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Publicação: Documento produzido por um grupo de mulheres ligadas à LCI, e debatido no Circulo Cultural de Setúbal.
Fonte: Documento gentilmente emprestado por Carole Bonifas.
Transcrição e HTML: Graham Seaman.
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CAMARADAS:
Este texto tem como fim suscitar o debate dentro da organização para se definir tanto a necessidade de um grupo de estudo sobre a libertaçao da mulher como as posições da organização sobre este mesmo assunto e as medidas a adoptar futuramenté com vista a uma actividade organizada. Para isso tencionamos focar vários pontos segundo a opinião vinda do debate de um grupo de camaradas. Não pretendemos apresentar posições definidas sobre o assunto nem abordar todos os temas que à opressão de mulher leventa mas apenas dar uma contribuição para a inçrodução do debate.
Não existem neste momento estatísticas sistematizadas que nos permitam avaliar a situação da mulhar na sociedade portuguesa, no actual contexto económico. No entanto, continua a ter actualidade e continuam a ser interessantes para o estudo da situação da mulher alguns dados anteriores ao 25 de Abril de 74 que ao mesmo tempo nos vão permitir explicar a trajectória da radicalização da mulher portuguesa desde então.
Do total da população feminina, no princípio da década de 70 apenas 19,2% eram consideradas economicamente activas sendo as restantes 80,8% não economicamente activas constitúidos na maior parte por donas de casa, domeésticas, estudantes, etc. Estes números implicam que do total da população economicamente activa em Portugal apenas 25% fossem mulheres. (Para os homens a percantagem é respectivamente de 62,3% e 37,7%).
Destes 25% as mulheres distribuem-se claramente pelos sectores mais retrogados da economia e consequentemente mais mal pagos. São de destacar o sector dos texteis (mais de 48% do total do sector), da alimentação, vestuário e também agricultura, assim como o sector de serviços que emprega 34,6% da população feminina economicamente activa.
No que se refer aos salários de então as mulheres eram evidentemente o sector mais mal pago auferindo em média cerca de 40$00 diários; quantia que variava consoante o sector. Como factor interessante ainda é de referir que à maior percentagem de mulheres ditas cconomicamente activas se encontra entre os 15 e os 24 anos enquanto que, no caso dos homens, é entre os 15 e os 19 que se encontram das médias mais baixas.
Este enumerar de dados embora não actualiziádos serve de báse — entre outros — para uma análise da actual situação e dos factores dã sua radicalização, Assim poderemos tirar já algumas conclusões:
Como na maior parte dos países capitalistas avançados as mulheres distribuem-se na grande maioria por sectores como textêis e vestuário que, alem de terem condições de trabalho péssimas dado o baixo grau de mecanização (trabalhos extremamente alienantes, cronometrados), são sempre os mais mal pagos. Isto coloca desde logo a questão da qualificaçoo à que muitas vezes a mulher não tem accesso até porque quando se trata de mandar estudar os filhos se dá prioridade aos rapazes pois serão os futuros "chefes de família, enquanto que a mulher, em principio, só precisa de ficar em casa,
Nestas condições a mulher vê-se obrigada à aceitar qualquer trabalho a qualquer salário pois não tem nenhuma qualificação profissional.
É ainda importante o facto de a maioria das mulheres estar empregada entre os 15 e os 24 anos. Após estas idades há uma baixa acentuada que é facilmente explicada pela falta de creches e outras infraestruturas que obrigam a mulher — quando nascem os filhos — a voltar para casa para executar todas as tarefas domésticas.
Claro que um salário tão baixo - que é sempre considerado do ponto de vista de ajuda financeira ao marido e não como uma possibilidade de independencia economica para a mulher - um salário tão baixo, diziamos, não compensa o dinheiro gasto na creche ou na ama.
Ao fim de uns anos é extremamente difícil, se nao impossivel, à mulher arranjar de novo um emprego pois, além de tudo o mais o patronato prefere pessoal jovem em boas condições físicas que permitam dar o máximo da produção. Além disso têm uma taxa de absentismo menor pois não têm filhos para cuidar e estão dependentes do pai ou do marido o que também dificulta a possibilidade de reivindicação.
De tudo istá podemos concluir que o conjunto das lutas com grande participação da mulher se tem verificado quase exclusivamente nas fábricas em que as operárias, com idades muito jovens, se vêem confrontadas com condições exageradas de exploração.
Por outro lado nota-se no sector de serviços — comércio, escritórios, — meio portanto pequeno-burguês — ume radicalização de cada vez maior numero de muiheres que com salários um pouco mais elevados e com maior independência económica se vêm já confrontadas com outro tipo de problemas que elas colocam como ponto essencial do seu caderno réivindicativo: a necessidade de creches e infantários, possibilidade das mulheres terem acesso a lugares de chefia, como foi o caso das lutas surgidas no sector comercial da Ciba-Geigy, Caixa Geral de Depósitos, etc.
Quanto ao grande número de "donas de casa" não se fez sentir qualquer movimento significativo o que se verifica até à data pela fraca participação de mulheres em CMs. e actividades nos bairros.
Antes de mais é preciso ter em conta que, duma maneira geral, a proletarização da mulher, isto é à sua integração na produção, é condição essencial para a sua tomada de consciencia.
Foi alias isso que levou Engels a afirmar que a sociedade capitalista trazia em si as próprias condições para destruir as bases da família burguesa e, através da integração crescente da mulher na produção, preparar a sua próprice libertação, o fim de "supremacia masculina",
E se essa afirmação continua em parte a corresponder à verdade é preciso não esquecer que essa proletarização não é, no entanto, suficiente para que a mulher chegue automaticamente à necessidade da sua organização. E essa organização é indispensável para que a sua luta se torne parte integrante da luta da classe operária, para que as suas reivindicações específicas sejam também eixos de luta da classe operária no seu conjunto.
No que se refere à situação concreta da mulher portuguesa torna-se bem claro o que atrás foi dito.
A integração da mulher na produção deu origem a que as primeiras lutas — mesmo antes do 25 de Abril — tivessem lugar, provocadas pelas condições exageradas de sobrexploração nas fabricas (texteis, material electrico.) Essas lutas não foram no entanto suficientes para que as próprias mulheres tomassem consciencia de opressão especifica de que são vitimas, isso em parte dadas as condições em que se desenrolava qualquer luta durante o fascismo (sem discussão, nem organizeção).
As lutas que se desenvolveram após o 25 de Abril e de que as mais famosas são a Sogantal, Charminha, Portugália, etc. já permitiram, precisamente porque essa discussão já era possivel que se colocassem alguns dos eixos essenciais da opressão ãa mulher se bem que nunca se ultrapassassa o nivel regional, e que por isso as conclusões dessas lutas, e as suas formas de organização não tenham sido continuadas.
É nessas lutas que as mulheres se vêm sempre confrontadas com toda uma série de dificuldades práticas — quando têm filhos não sabem onde deixá-los, os maridos ou os pais opõem resistencia a que fiquem de piquete na fábrica, etc, o que leva a que esses problemas sejam colectivamente discutidos e que também pela primeira vez se ponham em causa, na prática, uma série de tabus — ao ficar na fábrica todo o dia e toda a noite torna-se evidente que não é obrigatório nem natural que seja ela a efectuar todo o trabalho em casa, etc.
São extremamente importantes todas às acções atê agora levadas à cabo pelas mulheres do sindicato dos serviços domésticos que, por si só, chegaram à conclusão da necessidade de pôr em prática mecanismos colectivos para efectuar tarefas domésticas — lavandarias, e realização na prática de um restaurente-cantina onde todos os trabalhadores da zona podem almoçar e jantar a preços acessíveis sendo todas as tarefas feitas colectivamente pelas próprias trabalhadoras, que assim, em vez de estarem individualmente ao serviço das familias burguesas, se colocam colectivamente ào lado dos trabalhadores.
Todas estas lutas têm surgido autonoma e espontaneamente e apesar de não serem esquecidas (pelo contrário são sempre lembradas como exemplares) continuam contraditoriamente isoladas ou pura e simplesmente sem continuidade. Elas representam claramente o aparecimento embrionário dum movimento de mulheres a que faltou uma actividade de coordenação e centralização das iniciativas que possibilitasse o seu alastramento e reformo,
Isto coloca portanto uma questão clara: a do alargamento e continuação destas experiências e sobretudo da sua unificação e estruturação permanentes. É preciso discutir porque razão nada se tem feito nesse sentido e iniciar um debate acerca dos moldes em que se pode levar a cabo essa tarefa. Duma maneira geral nenhuma organização operária apresentou posições definidas sobre o problema da mulher que raramente tem sido discutido, à excepção dos períodos eleitorais em que todos os partidos dedicam parte do seu tempo na rádio e na TV às mulheres portuguesas.
O PC fê-lo numa perspectiva exclusivamente éleitoralista através de uma propaganda que não só não pôe em causa a família burguesa como a defende ("queremos um futuro melhor para os nossos filhos e o bem-estar e segurança da nossa familia") como é afirmado num panfleto distribuido para à Assembleia da Républica em que (quase) se faz à ápologia da mulher como executora das tarefas domésticas e em que se apela ao voto no PC porque: "o ano passado só o meu marido votou no PC mas desta vez vou tambem votar no Partido Comunista Português"...
As outras organizações à esquerda do PC pouco ou nada se têm manifestado sobre o assunto sendo de referir a recente criação da UMAR (claramente ligada à UDP) que pretende sobretudo chamar às mulheres para os Gdups (UDP) mas que apenas coloca o problema da luta da mulher contra a exploração na fábriea, os problemas de habitação etc, sem que do seu manifesto se possa concluir que as mulheres têm reivindicações especificas à avançar...
Dentro das empresas os exemplos também não são muito animadores.
Primeiro, como se sabe, é muito reduzida a participação das mulheres quer na vida sindical, quer nas CTs.
Segundo, não são raros os casos de empresas como a CUF, Socel, Fametal em que nas lutas após o 25 de Abril foi votado pelo conjunto dos trabalhadores a diferenciação entre salário mínimo para homens e salário mínimo para mulheres sem atender ao facto do trabalho ser igual.
Conclusão: por um lado são as organizações operárias que ou esquecem completamente o problema da organização das mulheres, ou negam pura e simplesmente a necessidade de um movimento autónomo. Por outro lado, os exemplos citados mostram claramente que e organização das mulheres não passa, não pode passar, numa primeira fase exclusivamente pelas organizações tradicionais da classe operária. Não basta dizer que a mulher tem de participar mais na vida sindical ou na empresa, é preciso fazer algo para que essa participação seja possível.
É evidente que na sua maioria os trabalhadores portugueses ainda não deixaram de ver na mulher a pessoa que tem por obrigação executar as tarefas domésticas e tratar dos filhos mesmo quando está empregada (e nesses casos é mais uma contribuíção, sempre reduzida, que ela traz ao salário do "chefe de família").
Na pior das hipoteses, mas muito frequentemente o trabalhador encara a sua mulher como um ser claramente inferior que pode dominar em casa como o patrão o domina a ele em cada fábrica.
Tudo isto mostra claramente a necessidade da consciencialização da mulher e, como consequencia da sua organização. Porque uma coisa é certa: terá de ser a própria mulher a criar as condições para a sua emancipação e, ao fazer esta tarefa, ela preparará simultaneamente a emancipação do próprio homem.
Para uma discussão sobre o que é o movimento de mulheres e o porquê da sua existencia temos necessáriamente de nos reportar às experiências dos outros países capitalistas da Europa, pois em Portugal muito há ainda por fazer.
Este movimento não é nada de homogéneo, perfeitamente caracterizado ou sociológicamente definido. Desde o grupo de mulheres que se forma em determinada fábrica, pãssando por um grupo de mulheres ou donas de casa neste ou naquelo bairro, até um grupo de mulheres num sindicato, todos eles podem ser componentes de um movimento de mulheres. Sociológicamente diferenciado, autónomo em relação aos partidos poiíticos e em relação às organizações tradicionais dos trabalhadores, o que não signifíca, e isto é extremamente importante, que seja indápendente em relação à classe operária. Muito pelo contrário, este movimento agrupa-se numa base de classe (o facto de diversas tendências políticas existirem dentro dele não quer dizer que seja interclassista) e permite agrupar, consciencializar e chamar à luta um número crescente de mulheres. O seu aparecimento ê essencial para que as organizações tradicionais da classe operária tomem a seu cargo a defesa daS reivindicações específicas das mulheres.
É este movimento que existe já, mais ou menos estruturado, nos países capitalistas da Europa e de que em Portugal nada mais hã senão pequenos embriões, aqui e alí sem qualquer coordenação entre si, sem que qualquer debate os atravesse.
É de referir o exemplo de Espanha em que, num curto espaço de tempo, se têm desenvolvido toda uma serie de experiências de auto-organização das mulheres nos bairros, empresas, universidades, que, ao mesmo tempo que apoiam activamente as lutas operárias em geral, colocam alguns dos eixos essenciais da luta pela libertação da mulher.
É importante introduzir um parentesis sobre as causas gerais da crescente radicalização e organização da mulher que referiremos muito sumáriamentes com a intenção de suscitar o debate também em torno desta questão,
Assim, são as próprias condições de crise económica e social que chama as mulheres para a produção ao mesmo tempo que agrava as condições de vida (inflacção, crise de habitação) que poem em causa valores e instituições burguesas como a familia. Por outro lado a utilízação crescente dos métodos contraceptivos (cuja introdução no mercado se liga evidentemente aos interesses e lucros dos capitalistas) deita por terra os "slogans" sobre o papel "reprodutor" da mulher ao mesmo tempo que lhe dá a possibilidade de do escolher conscientemente o número de fílhos e a liberta de um grande número de tarefas.
Muitos camaradas interrogam-se sobre a necessidade de um movimento de mulberes que, dizem, cairá Sempre na luta de sexos, e afirmam que a consciencialização da mulher, a compreensão dos seus problemas especificos só se poderá fazer na prática através da sua integração nas lutas quotidíanas da classe oporária em geral.
Afirmar isto é esquecer que não ê só a mulher a vitima de uma alienação que lhe dificulta a sua tomada de consciência, mas tambem o conjunto da classe operária.
E isto quer dizer que a integração da mulher na luta é dificultada não só pela barreira imposta pela burguesia mas tambem pelos obstáculos que lhe são postos pelos seus companheiros de luta. Alguns exemplos práticos foram referidos atrás e não é demais repetir que para muitos operários o lugar da mulher continua a ser em casa e são eles próprios, em certas alturas, a defender o despedimento priorítário das mulheres porque o seu lugar na produção é visto, por vezes como concorrência. E isto não acontecia só no século XIX em que a entrada da mulher no sindicato era proibida...
Afirmar isto é ainda esquecer que à opressão da mulher está enraízada na mentalidade da classe operária sendo tambem interiorizada nas próprias mulheres, e que esses problemas não desaparecem nas lutas que desenvolvem. O movimento de mulheres ê permanente, não desaparece com à tomada do poder pelo proletariado.
Só organizadas — e essa organização tem de partir delas próprias — as mulheres podem finalmente tomar consciência da sua exploração e opressão, podem quebrar o seu isolameênto e passividade, tomar consciência da sua força e da necessidade do contributo da sua luta para o derrube do sistema capitalista e a vitória do proletariado, defender elas próprias os seus interesses e ao mesmo tempo fazer com que as organizações operárias tomem a seu cargo as reivindicações especificas das mulheres,
Visto tudo o que foi exposto atrás uma pergunta é necessário fazer: por que a formação deste grupo?
Porque achamos que deve haver um centro coordenador encarregue de discutir e organizar as posições a ter no movimento autónomo de mulheres; com posições concretas e definídas exprimindo as posições da organização.
Assim pretendemos abrir o debate em toda a organização de modo à que todos os camaradas participem no inicio da intervenção da LCI neste sector.
Mas tambem porque achamos (e não é demais repetir) que deve existir uma intervenção dirigida concretamente para os problemas da mulher, para que estes e as reivindicações à ele ligadas não fiquem diluidos no conjunto das reivindicações do Movimento Operário, e sobretudo que não sejam subestimadas.
um grupo de camaradas
25/9/76