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Em 71, já eu andava no teatro, fui metido em Mafra por ordem da PIDE. Já desde os 16 anos que andava a dizer poesia com o Zeca Afonso, o Adriano, etc. A minha intervenção era como artista, pelo coração; era um rebelde mais do que um revolucionário. Marcou-me muito o ambiente de resistência que se vivia em Alpiarça, a crise académica de 69, as eleições desse ano...
A recruta em Mafra foi muitíssimo violenta, programada especialmente para os castigados da crise académica. Daí passaram-me, a mim que era dado como suspeito de actividades subversivas, para o serviço de Acção Psicológica e Propaganda do Exército, na EPAM! Mas a bagunça do Exército foi mais longe: transferem-me para a 2ª Repartição do Estado Maior do Exército, por onde passava a verdade da guerra colonial: os mortos, os feridos, as destruições, dados sobre a colaboração do Exército com a PIDE e a Judiciária na repressão; até conheci lá um oficial que foi para o Chile dar um curso aos militares que na altura preparavam o golpe de Pinochet. Finalmente, passados seis meses, cai como uma bomba a informação da PIDE a meu respeito! Foi divertidíssimo ver o chefe da repartição, um coronel, em pânico, a querer saber se eu tinha passado informações confidenciais para fora...
A partir daí puseram-me em funções mais inócuas. Mesmo assim, no quartel do Campo Grande pude ver uma face insólita do drama da guerra: os rapazes que ficavam ali fechados na véspera de embarcar no aeroporto, gente simples, ignorante, que ia com toda a felicidade para África, porque era algo novo na sua vida, uma viagem...
Assisti ao 25 de Abril “na primeira fila”: ali mesmo, no largo do Carmo, e à tarde na António Maria Cardoso, com centenas de pessoas a gritar “morte à Pide”, e gente a cair com sangue e eu sem perceber logo que eram as rajadas. É preciso que se diga e se torne a dizer que foi o povo de Lisboa que fez o 25 de Abril. O golpe de estado militar foi completamente ultrapassado pelos jovens, pelas mulheres, pelos intelectuais que vieram para a rua, pelos oficiais milicianos que nos quartéis empurraram os oficiais hesitantes e os obrigaram a aderir. Essa primeira semana até ao 1º de Maio é que foi o verdadeiro o 25 de Abril, uma autêntica revolução popular, e essa já ninguém nos consegue roubar.
Logo em Maio fui mandado para o Serviço de Extinção da PIDE/DGS. Foi uma experiência fascinante e patética ver os criminosos a borrarem-se pelas pernas abaixo com medo de ser interrogados. Mas já não foi tão engraçado assistir às manipulações que ali se fizeram, o roubo e a queima de arquivos preciosos, cada partido a sacar o que lhe interessava: chegaram a vir camionetas carregar documentação. Graças a esse trabalhinho, os informadores aí estão ao serviço activo outra vez.
A certa altura, comecei a sentir-me um bocado perdido. Eu só sei ser declamador, mas para isso havia agora os políticos. A poesia já não adiantava nada. Depois, eu sou um bocado libertário, sinto-me bem é no contra e, para dizer a verdade, já não suportava o novo poder, poder cinzento, feio e triste, dominado por pessoas que aderiam ao PCP por oportunismo, por dinheiro, por maldade; alguns tinham colaborado com a ditadura e começaram a fazer-se passar por grandes progressistas.
Assim, fui para a Dinamarca, e estive lá cinco meses óptimos. Mas a nossa terra perseguia-me. Havia uma campanha permanente da social-democracia europeia contra a “ameaça comunista” em Portugal. Quando eu dizia que era português olhavam-me cheios de compaixão, como se fosse um foragido do terror vermelho. Em Setembro, vejo uma notícia num placard “Golpe de extrema direita em Portugal, Costa Gomes em fuga”. Sem pensar duas vezes, meti-me no avião e voltei, foi um impulso, não sei o que vinha fazer. A notícia era falsa mas apanhei já os preparativos do 25 de Novembro. No dia do golpe, estava eu em Leiria a filmar "O Rei das Berlengas".
Hoje, olhando para trás, sinto uma grande frustração: não se desmantelaram as polícias, os novos governantes apoiaram-se no velho aparelho, ficou tudo abafado, ninguém fez nada a ninguém. Pensou-se fazer um museu da resistência, não houve tempo. Pessoas válidas foram ridicularizadas e destruídas, outras autoliquidaram-se. Uma seita instalada na imprensa abandalhou tudo. E ainda há quem se admire de os filhos do 25 de Abril serem descrentes de tudo, amargos e vazios!
Deixemo-nos de histórias. O 25 de Abril falhou nos três D: a descolonização deu uma tragédia tremenda; a democratização acabou na corrida ao dinheiro, à droga e ao partido único; quanto a desenvolvimento, aí estamos garbosamente na cauda da Europa. Como diz o Zé Mário, “a Liberdade passou por aqui” mas não ficou. Espero que ainda tenhamos um 26 de Abril. Por mim estou pronto para o receber.
★★★
“Nos dias 29 e 30 de Novembro foram presos em Mafra e enviados para a Trafaria oito militares antifascistas. Deve-se a prisão a terem estado no Centro de Acção Cultural de Mafra a debater o filme “O couraçado Potemkine”, passado dias antes, tendo também ai reflectido sobre a vida da unidade e apresentado as suas conclusões no dia seguinte, durante uma reunião entre os soldados e o comando da unidade.
A solidariedade inevitável que surgiu dentro da unidade levou o Estado-Maior das Forças Armadas a considerar reprovado todo o 1º ciclo de instrução e a enviar 500 cadetes para casa com licença registada”.
(Comunicado dos Milicianos das Forças Armadas, 2/12/74)
Inclusão | 23/11/2018 |