O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril

Edições Dinossauro


Prefácio


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Nesta passagem do 20º aniversário da queda do fascismo não é a conquista da liberdade que está no centro das atenções. Políticos e comunicadores ocupam-se com problemas de outra ordem, como por exemplo: a descolonização foi “vergonhosa” ou “criminosa”? Os membros do Conselho da Revolução devem ou não ser classificados como facínoras? Marcelo terá sido um democrata vacilante? A PIDE cometeu excessos? A culpa pelo desatar da bagunça cabe ao COPCON, ao PCP, à extrema-esquerda, ou a todos? Quem teve mais méritos no restabelecimento da ordem - o PS ou o ELP?

Por outras palavras, a discussão foi virada de pernas para o ar e gira agora em volta de saber quem deve ser culpado pelo 25 de Abril. Isto é evidentemente caricato, baixo, odioso, mas não deixa de ter a sua lógica. O campo da ordem faz o seu exame de consciência e procura torturado as causas dessa surpresa dolorosa que foi ver um golpe militar “regenerador” abrir as portas a um sobressalto revolucionário. A burguesia, com estas coisas, não brinca: se durante dezanove meses os centros “legítimos” de decisão ficaram à mercê da rua, alguém tem contas a dar.

Posta a polémica nestes termos, é óbvio que os adeptos do antigo regime levam vantagem. Eles podem sempre demonstrar que não vacilaram perante a “indisciplina social” e que foi a contemporização dos seus opositores democratas que permitiu o achincalhamento da autoridade do Estado.

Resulta daqui, como se tem visto, um ascendente cada vez mais explícito da herança salazarista na ideologia e na política nacional. Aviso sombrio mas que tem, pelo menos, uma vantagem. Os contra-revolucionários começam a assumir finalmente, sem complexos, as suas façanhas bombistas e a revelar a implicação nelas de quase todas as figuras gradas do regime. Com o recuo histórico que permitem os vinte anos decorridos, está a emergir na sua real dimensão o anti-PREC — essa monumental conspiração que uniu, contra os direitos e aspirações populares, capitalistas, latifundiários e padres, salazaristas e “democratas”, mercenários e serviços secretos estrangeiros.

Ora, o anti-PREC traz agarrado consigo o PREC. É inevitável. Com a sua troca de acusações e de confissões, reaccionários e democratas estão a chamar de novo à ribalta o movimento que se têm esforçado por enterrar como uma chaga vergonhosa: as ocupações, os saneamentos, as manifestações, a autogestão, a contestação da ordem estabelecida — tudo aquilo que se convencionou desde há vinte anos rotular rancorosamente como o “terror anarcopopulista”.

É disso que trata este volume. Se o 25 de Abril das ruas está mais uma vez em julgamento, é de elementar justiça dar voz à parte acusada. O que levou afinal essas dezenas de milhares de activistas a deixarem-se contagiar pela febre da crítica, da transformação, da proclamação de novos princípios, da auto-organização, envolvendo no seu entusiasmo milhões de pessoas? Foi só um acesso colectivo de “impaciência irresponsável” e de “infantilismo esquerdista”, como pretendem alguns? Terão sido instrumento de “provocação reaccionária, a mando da CIA” ou dos “projectos expansionistas do bloco soviético”, como deduziram outros?

Com esta recolha de depoimentos de activistas envolvidos em acções populares entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, visámos restituir o direito à palavra a uma corrente de opinião desde há muitos anos silenciada na comunicação social, e assim contribuir para uma reavaliação desse movimento tão caluniado.

Não poderiam, em nossa opinião, as edições Dinossauro ter melhor estreia. A meia centena de testemunhos despretenciosos que compõem parte deste livro são uma amostra limitada, que não cobre muitos dos aspectos vitais desse movimento (nomeadamente nos meios rurais), mas chegam para reconstituir a sua tremenda força, a sua raiz popular autêntica, a razão de ser das suas reivindicações, ainda mais chocante quando posta em contraste com a “apagada e vil tristeza” actual. São experiências que não podem ser perdidas porque fazem parte da nossa maturação colectiva.

Mesmo para os que viveram essas jornadas é por vezes surpreendente redescobri-las agora, tal tem sido o trabalho obstinado de supressão da memória colectiva. É um outro 25 de Abril que emerge destes testemunhos, vivo, audacioso, criador, que não tem nada a ver com a caricatura que nos é servida como versão oficial: a estafada “gesta dos capitães”, os planos do general Spínola para o nosso futuro, os malfadados três D - toda essa “revolução” de opereta que a jovem geração com razão rejeita, porque lhe tresanda a hipocrisia paternalista.

Para a nova geração, sobretudo, será importante tomar conhecimento de um passado que há vinte anos lhe escondem, redescobrir a palpitação dessas jornadas de insatisfação e rebeldia, em que tudo parecia possível e cada um sentia que o rumo do país estava também nas suas mãos. Não é por acaso que, ao fim de tanto tempo, operários, estudantes, donas de casa, escritores, soldados, encontram expressões semelhantes para descrever esses dias: “tempo inesquecível”, “não voltei a ser o mesmo”, “a vida tinha um sentido”, “era a alegria”...

Necessário se torna esclarecer que não foi nossa intenção pôr este trabalho ao serviço de quaisquer ajustes de contas retrospectivos entre grupos ou partidos da área da esquerda. Disso dá testemunho a variedade de filiações ideológicas reflectida nos depoimentos e, mais expressamente, nos artigos que formam a segunda parte do volume. Tratou-se, sim, de fazer ressaltar a justeza da tendência - não exclusiva de qualquer grupo em particular porque os atravessava a todos - para rejeitar a ordem estabelecida, condenar as relações capitalistas como estranhas à democracia do trabalho, procurar, mesmo que às apalpadelas e com erros, novas formas de viver. E isso explica também um critério que, à partida, poderá ser chocante para alguns leitores: a fraca representação de testemunhos de activistas do PCP. A postura “democrática ordeira” que o PCP exigia dos seus militantes cavou um fosso, que pode hoje estar obscurecido por anos de propaganda mas que era perfeitamente nítido para os que então andavam envolvidos no movimento. Quanto ao papel desempenhado nos acontecimentos pelo PS e restantes partidos “democráticos”, julgamos que ressalta com suficiente clareza para dispensar mais comentários.

Como plano de trabalho que melhor restituísse o clima da época, entrelaçámos numa primeira parte os depoimentos orais com recortes de imprensa, o todo acompanhado por uma cronologia do movimento popular. Como critério de ordenação dos testemunhos, optámos por alternar as experiências, segundo a origem social, o sexo, as regiões, as idades. Na segunda parte arrumámos alguns textos de reflexão, os poucos que nos foi possível obter no prazo demasiado curto em que o volume foi preparado. A completar o quadro, uma bibliografia sumária e um índice de siglas, que esperamos sejam úteis como material de consulta.

A todos os que quiseram contribuir para esta edição das formas mais variadas, exprimimos um caloroso agradecimento. A nossa ambição é que este volume desperte o interesse pelos memoráveis 580 dias de “poder popular” e suscite outras iniciativas que o completem e corrijam, restituindo à opinião pública o conhecimento de um dos períodos mais férteis da história moderna do nosso país.

O Editor


Inclusão 23/11/2018