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Eu trabalhava na Cergal, em Belas, tinha vindo há pouco tempo da guerra colonial e colaborava com o grupo dos católicos do Luís Moita. A Cergal era uma empresa de gente nova, sem influência do PC, e isso facilitou a rápida formação da comissão de trabalhadores, visto que o PC nessa fase inicial queria era comissões sindicais. Convocámos um plenário em Sintra um bocado a medo, pensando que ia aparecer pouca gente, mas afinal caiu lá a fábrica em peso. Até os administradores e os directores, todos muito amáveis. Um dos patrões disse: “Vocês podem começar a falar, que eu tomo apontamento das reclamações”. O pessoal a princípio estava um bocado medroso, até que às tantas o Lopes, que era o mais aguerrido, meio anarca, grita “Alto!”, chama-me a mim e a alguns outros operários para a mesa e começa-se a discutir. Daí convocámos outro plenário para dentro da fábrica, na semana seguinte. Aí é que foi eleita a CT. E, como não havia sindicato do sector, arrancámos para a sua formação e aí tivemos os primeiros confrontos com o PC, que se opunha sempre que não conseguia controlar as iniciativas.
Entretanto dá-se o processo normal de radicalização. A CT, que tinha começado com preponderância de empregados e técnicos e com um director lá dentro, sobrinho do conde de Caria, à medida que o pessoal se foi politizando, cortou com as conversas social-democratas de “trabalhar em conjunto pelo bem da empresa” e começámos a dar no duro: exigimos aumentos dos salários, de 1.400$ para 6.000$; os tipos até caíram de cu! Também reclamámos e conseguimos que os salários das mulheres tinham que ser iguais aos dos homens.
As mulheres, tanto as da linha de produção como as da limpeza, foram ali a nossa grande base de apoio. Porque entretanto rebentou a bronca dos abusos sexuais, que eram corriqueiros da parte dos chefes. Só passados uns meses é que as raparigas ganharam coragem e vieram à comissão contar os casos. Exigimos logo que os chefes fossem transferidos para fora das secções das mulheres. Depois entrámos mesmo pelo saneamento: corremos com as chefias, inclusive o chefe de pessoal e o director que tinha feito parte da primeira comissão! Passou-se tudo no meio de uma certa confusão, com conflitos pessoais, e quando os mais politizados saíram, em 75, o ambiente decaiu um bocado. Mas o pessoal não ficou com nenhuma má recordação desse período; as mulheres, sobretudo, viram a sua situação melhorar muito.
O PC e os grupos m-1 iam-se lá infiltrando e, como havia competição, a CT decidiu fazer reuniões de informação com os partidos políticos; fizemos uma com o PC e outra com a UDP, que tinha acabado de se formar. Mas eu estava mais interessado na organização de base dos trabalhadores.
Em paralelo com a criação da CT da Cergal, tínhamos arrancado com a comissão Interempresas. Entrámos em contacto com os CTT, que já estavam em luta e, pouco a pouco, com pessoal de várias empresas da região de Lisboa — Lisnave, TAP, Melka, Efacec — assim como trabalhadores individuais. A Interempresas deu apoio aos processos de luta da TAP e dos CTT, editava a sua folha e teve um papel de coordenação interessante. Teve o seu ponto alto na manifestação de 7 de Fevereiro, que foi também o seu fim, porque os activistas foram todos para os partidos.
O 7 de Fevereiro foi, para mim, uma jornada histórica. Resolvemos protestar contra o desemprego e contra a entrada no Tejo duma esquadra da NATO. A rádio começou logo de manhã a avisar que a manifestação estava proibida pelo MFA, o Octávio Pato a fazer avisos que ninguém fosse, que havia o perigo de provocação, que os marinheiros americanos deviam ser recebidos com recordações do Portugal democrático, etc. Não ligámos. Tínhamos quatro pontos de concentração e convergimos para o Marquês de Pombal. Era gente que nunca mais acabava, tudo em fato-macaco, a gritar “Fora a NATO, fora a CIA, Independência Nacional”. Os tipos ficaram acagaçados e à última hora lançam um comunicado a dizer que estava autorizada. Veio um oficial do COPCON pôr-se à disposição para manter a ordem mas nós dissemos que não fazia falta, que a manifestação sabia tomar conta de si.
O Jaime Neves estava na Duque de Loulé com a tropa e com os chaimites, para não nos deixar passar junto à embaixada americana. Fomos ao pé dele, ele teimava que ali não passava ninguém. Nós dissemos: “Vamos consultar os nossos camaradas, e se eles decidirem que é de avançar, passamos mesmo”. A malta gritou toda “em frente!” e o tipo quando viu a multidão a avançar para os cordões teve que mandar os soldados recuar, foi-se pôr em torno do edifício da embaixada e nós passámos.
Por fim, chegámos à praça de Londres, estavam lá os soldados do Ralis a proteger o Ministério do Trabalho. Começou tudo a gritar “os soldados ao lado do povo”, eles viraram as armas para baixo e começaram a saudar com o punho cerrado. Foi a primeira grande união de trabalhadores e soldados.
Para nós, que em grande parte ainda não estávamos filiados em nenhum grupo nem partido, a Interempresas era vista como um esboço de sovietes, órgãos apartidários mais combativos que os sindicatos. Depois desta manifestação já não quis nada com o PC e liguei-me à UDP. Muitos operários como eu que estavam nesse processo aderiram nessa altura.
Outro episódio que tem sido muito caluniado foi o assalto à embaixada de Espanha. Foi uma reacção espontânea de indignação quando se soube do crime do governo franquista. Agora é apresentado como vandalismo porque não temos voz para fazer ver a nossa razão. Perante a barbaridade dos cinco jovens garrotados, a destruição realizada tem pouca importância. Só um protesto violento estava à altura; se tivéssemos ido para uma grevezinha de fome ou uma manifestação simbólica eles riam-se de nós. Tinha que ser a doer. Já se sabe que, em actos destes, há sempre tipos marginais que aproveitam para pilhar, mas é um risco que se tem que correr.
Fazem essa gritaria toda porque não querem que se espalhem os “maus exemplos”. Já anteriormente, quando foi do 28 de Setembro, entrámos na sede da CIP e rebentámos-lhe com as instalações e a mobília, porque eles estavam implicados na “maioria silenciosa”; e é interessante que dessa vez os jornais pouco falaram no assunto. Como combatente antifascista e operário radical, não fiz mais que a minha obrigação e assumo-o sem reservas.
★★★
“Os trabalhadores da Sociedade Central de Cervejas decidiram proibir a entrada dos administradores e tomar nas suas mãos a produção até serem satisfeitas as suas reivindicações: suspensão imediata das promoções, fim de todos os privilégios de alguns grupos, redução do número de administradores, exigência de não distribuição de lucros aos accionistas nem gratificações aos administradores, libertando fundos para auto financiamento”.
(Comércio do Funchal, 13/2/75)
“Em muitas empresas a luta contra o desemprego e os despedimentos tem passado pela recusa de horas extraordinárias. É também fácil verificar que, se houver uma redução de horário de trabalho, mais trabalhadores terão emprego. Por exemplo, se dois milhões fizerem menos uma hora por dia, podem-se criar 250.000 novos empregos. Camarada, é preciso seguir o exemplo dos trabalhadores que têm lutado com determinação. Chova ou faça vento, é preciso vir para a rua lutar com firmeza contra o desemprego e o sistema capitalista que o origina”.
(Trabalhadores em luta, folha das reuniões de trabalhadores Interempresas, Fevereiro de 1975)
Inclusão | 23/11/2018 |