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No 25 de Abril eu era trotskista. Pertencia a uma organização chamada União Operária Revolucionária — Liga Operária Revolucionária (UOR-LOR). Estava na tropa em Mafra, como cadete, e tinham-me encarregado de criar uma organização lá. Enquanto pudesse aguentar, ia ficando e fazendo o meu trabalho político dentro do exército. Mal fosse mobilizado, desertava.
A nossa era uma companhia com pessoal consciencializado, malta com formação universitária que estava ali de castigo por actividades políticas. Alguns já tinham estado presos. Havia já nessa altura em todas as incorporações lutas significativas. Eram bastantes os que estavam organizados politicamente e era relativamente fácil pormo-nos de acordo e mobilizarmo-nos rapidamente. Lembro-me que, quando da minha recruta, deu-se a morte de dois cadetes. Houve um movimento de solidariedade e decidimos todos formar sem armas.
No 25 de Abril, a primeira ordem que recebemos foi de ninguém sair da caserna. Exigimos ao oficial de dia saber o que tinha acontecido. Disse-nos que tinha havido um golpe. Quase logo de imediato, decidimos exigir participar naquilo e ir para a rua armados. O nosso comando era favorável ao movimento e aceitou. Fomos para Lisboa montar guarda ao Quartel-Mestre-General de S. João de Pedreira. Fizemos depois um assalto a um posto da Legião Portuguesa no Largo do Rato. Não havia lá quase nada. Entretanto, a situação militar estava controlada e nós regressámos a Mafra.
Aí, começámos a perguntar porque é que a hierarquia não mudava e o regime disciplinar se mantinha na mesma: não queríamos aquele tipo de instrução, não queríamos fazer exercícios perigosos e de preparação para a guerra. Conseguimos algumas vitórias aí. Houve ainda um movimento de contestação ao juramento de bandeira que deixou a hierarquia estarrecida.
Depois da especialidade, sou colocado numa unidade em Castelo Branco — o Batalhão de Caçadores 6 — para dar instrução a soldados. Encontro aquele quartel totalmente inalterado pela revolução. Era tudo malta do interior, sem preparação política. O que se notava era algum descontentamento pelas condições de vida, (sobretudo a alimentação) que eram muito más. Havia lá um delegado do MFA mas nenhum outro sinal do 25 de Abril. Na hierarquia, ao nível superior, pululavam os elementos reaccionários que haveriam de se notabilizar no 28 de Setembro e no 11 de Março.
Com as novas incorporações, as coisas começaram a alterar-se. Havia discussões políticas, reuniões, levantamentos de rancho. Esta unidade haveria mesmo de vir a participar nas campanhas de dinamização cultural do MFA, que tiveram uma grande importância no interior, no combate às estruturas de poder caciquistas e obscurantistas. Eu mesmo participei, enquanto militar, nestas campanhas e recordo-me bem da grande mobilização que se conseguia em seu torno por todo aquele interior. Houve também confrontos, naturalmente. Lembro-me de um episódio, creio que passado em Proença-a-Nova, quando um colégio religioso reaccionário foi ocupado pelas forças progressistas lá da terra e se tornou sede dum grupo da famosa 5ª Divisão do MFA, com o capitão Calvinho.
Faziam-se reuniões nocturnas, um bocado tuteladas por nós, é verdade, mas onde se registava uma enorme mobilização. Eram lá discutidas as questões todas da terra, com nomes, situações concretas apontadas a dedo, etc. As pessoas punham-nos ali os seus problemas locais, quer ao nível do desenvolvimento regional, quer ao nível das forças opressoras que aí imperavam e não as deixavam fazer nada. Havia uma enorme franqueza e entusiasmo populares.
Entretanto, na minha unidade, as coisas foram começando a mexer um pouco. Começaram a aparecer as assembleias da unidade, os soldados criaram estruturas democráticas para discutir com o comando e assim por diante. Deu-se então o 11 de Março, cujas ramificações chegaram inclusive à nossa unidade. Nos dias que o precedem, começa a notar-se uma agitação especial na messe dos oficiais, há uma grande onda de boatos e, na véspera do golpe, um major reaccionário que lá tínhamos aparece todo eufórico. Às 11 da manhã, ouço na BBC a notícia de um golpe em Lisboa. Reunimos logo um grupo de oficiais democratas e, com o tal capitão do MFA, dirigimo-nos ao comandante a exigir tomada de medidas. O comandante cede-nos de imediato o controlo da unidade. Assumimos o comando do quartel e montámos a sua defesa, nomeadamente a nível de anti-aéreas. Temíamos um ataque aéreo e também um ataque de cavalaria, que era uma arma muito fiel ao Spínola.
Não chegou a haver nada porque o COPCON dominou a situação. A nossa unidade, como unidade fiel, foi encarregada de fazer vigilância da fronteira. Vou para Monfortinho e estou para lá uns dez dias. Não prendemos ninguém, mas constou que parte dos implicados no golpe até fugiu por lá. Era uma fronteira muito vasta e nós tínhamos uma força pequeníssima. Tínhamos que andar a correr de um lado para o outro num jipe muito velho. A GNR no aeródromo não fazia puto e a Guarda Fiscal na fronteira idem aspas. Os implicados tinham vastíssimos apoios naquelas bandas e, com identidades falsas, até era facílimo passarem por lá.
A seguir a este período, virámo-nos para o saneamento da nossa unidade. Havia lá muitos elementos reaccionários e, então, a força dos soldados começou a vir ao de cima. Fizemos uma assembleia, de que eu fui um dos elementos da mesa, onde estava toda a gente, todos com direito a voto em situação de igualdade. Saneámos dois majores. Esse gajo reaccionário e um outro contra o qual não tínhamos provas nenhumas, mas que era conhecido por não fazer nada. Treinava lá no cavalo e andava por ali a mamar um ordenado chorudo. Os soldados entenderam, e bem, que era um parasita. Os dois foram para a rua, imediatamente. As sentinelas tiveram ordens para não os deixar entrar mais.
Esses oficiais vão para casa e lá recebem ordem para se apresentarem no Estado-Maior do Exército. Nós queríamos que eles fossem expulsos do exército mas eles ficaram por lá, até, suponho, ao 25 de Novembro. Lá conspiraram com certeza, como puderam, mas não comandaram mais tropa. Depois foram reintegrados e até no comando da unidade, suponho.
Estranhamente, é depois destes episódios todos, quando eu já estava bem integrado, que vem a ordem da minha transferência para Lisboa, para o RIOQ, em Queluz, que era uma das unidades operacionais do COPCON. Era uma unidade com quatro companhias operacionais (uma força importante, portanto) e ficava a escassos metros dos Comandos, que sempre foram a tropa com que os contra-revolucionários contaram. Cheguei lá, apresentei-me na unidade e fui logo visitar o Dinis de Almeida no RALIS, dizer-lhe para contar comigo para o que fosse preciso. Mas passa-se um mês e eu ando ali sem fazer nada, sem ser integrado em nenhuma estrutura dentro da unidade. Fui ter com o capitão que era lá o delegado do MFA, perguntar o que é que se passava e o tipo, para me calar, põe-me numa coisa que é a secção de Justiça. Aí já não tinha dúvida de que estava na prateleira. O descontentamento na unidade era grande porque os gajos do MFA, muito moderados, esquisitos, travavam tudo o que a malta de esquerda, da UDP, LCI, etc., tentava fazer.
Um dia, estava eu a dormir — eu dormia com a minha G3 carregada e uma Mauser — aparece-me um tenente das minhas relações a dizer-me que fulano, fulano e fulano (tudo malta de esquerda) têm ordem de se apresentar no Quartel-General. Convocamos então uma assembleia em que aparece todo o pessoal de esquerda e um número reduzido de soldados. Exigimos que o Otelo venha ali explicar o que se passa. No dia seguinte, todos os que falaram nessa assembleia recebem também ordem para se apresentarem no Quartel-General. A unidade estava a ser depurada para o 25 de Novembro. Conseguimos que um jornalista do Expresso, o Benjamim Formigo, entrevistasse o Otelo sobre o que é que se passava no RIOQ. O Otelo, candidamente como sempre, responde que havia lá uns elementos esquerdistas, perturbadores da ordem, que tiveram que ser afastados.
Passado algum tempo, sou colocado no Hospital Militar, secção de transportes. A minha carreira militar, por assim dizer, terminou aqui, embora eu continuasse na tropa ainda até ao 25 de Novembro. Militarmente, não fazia nada já. Embrenhei-me na vida política; nesta altura era já militante do PRP. Como militar do MFA, participei em várias assembleias de trabalhadores de fábrica, no âmbito da tentativa do PRP de criar os conselhos revolucionários.
Fiz depois uma digressão pelos Estados Unidos e Canadá para esclarecer sobre o 25 de Abril e angariar fundos que entreguei ao partido. Tive várias reuniões com tipos americanos e com emigrantes portugueses. Havia uma boa adesão de muitos emigrantes ao processo revolucionário. Cruzei-me lá com o José de Almeida da FLA, que tinha lá também uma grande implantação. Gajos da CIA seguiam-me todos os passos. Foram quinze dias que eu lá passei muito interessantes.
Entretanto, fiz também parte do secretariado dos SUV, formados pela convergência de diversas forças políticas revolucionárias. Quando os SUV aqui do Porto decidem promover a ocupação do RASP, é convidada uma delegação de Lisboa. A coisa começou com uma enorme manifestação de soldados e trabalhadores junto ao CICAP, ali perto do palácio de Cristal. Eles estavam barricados lá dentro, os sargentos e a malta deles. A situação tornou-se tensa e então a direcção dessa luta, que pertencia aos SUV do Porto, decidiu deslocar o pessoal para o RASP. Foi tudo por aí fora, numa enorme manifestação pela ponte de D. Luís e a tropa acolheu-se toda no RASP. Depois deu-se o que foi para mim um dos momentos mais decisivos da revolução, ao nível do confronto de forças. É a história da ocupação do RASP, que está aliás bem documentada no jornal da luta editado pelo padre Mário de Oliveira, na altura jornalista do República.
Todas as forças empenhadas na revolução participavam nos SUV, à excepção do PC que tentou boicotar e criou umas estruturas paralelas, aliás sem qualquer êxito. Tínhamos malta muito interessante, ao nível de soldados e oficiais subalternos, em unidades de Norte a Sul do país. Acabámos por nos reunir todos aqui no RASP. Criou-se ali uma grande força que meteu um medo enorme a quem, nesse mesmo momento, preparava já o 25 de Novembro. Eu estou convencido que o Pires Veloso teve medo que ihe caíssem umas bombas no Quartel-General. Sei que ele dormia na cave, lá nos fundos do quartel.
Reuniu-se pois ali no RASP uma força de respeito. Eles lá não tinham alimentos para toda a gente, mas vinham tractores de Arouca e outros sítios com comida oferecida pelos camponeses. Não estávamos de modo nenhum isolados.
Lamentavelmente, nunca se criou um comando revolucionário autónomo. Havia lá imensa malta de fora que... nunca foi armada. Eu fazia parte da Comissão Militar e, é claro, não queríamos estar ali sem fazer nada. Quando se dá o confronto com as forças da PM, os tiros ouviam-se lá fora, falava-se na hipótese de um assalto dos fuzileiros. Nós exigimos ser armados e organizados em pelotões. Ganhámos uma votação nesse sentido. Bom, vamos ser armados, temos que ir aos paióis buscar as armas. Entretanto, por processos velados e obscuros começa-se a discutir que isso é perigoso não sei o quê e etc. Dá-se uma nova votação e perdemos. Nunca ninguém de fora foi armado no RASP.
Entretanto, vindo de Lisboa, chega lá o Fabião, um tipo habilidoso, com a missão de arranjar uma solução para o problema. Uma solução que dê cabo daquilo, como é óbvio. O general Fabião reúne ali com uns tantos gajos, conotados com o PC, sobretudo e também do PS. Na altura, os reaças eram todos do PS. A reunião é secreta, de fora não se sabe de nada, é claro. E às tantas dá-se uma manobra muito curiosa: alguns desses fulanos saem cá para fora aos gritos de “vitória, vitória, vamos todos embora”. Foi exactamente assim. E há malta que começa mesmo a sair do quartel. E acaba a luta do RASP. Vitória deles e derrota nossa. A única coisa que o Fabião prometeu é que a malta que estava ali fora das suas unidades não seria castigada. Foi mesmo uma derrota.
★★★
“Decidiu-se formar piquetes à entrada da fábrica para fiscalizar entradas e saídas. Os operários da Cambournac continuam a sua luta ocupando a fábrica no fim de semana. Os 800 trabalhadores da empresa não irão para a rua, haja falência ou não. Estamos dispostos a lutar pela posse daquilo que sempre nos foi roubado e não estamos passivos à espera do governo nem da lei, pois só a Classe Operária pode libertar-se”.
(Comunicado dos trabalhadores da Cambournac, Dezembro de 1975)
“Em Rio Maior o povo soube reagir às afrontas e não deixou passar os jornais que mentiam descaradamente acerca daquilo que ali se passou. É um exemplo que pode ser seguido noutras regiões.”
(Discurso de Mário Soares em Braga, depois da queima do Diário de Lisboa e do Diário Popular, a 14 de Julho em Rio Maior)
Inclusão | 23/11/2018 |