Cinco Meses Mudaram Portugal

Otelo Saraiva de Carvalho


2 — As incidências do «28 de Setembro» e o fracasso da manifestação da «maioria silenciosa»


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CADERNOS PORTUGÁLIA — Falou há pouco em apreensões de armamento que, com certeza, depois de 25 de Abril, vêm sendo frequentes e têm aumentado, considerando-as mesmo hipertrofiadissimas ao nível do 28 de Setembro. Sabe certamente que determinadas facções do público, ligadas a correntes direitistas e à reacção, pretendem negar a existência de armamento, minimizando isso mesmo, dizendo que se tratava apenas de umas caçadeiras, etc. Que poderá dizer acerca disto?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Realmente a seguir ao 25 de Abril, as nossas forças militares, actuando já sob controlo do embrião do COPCON, apreenderam bastante armamento, que ia do revólver «Smith and Wesson» à carabina «Winchester». Depois desse período, a captura de armamento foi diminuindo. Tivemos um conjunto de denúncias e de notícias que nos chegavam constantemente de que haveria armamento em quintas, sobretudo na zona do Alentejo, que haveria mesmo entrada de armamento no País através das fronteiras marítima e terrestre, vindo de Espanha, mas a verdade é que até agora não conseguimos detectar mais nenhum depósito ou armazém de armamento. Quanto ao 28 de Setembro, no contacto havido entre um elemento nosso e o intermediário que necessitava de adquirir para a noite de 27 para 28 de Setembro 100 armas automáticas, foi por este denunciado que teriam já 40 mil armas. Até agora essas armas não foram descobertas. Não sei mesmo se ele se estaria a referir a qualquer possibilidade, de que teria convicção plena, de que as armas seriam as existentes em quartéis que poderiam aderir ao 28 de Setembro. No entanto o 28 de Setembro provou, de forma concludente, não haver qualquer força militar de qualquer ramo das forças armadas que aderisse à ideia da contra-revolução. Aquilo que nas barragens — e eu só posso referir-me às barragens que é o facto concreto que temos — as forças militares capturaram e levaram para os quartéis foi na base de caçadeiras, matracas, pistolas, armas brancas, etc., incluindo nestas punhais, facas de ponta-e-mola e catanas. Em números, posso referir 636 caçadeiras, 88 pistolas, 240 matracas e congéneres, 8 400 cartuchos de munições diversas e umas 25 pistolas de alarme. Tudo, portanto, armamento menor. Embora esse armamento, considerado só por si, não tenha de facto grande importância, custa-me admitir que num fim de semana haja pessoas que venham do Alentejo ou do Ribatejo para Lisboa munidos de caçadeiras. Admito que se saia de Lisboa para o Alentejo para caçar, mas não que se venham caçar perdizes para Lisboa. Portanto, sendo armamento de menor importância e não existindo de facto armas de guerra como algumas pessoas supunham que existisse, ele destinava-se, no entanto, essa é a minha convicção, a provocar na Praça do Império, onde se iria desenrolar a tal manifestação da «maioria silenciosa», uma batalha campal — a qual, é a ideia que tenho, poderia vir a provocar um tal estado de desordem que levasse finalmente à instauração do que já estava previsto desde Junho, ou seja, do estado de sítio — situação que era desejada por certos elementos no poder. Como sabem, é um tipo de situação que permite a instalação de um poder absoluto, que dá a possibilidade, a quem o milita, de mandar fuzilar pessoas, de prender quem quer que seja, sem qualquer mandato, e de exercer todo o tipo de arbitrariedades.

CADERNOS PORTUGÁLIA — E está convencido que, por esse caminho, se abriam as portas a uma ditadura militar por mais umas dezenas de anos?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Absolutamente. Sem dúvida nenhuma que, com a instauração do estado de sítio, seria verdade que a estas horas eu não estaria, de certeza, no. lugar em que estou.

CADERNOS PORTUGÁLIA — No meio das prisões efectuadas em 28 de Setembro, há muitas pessoas que têm sido postas em liberdade por nada se provar contra elas. Mas que se passa com muitas outras que continuam presas em Caxias e parecem estar implicadas nos acontecimentos de 27 e 28 de Setembro?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Em acontecimentos deste género surgem sempre uns culpados menores (os que vêm de caçadeira para Lisboa) e outros que são apenas apanhados na rede. Ao longo das averiguações que têm sido feitas, chegou-se à conclusão que muitos dos elementos que foram capturados e têm sido soltos eram indivíduos encarregados de determinada missão, que era participar na manifestação da «maioria silenciosa» e que teriam sido avisados para trazerem uma arma de qualquer tipo para uma tomada de atitude ou intervenção nessa manifestação da «maioria silenciosa». Nestas condições, é sempre extremamente difícil chegar aos pontos mais elevados, mas estamos a fazer um inquérito seguro, embora lento, que talvez nos leve a chegar aonde queremos. Estamos empenhados em que as investigações cheguem tão longe quanto possível, para tentarmos detectar quem realmente fomentou e é, portanto, o verdadeiro culpado e possa definir as verdadeiras intenções dessa manifestação.

CADERNOS PORTUGÁLIASe nos permite, voltamos à pergunta que há pouco lhe queríamos fazer. Há dias vimos um filme no «Monumental», um filme italiano intitulado «Inquérito ao Homicídio de um Estudante». É um filme de actividades ultra-esquerdistas, de repressão policial, mas em certa altura fala-se em «maioria silenciosa». O filme tem quatro anos, talvez, o público desata à gargalhada e, naquele momento, apercebe-se de que a terminologia política daquele vocábulo já é mais antigo do que suspeitava. Mas, regressemos ao discurso do general Spínola de 10 de Setembro, em que é a primeira vez que ele fala em «maioria silenciosa». Ao vosso nível, portanto, de militares profundamente metidos no vosso Movimento, este discurso não lhes trouxe qualquer alarme especial como aconteceu ao homem de rua? Não lhe parece que a chamada do general Spínola ao poder é a abertura a um processo «direitista» logo implantado no dia 26 de Abril?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO — Quanto a essa sensação de alafme, posso dizer que já vinha de há muito tempo, de há uns meses atrás. Discordo quando diz que a partir do 26 de Abril se instalou ou pretendeu instalar um regime de direita, e isto porque foi o próprio general Spínola que, com grande espanto nosso, escolheu : convidou para o Governo Provisório o Dr. Álvaro Cunhal, que é agora profundamente atacado por todos os spinolistas que dizem que o Dr. Cunhal paradoxalmente, mercê do seu profundo sentido demagógico e das suas reais e dificilmente ultrapassa veis qualidades de chefe militar, de criar uma abertura e uma condução política de cariz perfeita mente democrático (de que os Congressos do Povo são um exemplo), fazendo declarações públicas em discursos e entrevistas, cuja audácia e irreverência abalavam perigosamente os alicerces aparentemente sólidos do Governo Central e lhe granjeavam enorme audiência e popularidade, junto de militares e civis.


Inclusão 06/06/2019