçou a união militares-povo trabalhador e a consciência de que era necessário avançar mais organizadamente. À medida que as comissões de moradores de bairros da lata e bairros de construção clandestinamente se vão revelando verdadeiros contra-poderes às juntas de freguesia e câmaras o projecto de assembleia popular da zona vai-se desenhando na prática.

«A coordenação desses órgãos tem então um novo impulso em 23 de Junho de 1975 numa reunião de comissões de moradores e trabalhadores da zona do RE-1 com militares desta unidade. Nela se decidiu constituir um secretariado provisório com a missão de preparar a l.a Assembleia Popular, que veio a realizar-se no dia 29 de Junho, onde foi apresentado um projecto de organização e objectivos da Assembleia Popular, definitivamente aprovado em Assembleia Popular de 13 de Julho, com a participação efectiva de 55 (cinquenta e cinco) comissões de moradores e 26 (vinte e seis) comissões de trabalhadores das freguesias de Campo Grande, Benfica, S. Domingos de Benfica, Carnide, Carnachide e Odivelas».

Depois de analisar esta e outras importantes experiências de Poder Popular já então existentes, chega-se à constatação de que, ao aprovar o «Documento-Guia» da Aliança Povo-MFA, a Assembleia do MFA apenas sancionava uma prática que já era levada a cabo pelas massas e pelas unidades militares progressistas em algumas zonas e tentava generalizá-la.

O MFA havia-se reconhecido, pouco antes, como «o Movimento de Libertação do Povo Português, supra-partidário, que define como seu objectivo essencial o da independência nacional». O «Plano de Acção Política» do MFA foi o primeiro passo para a aprovação do «Documento-Guia» e, apesar das suas grandes ambiguidades e contradições, afirmava em uma das suas partes:

«De acordo com a vocação expressa do movimento de libertação nacional, o MFA pretende que todo o povo português participe activamente na sua revolução, para a qual apoiará decididamente, e estabelecerá ligações com todas as organizações unitárias de base, cujos objectivos se enquadrem na concretização e defesa do programa do MFA para a construção da sociedade socialista».

«Essas organizações populares constituirão o embrião dum sistema experimental de democracia directa, através do qual se julga poder conseguir-se uma participação activa de todo o povo português na administração pública e na via política nacional, em ligação com os órgãos locais e regionais do poder central. Terão ainda a vantagem de fomentar, a partir da base, a convergência de esforços de diversos partidos, pela sua unidade na concretização dos objectivos comuns».

A par das experiências práticas já realizadas e das tomadas de posição prévias dos órgãos dirigentes do MFA, desenvolvia-se na época um vasto processo de discussão sobre o Poder Popular a nível de toda a esquerda. Mas foi no seio das Forças Armadas que essa discussão encontrou repercussões mais imediatas, porque os militares, devido à natureza apartidária da sua actividade política, necessitavam encontrar vias directas para ligar-se ao povo e fazer com que a liderança que procuravam exercer saísse de dentro dos quartéis e se estendesse ao conjunto da sociedade.

Dado que a Assembleia de Delegados do MFA era, pelo menos formalmente, o órgão supremo do poder, e o seu funcionamento tinha um certo carácter deliberativo, foi aí que se concentrou a discussão do problema. Os diferentes projectos sobre o Poder Popular veiculados pelos partidos foram enviados à Assembleia, tendo os seus mentores a esperança de «institucionalizá-los», o que, de certa maneira, os tomaria exclusivos. Foi assim que tanto o PRP-BR como PCP, através de Delegados que eram militantes ou aderentes seus, tentaram fazer o MFA aprovar o projecto dos «Conselhos Revolucionários» ou os «Comités de Defesa da Revolução». Essas duas propostas, porém, não foram aceites, seja porque tivessem uma vinculação nitidamente partidária, seja porque não reflectissem a realidade das organizações unitárias de base já existentes.

O problema da vinculação partidária não teve um peso fundamental, pois o projecto que logo a seguir foi efectivamente aprovado correspondia, em linhas gerais, a uma proposta do Movimento de Esquerda Socialista, e toda a gente sabia disto. O que o MFA levou em conta ,e daí o valor indiscutível das suas decisões, foi a dinâmica real do movimento de massas e os organismos já em funcionamento por ele criados. Para isto contribuiu certamente, tanto quanto as formulações teóricas do MES, a prática diária que os principais activistas do MFA vinham desenvolvendo junto às populações.

É certo que as resoluções do MFA eram bastante esquemáticas e não conseguiram equacionar correctamente o problema crucial da vanguarda revolucionária. Mas foram extremamente importantes na medida em que instituíram o Poder Popular como um projecto político para a instauração do socialismo. E nesse aspecto constituíram um ponto de ruptura definitivo, tanto em relação ao projecto político da burguesia como em relação a um possível projecto de capitalismo de Estado de carácter burocrático.


Inclusão 19/09/2019