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As origens do Poder Popular em Portugal remontam-se aos primeiros dias após a queda do regime fascista. De facto, foi nessa época que as massas populares começaram a organizar-se, ainda de uma maneira pouco definida e bastante espontânea, mas já com um certo grau de autonomia, tanto em relação à burocracia sindical como ao Estado e às organizações partidárias. Além disso, as organizações populares que começaram a surgir um pouco por toda a parte, embora inicialmente estivessem destinadas a servir como instrumentos de reivindicações económicas imediatas, expressavam também determinadas posições de carácter revolucionário, na medida em que a luta anti-fascista por elas empreendida inseria-se naturalmente num contexto de transformações estruturais exigidas pela sociedade e que os próprios mentores do golpe de Estado também tentariam levar a cabo logo a seguir.
Esses dois factores conjugados — autonomia e luta contra o sistema vigente — é que viriam a caracterizar a organização das massas como sendo órgãos de Poder Popular, ou órgãos da vontade Popular, como outros preferiram chamá-los. O fenómeno, evidentemente, não se restringiu apenas a isso. Teve diversos outras implicações, que serão analisadas mais adiante, e que constituem, no seu conjunto, experiências de enorme valor. Essas experiências, mesmo que algumas delas tenham sido interrompidas ou tenham ficado incompletas, são importantes como exemplos dos meios e métodos que a classe operária utiliza na luta pela sua libertação.
Na verdade, a situação em Portugal, logo após o «25 de Abril», era propícia para o surgimento da auto-organização das massas. A par da fraqueza dos partidos e organizações políticas na época, procedia-se ao desmantelamento de importantes estruturas do velho Estado fascista. A burguesia, devido à confusão e perplexidade em que se encontrava, embora já tivesse tomado conta dos novos centros do poder, ainda não tinha tido condições de estruturar com a necessária rapidez o seu novo Estado. Aliás, o que se impunha para os novos governantes, que estavam ainda muito longe de conceber uma revolução social e não podiam sequer imaginar o processo que estava sendo desencadeado, era apenas proceder a determinadas remodelações que, embora conservando as bases estruturais do Estado anterior, dessem-lhe um carácter mais aberto e dinâmico.
Mas, de qualquer forma, o poder nascente já trazia em si os gérmens de profundas contradições e, devido a isso, não foi possível num primeiro momento definir as novas formas de funcionamento da sociedade e os limites das modificações a serem introduzidas no aparelho estatal. Também não foi possível assegurar que essas modificações se processassem gradativamente e pela via de medidas administrativas.
Nessas condições, as massas populares entram abruptamente em cena, ocupando um espaço político aberto pelas indefinições momentâneas da burguesia e alargando consideravelmente esse espaço na medida em que se mantinham as vacilações das novas autoridades em relação a baluartes importantes do fascismo. É assim que se inicia, muito mais por pressão e iniciativa das massas populares do que por ordens do novo governo, o desmantelamento das estruturas da PIDE-DGS, a caça aos policiais da Pide desencadeada em quase todo o país e o processo de saneamento dos elementos fascistas que permaneciam enquistados no aparelho de Estado e na direcção das empresas. A luta pelo saneamento constituiu um dos mais importantes factores de mobilização, organização e politização das massas, pois foi a partir daí que as organizações unitárias de base adquiriram um carácter marcadamente político, ultrapassando rapidamente o campo das reivindicações económicas para as quais haviam servido ori-
ginalmente de instrumentos.
Talvez seja interessante examinar, em primeiro lugar, porque os órgãos de Poder Popular surgiram inicialmente como resposta organizativa das massas para a resolução das suas reivindicações económicas.
Quando o Partido Comunista Português surgiu à luz do dia, trouxe consigo, já montada, a máquina sindical que havia estruturado na clandestinidade. Isto constituiu, certamente, um dos principais trunfos que o PCP apresentou aos dirigentes do MFA para lhes fazer ver que era um partido organizado, com implantação real no âmbito do movimento operário e que, por isso mesmo, tratava-se de uma força política imprescindível na formação do Governo de Salvação Nacional (traduza-se: conciliação de classes) que se pretendia instaurar. Isto era uma realidade e a burguesia compreendeu-a perfeitamente. Nunca é demais relembrar que foi o próprio General Spínola quem deu a luz verde para que Álvaro Cunhal regressasse de Praga. Assim, os «comunistas» entraram naturalmente para o I Governo Provisório e um dos ministérios que lhes coube foi, precisamente, o Ministério do Trabalho.
O PCP comprometeu-se seriamente com o governo de conciliação de classes instaurado após o «25 de Abril». A partir daí desenvolveu um grande esforço no sentido de comprometer também o movimento operário no mesmo esquema. Nessa linha de acção, procurou impedir que os sindicatos pudes
sem servir de instrumento para qualquer tipo de reivindicação. Qualquer greve, fosse por reivindicações económicas ou pelo saneamento de fascistas, passou a ser sistematicamente boicotada por esse partido, sob o pretexto simplista de que os operários em greve estariam a fazer o jogo da reacção. Para o PC, de agora em diante, o mais importante era «apoiar a Revolução do 25 de Abril», para não permitir a volta do fascismo.
Entretanto, no amplo campo aberto ao movimento de massas, a classe operária não tardou em irromper no plano político e colocou na ordem do dia as suas reivindicações desde sempre relegadas. Como não havia quase nenhuma possibilidade de utilizar a estrutura sindical, pois esta encontrava-se rigidamente controlada e instrumentalizada pelo PCP para apoiar o Governo Provisório, as massas foram praticamente forçadas a auto-organizar-se e criar estruturas apartidárias para poder assim desenvolver as suas lutas. Os sectores mais combativos do proletariado não tardaram a reunirem-se em assembleias de massas para estudar os seus problemas concretos, as formas de luta e os instrumentos mais eficazes que haveriam de adoptar para levá-las a cabo. No geral, foi assim que surgiram as Comissões de Trabalhadores, ou seja, por iniciativa própria das massas e de uma maneira totalmente autónoma, tanto em relação ao PCP como em relação à burocracia sindical que este partido dominava. No que diz respeito às forças políticas que se situam à esquerda do PC, estas encontravam-se ainda em estado embrionário e já enfrentavam o processo de atomização que as caracteriza até hoje, de tal sorte que não puderam exercer uma influência assinalável nas nascentes organizações unitárias.
As primeiras Comissões não foram, naturalmente, reconhecidas pela burocracia sindical mas sim boicotadas, como sendo formas selvagens de organização, «fomentadas por divisionistas e provocadores». Mas as lutas por elas desenvolvidas deram-lhes o aval da prática e, assim, essa forma organizativa alastrou-se rapidamente por todo o país. Para isso contribuiu decisivamente a sua amplitude e o papel unificador que desde o início tiveram. Como eram verdadeiros órgãos executivos da vontade dos trabalhadores, expressa em assembleias gerais de toda a fábrica, cedo foram aceitas por amplos sectores da classe operária, que, por sua vez, já começava a identificar os sindicatos como órgãos executivos das cúpulas burocratizadas da Intersindical.
Além disso ao representar todos os trabalhadores de uma determinada unidade de produção, conseguiram anular a divisão que as antigas corporações fascistas impunham ao movimento operário e que faziam com que numa só empresa, como era o caso da LISNAVE, por exemplo, existissem nada menos do que 24 sindicatos, dado que os operários eram organizados por sectores profissionais e ofícios. Neste sentido, as Comissões de Trabalhadores cumpriram um papel unificador do movimento operário, atenuando, em certa medida, os reflexos em seu seio do fraccionamento e sectarismo das organizações partidárias da esquerda.
As primeiras Comissões de Trabalhadores tinham, como já vimos, um carácter marcadamente reivindicativo. Além disso, muitas Comissões, nomeadamente as que se situavam na província ou nas pequenas e médias empresas, transformaram-se muitas vezes em órgão de co-gestão, passando a funcionar mais sob a direcção dos patrões do que sob a direcção das assembleias que as haviam eleito. Este facto traduzia em grande parte a imaturidade das assembleias de massa que então se realizavam, a precipitação com que eram eleitas muitas Comissões de Trabalhadores mas também, e sobretudo, a herança recente do fascismo que, como afirmaria o PRP-BR num de seus documentos, «muitas vezes ainda impunha a continuação do medo, sob outras formas».
Apesar de tudo isso, porém, pode-se dizer que as Comissões de Trabalhadores constituiram-se imediatamente no gérmen do que mais tarde viria a ser o Poder Popular. Algumas delas, principalmente as que se situavam no âmbito das grandes empresas de Lisboa e arredores, como por exemplo as da LISNAVE, SETENAVE, EFACEC e dos Correios e Telégrafos encabeçaram importantes movimentos reivindicativos e dirigiram greves que, devido à repressão da burguesia e ao boicote dos reformistas e da burocracia sindical, contribuíram decisivamente para aumentar a consciência de classe e a capacidade combativa de importantes sectores do proletariado. Outras Comissões, que levaram a cabo renhidas lutas pelo saneamento de patrões e capatazes fascistas nas empresas, ultrapassaram, como consequência dessas lutas, o seu carácter reivindicativo e passaram a ter um conteúdo marcadamente político, chegando mesmo, muitas delas, a assumir o papel de verdadeiros órgãos de poder operário.
Saliente-se que a luta pelo saneamento dos elementos fascistas que ainda permaneciam na direcção e nos postos intermediários das empresas estava intimamente associada à luta pela satisfação das reivindicações económicas e, em alguns casos, foi esta a sua dinâmica, dado que somente com o afastamento dos administradores mais intransigentes era possível obter aumentos de salários. Em outros casos, entretanto, os fascistas eram suficientemente conhecidos e odiados pelos trabalhadores para que pudessem sequer tentar se adaptarem à nova situação, e foram imediatamente saneados.
No quadro da nova conjuntura, a acentuação da crise económica e política e o acúmulo da experiência de luta e organização dos trabalhadores impulsionaram-nos a exercer o controlo da produção em numerosas empresas. Estas empresas, enfrentando problemas críticos de ordem económica, punham em causa a própria garantia do emprego e do recebimento do salário aos seus trabalhadores. Em muitos casos, estes problemas agravaram-se com a fuga ou demissão dos patrões. Dessa forma, para assegurar a fonte de trabalho e o salário, os trabalhadores tiveram que impor o controlo sobre a produção e as operações comerciais das referidas empresas. E, para assumir essas responsabilidades, foram levados a encontrar as formas organizativas adequadas. Nas assembleias os trabalhadores foram criando os seus instrumentos de combate, estabelecendo as formas organizativas e elegendo as Comissões encarregadas da direcção das lutas.
É interessante notar que, em muitos casos, as Comissões de Trabalhadores tiveram praticamente que cumprir o papel dos sindicatos, devido ao facto, já atrás apontado, das burocracias sindicais estarem absolutamente atreladas ao Partido Comunista e, por intermédio deste, ao governo e ao Estado. O PC naturalmente aproveitou essa situação para acusar as Comissões de serem formas organizativas paralelas que dividiam a classe operária e que faziam assim o jogo dos patrões. Entretanto, os argumentos que os reformistas podiam esgrimir a esse respeito eram bastante fracos e sem consistência. O avanço do processo revolucionário começava já a colocar na ordem do dia para a classe operária tarefas nitidamente anti-capitalistas como, por exemplo, o controlo operário nas empresas nacionalizadas pelo governo e até a apropriação dos meios de produção nos lugares onde as fábricas foram ocupadas pelos operários ou abandonadas pelos patrões. Nesse contexto, as lutas de carácter apenas reivindicativo decresceram em importância e muitas Comissões de Trabalhadores deram um salto qualitativo, assumindo o papel de verdadeiros órgãos de poder operário na luta contra o sistema capitalista. Definia-se assim, na prática cotidiana da luta de classes, a diferença evidente entre as organizações sindicais, de carácter reivindicativo, e os organismos de poder operário, de carácter anti-capitalista. Não podia, pois, haver paralelismo entre formas organizativas cuja natureza e objectivos eram absolutamente diferentes.
Inclusão | 19/09/2019 |