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O ARTIGO 109.º, N.º 4, DO CÓDIGO ADMINISTRATIVO É INCONSTITUCIONAL
Alegações do recorrente nos autos n.º 3,829 da Auditoria Administrativa de Lisboa.
I
Exmo. Senhor Auditor:
1.1. Reafirma-se o que consta da contestação por excepção: o Administrador do Bairro é incompetente para julgar o processo sub judice. O n.º 4 do art.º 109.º do Código Administrativo foi legislado numa situação político-social totalmente diferente da actual. A Constituição de 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional e, de um modo geral, todo 90 o ordenamento jurídico (e a sua ratio) tinham como objectivo primordial a defesa do direito de propriedade. O direito à habitação não tinha qualquer consagração nos textos legais; o direito de propriedade tinha foros de consagração, entre os direitos fundamentais, no art.º 8.º da Constituição.
1.2. «Estar abusivamente a morar em casa alheia» era evidentemente, para o Estado Novo, algo que merecia um mero tratamento de polícia. Não se tratava de conceder quaisquer garantias de defesa ao «abusador»: era alguém que estava à margem da lei — tratava-se apenas de o despejar. Uma jurisprudência aberrante veio encaminhar no mesmo sentido o entendimento da primeira parte do referido n.º 4 do art.º 109.º do Código Administrativo: quando o hospedeiro requeria o despejo do hóspede, este era ipso facto «importuno» ou «incómodo» — despejava-se. O Administrador de Bairro funcionava assim como uma instância de excepção que sumária e expeditamente despejava...
2.1. O ordenamento constitucional e político-social posterior ao 25 de Abril de 1974 tem fundamentos absolutamente opostos aos vigentes até essa data, sob o regime fascista. Os objectivos constitucionais consagrados após a «revolução dos capitães» (e nomeadamente na Lei 3/74 — Programa do MFA) apontam para a defesa prioritária dos interesses das classes mais desfavorecidas. A Constituição de 1976 veio consagrar como direito fundamental o direito à habitação — art.º 65.º; na 91 sistemática do texto constitucional, o direito de propriedade perde a relevância que tinha até então.
2.2. O decreto-lei 198-A/75 (na sequência do 445/74) reduziu à uma sombra o princípio da liberdade contratual no âmbito do instituto do arrendamento urbano. A ocupação (legal ou não) deixa de ser um «abuso», um mero caso de polícia. Alegar-se que alguém está «abusivamente» na casa de outrém deixa de ser fundamento para um sumário despejo administrativo. Deve entender-se que à face do art.º 65.º da Constituição, à face do decreto-lei 198-A/75 e de um modo geral à face dos fundamentos da ordem jurídica estabelecida, se encontra revogado o n.º 4 do art.º 109.º do Código Administrativo de Marcelo Caetano. Os meios processórios são aqui os próprios para a defesa da posse— e os tribunais competentes são os comuns. Só assim se está minimamente a garantir, neste campo, o direito à habitação consagrado no art.º 65.º da lei fundamentail. Sublinhe-se que o art.º 18.º da Constituição considera directamente aplicáveis, vinculando as entidades públicas e privadas, os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias.
3.1. Aliás, uma leitura cuidada do título VI da Parte Ill da Constituição de 1976 permitir-nos-á considerar inconstitucional o julgamento de questões cíveis pelo Administrador de Bairro: os tribunais administrativos aí previstos terão estritas funções 92 de contencioso administrativo. O que, por outro lado, decorre do artigo 114.º. «Os órgãos de soberania devem observar a reparação e a interdependência estabelecidas na Constituição». Como pode um órgão da Administração, do Executivo, exercer funções judiciais, nomeadamente em matéria cível?
II
4.1. Face à contradição flagrante no aspecto material. entre a lei constitucional e muitas das disposições da lei ordinária, o julgador só pode tomar uma de duas decisões:
- ou julga com a lei antiga, adaptando-a e interpretando-a, de acordo com a Constituição nova,
- ou suspende a instância até que o legislador proceda à «adaptação das normas anteriores atinentes ao exercício dos direitos, liberdades e garantias», nos termos do art.º 293.º da lei fundamental.
É evidente que o julgador, terá extrema dificuldade em interpretar as leis ordinárias do regime anterior de acordo com o espírito e a letra da nova Constituição: no caso sub-judice, o n.º 4.º do art.º 109.º do Código Administrativo é praticamente ininterpretável à luz do texto constitucional.
Dado que não pode denegar justiça, o julgador 93 se não quer julgar inconstitucionalmente, deverá prudentemente suspender a instância até à revisão da lei ordinária estar processada. O que não foi feito na decisão recorrida.
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5.1. Pelo exposto e dado que:
- o tribunal é incompetente;
- o n. 4º do art.º 109.º do Código Administrativo se encontra revogado;
- a função jurisdicional do Administrador de Bairro é inconstitucional — nomeadamente no campo do contencioso cível;
Deve ser revogada a decisão recorrida, (com
legais consequências) como é de inteira
JUSTIÇA!
Junho de 1976
Os advogados
Luís Filipe Sabino
Amadeu Lopes Sabino