O Futuro Era Agora
O movimento popular do 25 de Abril
Os 580 dias - Depoimentos orais e citações

Edições Dinossauro


O povo em armas? Uma fraude
Tino Flores, cantor popular e agricultor, 4 7 anos


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Quando se deu o 25 de Abril, eu estava em Paris, e a organização a que pertencia — a Comissão Exterior da OCMLP/Grito do Povo — encarou-o tão só como um golpe militar, o que levou a optarmos pela via clandestina para fazer entrar no país os elementos que tínhamos no exterior e que nos interessava pôr a trabalhar aqui. Eu tinha uma posição de responsável. Sabia o que estava a fazer e tinha uma actuação política consciente, com objectivos definidos. Nunca fui um tipo de andar por aí perdido a tocar viola. O que foi curioso é que eu saí do país com dezanove anos, sem fazer a tropa, e vim a fazê- la depois de reentrar, já com vinte e nove anos. E fui para lá obrigado, porque fui preso.

Íamos para Lisboa, para cantar numa festa, em Agosto de 75, e perto de Leiria fomos detidos pela polícia porque o carro era de matrícula holandesa. Vieram a averiguar que eu era refractário e entregaram-me à tropa. Foi assim que me meteram no Regimento de Infantaria do Porto e vim a fazer parte das tropas de ocupação do RALIS, ao serviço do golpe de 25 de Novembro.

Eu, que era o representante dos soldados recrutas junto do comando, vi de perto como era o funcionamento “democrático” daquilo. Para quem quiser reflectir é uma questão interessante — como funciona uma unidade militar, num clima soi disant revolucionário. Por exemplo, os soldados decidem fazer uma assembleia. O delegado da companhia vai ter com o capitão, pedir-lhe para ele pedir ao comandante da unidade para autorizar a assembleia dos soldados. O comandante nunca está e a coisa nunca mais se resolve. “Oh meu capitão, resolva lá você isso”. E o capitão, que era um gajo novo, saído há pouco da escola, diz que não, que isso era contra a sua ética. Onde é que já se viu assembleias de soldados? Aquilo é uma máquina. Os tipos têm uma formação, um conjunto de conhecimentos acumulados ao longo de séculos sobre como comandar homens para a guerra. Como fazê-los obedecer. Como fomentar situações de conflito entre eles e manter o comando, etc.

Os próprios comandantes tinham o discurso de que a unidade era do povo. Mas entravam logo em choque quando a malta dizia que o povo somos nós e queríamos os restos da cantina para nós em vez de os dar a mamar aos sargentos. Sim senhor, a unidade é do povo mas os senhores que são profissionais e recebem bons ordenados é que devem servi-la em primeiro lugar.

Uma história: durante alguns meses conseguimos que a messe dos oficiais fosse aberta a todos os soldados. Por uma questão de igualdade. Como os oficiais sempre tiveram livre acesso à messe dos soldados, estes também deviam ter acesso à dos oficiais e dos sargentos. Conclusão, eles ficaram assim sem o seu local de conspiração. Porque os militares não sabem fazer mais nada: é só conspirar e jogar às cartas. De modo que os soldados, aquela maçaricada toda, chegava lá primeiro, sentava-se naquelas boas mesas de jogo, naqueles brutos sofás, e o comandante tinha que andar à procura de lugar ou ficava ao balcão. Eu ainda lhe dei o lugar algumas vezes. “Faz favor, o senhor é mais velho”. Mas os tipos começaram a ficar incomodados com a presença permanente ali dos soldados. Então qual foi o golpe? Vieram um dia dizer que os soldados tinham deixado umas cervejas por pagar e que tinham desaparecido dois baralhos de cartas. Fizeram um inquérito tremendo, com os pelotões todos formados na parada, que assim não podia ser, tinham que se tomar medidas.

Outro caso: antes do 25 de Novembro, todas as unidades tinham um serviço de informação interna montado e tinham um cadastro. Aquilo dizia assim, por exemplo, para mil homens: cem — chatos; cinquenta — muito chatos; vinte — perigosos. Vais fazendo uma hierarquia, segundo os dados que vais recolhendo sobre os homens da tua unidade. Isso era feito antes do 25 de Novembro. Os serviços de informação e a Polícia Judiciária Militar tinham esse rol graduado dos gajos mais ou menos nocivos.

Enquanto o pessoal andava nos plenários, tomava deliberações revolucionárias e contestava a hierarquia interna dos quartéis, este sistema funcionava em paralelo.

Sempre, permanentemente e cada vez mais intensamente. Antes do 25 de Novembro, eles esperaram que a malta da minha formação terminasse a recruta e deram licença a toda a gente, à malta formada nas assembleias de unidade (ADUs), mais adepta do poder popular.

É isto que ainda hoje me custa: a malta foi comida, ao longo de todo o processo, pela hierarquia militar, pelos grandes políticos e pelos dirigentes das organizações políticas revolucionárias da época. A burguesia deste país nunca perdeu completamente o poder. Houve certos momentos, nalguns focos, em que o poder foi momentaneamente partilhado. Mas, nomeadamente sob o aspecto militar, que foi decisivo, o poder esteve sempre firmemente detido por forças (fossem elas apoiantes ou não do MFA) que se opunham ao movimento popular ou à democracia popular. Mesmo quando a fracção mais radical do MFA teve alguma proeminência política, a hierarquia militar conservadora manteve os postos-chave.

O 25 de Novembro foi preparado minuciosamente a partir do serviço de colocações das forças armadas, dominado pelos spinolistas. Eles foram, a partir daí, colocando as suas peças nos sítios certos e afastando os elementos mais incómodos. Depois já do 25 de Novembro continuaram a fazer o mesmo, de modo a consolidarem ainda mais o seu poder.

Um dos nossos maiores erros foi acreditar, ingenuamente, que a instituição militar, com uma formação castrense centenária, se esbatia e esfumava assim com duas tretas. O que era o MFA? O MFA era a tropa. Nunca foi o povo em armas, de maneira alguma. Mesmo os tipos, ao nível de majores e capitães, que tomaram certas posições de contestação, quando a hierarquia intervinha, eles seguiam-na sempre. Há um vínculo ideológico e de vivência muito sério.

Eu não acreditei na altura e não acredito hoje em qualquer tipo de estrutura militar. Mesmo que quisesse acreditar, tive sempre desmentidos práticos constantes. A meu ver, a tese de que havia duas hierarquias paralelas: a saída da Junta de Salvação Nacional, dos spinolistas, e a hierarquia do MFA, que seria uma coisa distinta, é uma fraude total. Tanto não era assim que o Otelo foi exonerado das suas funções pela hierarquia. “O senhor deixa de exercer o comando da região tal a partir de tal data. O serviço de colocações do exército trata disso”.

★★★

JURAMENTO DO RALIS

Nós, soldados,
juramos
ser fiéis à pátria
e lutar

pela sua liberdade
e independência

Juramos estar
sempre, sempre
ao lado do povo,
ao serviço
da classe operária
dos camponeses
e do povo trabalhador

Juramos lutar
com todas as nossas capacidades
com voluntária aceitação
da disciplina revolucionária
contra o fascismo
contra o imperialismo
pela democracia
e poder para o povo
pela vitória
da revolução socialista

O COMBOIO DA LOUSÃ

O comboio da Lousã
Que passa em Vendas da Ceira
Não perdoa a quem lá passa
Corta a vida por inteiro

Corta as pernas, corta os braços
Esmaga de encontro ao chão
Quando se ouve ele a apitar
Vive-se numa aflição

Refrão:

Vai o comboio
de Coimbra p’ra Lousã
Já matou tantos,
matará mais amanhã

Muda o tempo, o sol e a chuva
Cresce o novo e morre o velho
Já se muda a cor da uva
Queria dar-te um conselho

Dizer-te que é triste ver
Tudo mudar-se na vida

E não mais desaparecer
Aquilo que a traz consumida

Refrão

Não tem culpa o comboio
Nem o trilho que é de ferro
Nem tem culpa o maquinista
Mas eu é que já não espero

Tocam os sinos a rebate
toma a fúria o coração
vai começar o combate
Torcer o aço no chão

Refrão

Agua mole em pedra dura
Tanto dá até que fura
Tanto batemos o pé
Que já há cancela segura

Acabaram-se as promessas
E as aflições também
Vai o comboio a apitar
Mas já não mata mais ninguém

Refrão

continua>>>


Inclusão 23/11/2018