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Primeira Edição: O artigo original circulou inicialmente no Brasil em edição mimeografada datada de 1971, logo após a posse de Allende. Foi traduzido para o francês (Lês Temps Modernes N°. 310, maio de 1972, Paris) e para o alemão (Probleme des Klassenkampfes N°. 3, maio de 1972, Berlim), em versão revisada e ampliada. Este complemento foi traduzido a partir da edição francesa. Acrescente-se que há pequenas diferenças entre o texto comum francês e português, mas não foi possível decidir por um deles sem consultar originais, dados da época, etc. Assim, optou-se por manter o texto original existente em português e restringir a tradução à complementação que consta do texto em francês. (Nota dos Editores).
Fonte: Centro de Estudos Victor Myer
Tradução: da versão em francês por Silvia Helena Valença Paiva
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Leia a primeira parte deste texto
A burguesia chilena sabe que perdeu o controle do processo político. Ela também sabe que ainda possui as chaves do poder político mas ela corre um sério risco de perdê-las a partir do momento em que perdeu o governo.
Nós dissemos que imediatamente depois da investidura de Allende, depois da derrota das tentativas de putsch, os principais representantes da classe dominante adotaram a tática do recuo temporário. No entanto, essa tática começou a se completar por provocações efetuadas em momentos bem escolhidos. Mas essas provocações ainda eram façanhas de setores minoritários da burguesia.
O imperialismo norte-americano não pôde apoiar-se em bases internas suficientes para operar um golpe de Estado. Uma intervenção direta do imperialismo teria dividido os próprios partidos da direita tradicional. A atitude de desconfiança e de hostilidade do governo Nixon não chegou, entretanto, até um ponto de ruptura dos laços diplomáticos com o Chile. Mas o embaixador americano durante o governo Frei, que apoiou abertamente a candidatura Alessandri e que, sem nenhum pudor, invocou o "perigo" que ameaçaria os agentes americanos no Chile depois do assassinato de Mitrione pelos Tupamaros no Uruguai, foi mantido. Esse Mr. Korry permaneceu em seu posto até abril de 1971, organizando a chegada de centenas de novos agentes da CIA e estimulando conspirações e sabotagens. Foi somente depois das eleições de abril de 1971 que Nixon adotou, ele também, uma tática de mais longo prazo. Naquele momento os EUA preferiram deixar para os "gorilas" brasileiros o papel mais agressivo.
Não tendo o Brasil fronteiras com o Chile, o primeiro passo da ditadura brasileira para cumprir o seu papel de principal cão de guarda do imperialismo, consistia em colocar um governo de direita na Bolívia. Depois disso seria estimulado o revanchismo boliviano na questão do acesso ao mar (sabemos que a Bolívia perdeu suas duas províncias marítimas quando da guerra do Pacífico, que terminou em 1883 com a vitória do Chile). A intervenção na Bolívia seria portanto o primeiro episódio de uma aventura que acabaria no Chile. Mas as tentativas feitas até aqui mostraram-se desastrosas.(2)
Entretanto, nas circunstâncias atuais, a burguesia chilena não poderia contar muito com seus colegas latino-americanos. Ela teme sobretudo que as iniciativas intervencionistas exacerbem o processo revolucionário interno. Assim que Allende anunciou a nacionalização das minas, o El Mercurio apressou-se em apoiá-lo, declarando que se tratava de medida inevitável, dando com isso uma piscada de olho para o imperialismo (paciência, não precipitemos as coisas...). Um pouco mais tarde, quando os membros brasileiros da chamada "Sociedade Interamericana de Imprensa" denunciaram, sem nenhum pudor, as ameaças sofridas pela "imprensa livre" do Chile (enquanto a imprensa brasileira não é nada mais do que uma agência de informação da ditadura militar), os porta-vozes da direita chilena foram forçados a se afastar da delegação brasileira, pois se não o fizessem ficariam completamente desacreditados aos olhos da opinião pública do Chile.
Esta tática defensiva foi adotada de maneira empírica. A derrota eleitoral, as divisões internas, a insegurança diante do crescimento do processo revolucionário e o sentimento da impossibilidade de uma "ajuda estrangeira" impediram que a burguesia adotasse desde o início uma tática bem orquestrada. Em 1971, portanto, ela teve que começar o combate de maneira dispersa.
A situação mais delicada continua sendo a dos proprietários de terra. É no campo, com efeito, que as ameaças sobre as classes favorecidas são mais imediatas. Os latifundiários também não conseguiram organizar de pronto um contra-ataque coordenado e unitário à ofensiva dos trabalhadores rurais. Nas regiões onde o movimento campesino é mais intenso (é o caso da província de Cautin, onde os Mapuches endurecem suas lutas pela recuperação de suas terras), os latifundiários passaram para a "resistência armada" e formam grupos de choque para atacar os assentamentos camponeses.
No entanto, as federações nacionais de latifundiários não desprezavam a utilização de meios legais. No dia 2 de dezembro de 1970, três associações de proprietários rurais interpelaram o governo sobre a questão das ocupações de terras. Não podendo contestar a lei da reforma agrária, eles escolheram concentrar seus esforços na defesa das propriedades "cultivadas". O presidente da Sociedade Nacional dos Agricultores levou esta astúcia tática até o ponto de centrar as críticas na Democracia Cristã, afirmando que eram seus militantes que estimulavam a ocupação de terras para criar dificuldades para o governo. Toha, ministro do Interior, justificou os camponeses e garantiu-lhes que as expropriações seriam feitas "legalmente". Mas isso não pararia o processo de ocupação nem o movimento das massas camponesas. Dessa forma, o El Mercurio do dia 22 de janeiro de 1971 podia falar de "duas reformas agrárias": uma oficial e outra de "fatos consumados" sob pressão de "camponeses e comunistas", à qual a CORA. "não permanecia alheia".
A "pausa política" foi interrompida no início de 1971 quando a Corte Suprema de Justiça recusou a autorização de começar uma ação judicial contra um senador da Democracia Radical envolvido no assassinato do general Schneider. Houve uma reação natural dos sindicatos, das associações estudantis, da imprensa de esquerda, etc. A direita respondeu através de uma campanha de solidariedade com a Corte Suprema, cuja "autonomia" teria sido ameaçada. O mesmo senador D.R. que estava na origem do conflito propôs alegre e publicamente a formação de uma Frente Cívica anticomunista para começar a combater o governo "em todos as frentes". Dois atentados que ocorreram logo depois desta proposta mostraram que o tal senador não estava brincando. Imediatamente depois (no dia 22 de janeiro de 1971), para forçar a DC a tomar posição, os deputados do PN e da DR apresentaram uma acusação constitucional contra o ministro da Justiça por "ataques contra a independência jurídica". Por 8 votos contra 4, todavia, o conselho democrata-cristão recusou-se a se comprometer com essa via. Ele se justificou dizendo que o verdadeiro responsável pela situação era o próprio Allende, mas que ele não queria "agravar a crise" com "manobras antidemocráticas". Via-se que a .DC ainda procurava distanciar-se da extrema-direita.
Em outra ocasião, em abril de 1971, quando das eleições para a vaga no Senado deixada por Allende, a DC, mesmo apresentando um candidato de sua ala direitista, recusou um acordo formal sobre o tema eleitoral com o PN e a DR. Não se tratava de uma simples "indecisão", mas principalmente de afirmar-se como a única oposição "responsável". Esta posição exprime o
ponto de vista das massas ideologicamente atrasadas: a burguesia urbana. Isso implica em uma contínua tensão interna entre uma "esquerda" interessada nas reformas e uma direita ameaçada por estas reformas. O presidente da Juventude Democrata Cristã não se cansa de repetir que existe um acordo fundamental entre a DC e a UP: "a luta contra as estruturas capitalistas". Mas nas mesmas reuniões onde ele fazia esta declaração, sempre existiam outros membros da DC para protestar contra "as ocupações arbitrárias de terras".
Se a burguesia ainda segue a DC é porque ela não pode agir de outra forma. O que dá a medida da sua fraqueza. Com efeito, só essa fraqueza pode explicar que a burguesia tolere a verborragia anticapitalista dos ideólogos da DC. Todavia trata-se, no caso, apenas de uma questão de tempo. Assim que lhe for possível passar à ofensiva, será necessário que ela se desembarace deste artifício e que ela organize uma nova força política. Não será "impossível" que nesse momento uma fração importante da DC - aí compreendida seus dirigentes atuais, ou ao menos a maior parte deles, se constitua, depois de uma cisão e de um reagrupamento com a direita, nesta nova força política.
Grandes camadas populares também recorrem à DC. Não somente os funcionários, os empregados privilegiados, os pequenos proprietários, todos das camadas intermediárias devido à sua própria posição na sociedade. Mas também setores do proletariado urbano e rural. É importante que a esquerda consiga ganhá-los.
O assassinato de Zujovic, dirigente democrata cristão, em junho de 1971, acelerou as tomadas de posição e tornou possível uma nova ofensiva da direita. Os autores do atentado faziam parte da VOP (Vanguarda Organizada do Povo), uma organização de jovens saídos do MIR. Não tendo nenhuma linha política, eles tinham se especializado na realização de assaltos ("hold- up") mal preparados, e isso desde os tempos de Frei. Eles prosseguiram com esse tipo de ação no governo de Allende.
Os setores mais reacionários da DC exploraram o clima emocional criado pelo atentado, de modo a provocar um endurecimento do partido no que diz respeito ao governo. Na Câmara dos Deputados, os democratas cristãos abandonaram seus antigos escrúpulos e formaram uma frente com a extrema-direita para substituir o gabinete da UP por um gabinete oposicionista. Eles aproveitaram também para subordinar o acordo sobre o recrutamento de 1000 carabineiros (pedido por Allende) à dissolução de todos os grupos armados.
O que colocava o governo diante da seguinte escolha: enfrentar o bloco unido e majoritário de parlamentares da oposição ou abrir fogo contra a esquerda revolucionária tentando dissolver seus grupos armados. Finalmente, nas eleições de julho de 1971 em Valparaiso, a DC se apresentou unida com a direita tradicional e venceu o candidato da UP.
Esse novo passo no sentido do esclarecimento de posições políticas se fazia, assim, dentro das piores condições para a esquerda, na medida em que se acentuavam as divergências entre os setores mais conservadores do governo e a esquerda revolucionária: em maio de 1971, o governo tentou reprimir as ocupações "ilegais" de terras. E se é verdade que tinham sido cometidos abusos por grupos de camponeses, a responsabilidade deve ser atribuída ao governo, cujos procedimentos burocráticos bloqueavam a expressão da energia revolucionária das massas. Ainda mais porque não se poderia considerar a intervenção governamental como aquela de um poder proletário tentando combater o anarquismo ultra-esquerdista. Ela era, de fato, aquela de um aparelho de Estado burguês e visava somente impedir que a burguesia e as forças armadas se assustassem demais diante do processo de transformação social.
Para que se efetue a "ruptura revolucionária" é preciso que a esquerda constitua seu exército.
Mas a criação de um "exército revolucionário"não é, de forma alguma, um ato administrativo ou puramente técnico, independente da dinâmica do movimento de massas. Um exército revolucionário tem suas bases e seus recursos humanos nas classes revolucionárias que se
mobilizam de acordo com seus interesses históricos. Sua formação é o resultado, por um lado, do trabalho político no interior de grandes massas para levá-las a tomar consciência da necessidade do enfrentamento revolucionário, e de outra parte, do trabalho específico da vanguarda que cria as formas de organização adequadas a cada uma das fases do enfrentamento.
Quais são as características atuais do movimento de massas no Chile? E que política desenvolvem os principais setores da esquerda visando elevar o nível das lutas de maneira que elas se tornem uma força revolucionária efetiva?
A força principal no interior do movimento de massas é o proletariado industrial e mineiro. A força (organização, presença nos setores fundamentais da economia, base estável do ponto de vista ideológico) e a fraqueza (reformismo e economicismo) de suas organizações sindicais condicionam aquelas da UP. As condições de luta forjaram uma consciência de classe com eixo nos interesses imediatos da classe. Esta consciência os faz votar pelos candidatos socialistas e comunistas e se unir em torno de organizações sindicais. Mas ela é limitada porque se cristalizou nos interesses imediatos e em uma luta puramente reivindicativa: votar nos candidatos socialistas não implica que se esteja disposto a lutas pela revolução socialista. Exprime apenas uma solidariedade de classe dentro da situação do regime. Esta característica por demais "econômica" impede que a consciência e a organização das camadas mais avançadas da classe se estenda a setores mais amplos da população.
O proletariado votou em massa em Allende. Nos centros mineiros, Allende obteve entre duas vezes e meia e oito vezes mais votos que seus adversários. Depois das eleições o proletariado permaneceu mobilizado nos Comitês de Unidade Popular a fim de garantir a vitória eleitoral. Tendo atingido este objetivo no momento em que Allende foi proclamado presidente da República, sobreveio a desmobilização. Em dezembro de 1970, quando a UP chamou o povo para a comemoração do Pacto que nacionalizava as minas, ela não conseguiu reunir mais do que 20 mil pessoas. O que não quer absolutamente dizer que o proletariado não apoiava mais Allende; ele apoiava-o passivamente, uma vez que os métodos "eleitorais" de mobilização o levavam a esperar os "atos socialistas" do companheiro presidente.
Todavia, as condições próprias do país engendravam novas formas de ação do movimento operário. A existência de um governo socialista estimulou inicialmente a intransigência operária no que concerne aos problemas imediatos da luta reivindicativa. Sabendo que os patrões não poderiam mais servir-se como gostariam da repressão do Estado, os operários endureceram os movimentos de greve e não hesitaram em apelar para o governo quando o patronato revidou com demissões e "lock-out". No dia 8 de dezembro de 1970 foi feito um acordo entre o governo e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), segundo o qual os operários se empenhariam em aumentar a produção e o governo se comprometeria em permitir melhoras na situação econômica dos trabalhadores e em sua participação na elaboração da política econômica governamental. O El Mercurio simulava ser favorável ao acordo declarando que seria um meio de fazer diminuir as greves. Mas não foi. O aumento dos salários e as declarações de intenção do governo estimularam a confiança do proletariado em si mesmo. A partir de janeiro de 1971 as ocupações de fábricas se multiplicaram, como se as ações mais radicais dos trabalhadores rurais e dos sem-teto começassem a contaminar o proletariado. Constituíram organizações de luta dentro das empresas (elas poderão ser o ponto de partida de um novo desenvolvimento das lutas operárias).
Diante da campanha governamental pelo aumento da produção apareceram certas iniciativas, como aquela dos operários da Proinsa, empresa siderúrgica inglesa, que decidiram por unanimidade que só aumentariam a produção se estivessem sob controle operário. Eles ocuparam a fábrica e só a abandonaram quando o governo anunciou que compraria 60% das ações. A criação de um comitê operário em seguida a essa decisão constitui um acontecimento que, por sua importância, não passaria despercebido.
Mas se o movimento operário é a vanguarda do movimento de massa e constitui a principal base da UP não é menos verdade que é no campo que a luta de classes atinge, no momento atual, um máximo de intensidade. É lá que a revolução e a contrarrevolução se põem à prova de forma mais radical.
A consciência política do movimento camponês é recente. Ela foi inicialmente estimulada pela DC, que procurava uma base de massa suscetível de contrabalançar aquela dos socialistas e dos comunistas. Mas uma vez desencadeado, o movimento camponês ultrapassou os limites do reformismo burguês. O esboço de reforma agrária de Frei serviu para balançar a arrogância dos senhores de terra liberando a expressão de uma revolta secular. A esperança de possuir um pedaço de terra e de se libertar da opressão do latifúndio fez crescer rapidamente as associações de camponeses e de assalariados rurais. A extrema-esquerda também se fixou a favor do movimento de ocupação de terras, a tal ponto que o Movimento Camponês Revolucionário (MCR), dirigido pelo MIR, e que tem como palavra de ordem central "pão, terra e socialismo", tornou-se o principal responsável das ocupações de terras, sobretudo com os Mapuches.
Entre as camadas camponesas, os inquilinos constituíam a principal base dos partidos reacionários no campo, por causa de sua dependência em relação aos grandes proprietários. O crescimento do número de "afuerinos", combinado com o fortalecimento das organizações sindicais no campo, arruinou a hegemonia política da reação (não obstante, ela teve êxito em mobilizar os assalariados rurais, dizendo-lhes que eles perderiam o emprego se os Mapuches pegassem as terras).
Os trabalhadores da cidade e do campo constituem o eixo principal do "Movimento Popular" do Chile. Outros setores da população se juntaram a eles, em diferentes níveis: o subproletariado urbano concentrado geralmente nas "poblaciones" e cujo problema principal é o desemprego e a moradia, a juventude estudantil, ideologicamente sensibilizada pela luta contra um regime que não lhe oferece nenhum futuro; uma classe média "moderna" de técnicos e de especialistas, favoráveis às ideias de planejamento e de estatização.
O subproletariado foi objeto de um trabalho político sério por parte da esquerda revolucionária: é bastante comum ver nas "poblaciones" as bandeiras chilena e cubana ao lado de fotos e de citações de Che Guevara, de Lênin, de Fidel Castro, de Ho-Chi-Minh. A organização dos "pobladores" colocou numerosos problemas para o governo. Ao final de dezembro de 1970, os jornais publicaram a declaração de um dirigente dos comitês de "pobladores", que representava mais de 900 famílias, anunciando a formação de milícias que "constituíam um embrião do socialismo e que tinham sido criadas para garantir a segurança dos "acampamentos" (de "pobladores") e do governo". O governo, embaraçado, tentou acalmá-los satisfazendo suas necessidades materiais mais imediatas. Mas a própria extrema-esquerda se deu conta da instabilidade política dos "pobladores", que passavam muito facilmente do maior radicalismo para a inércia assim que eles obtinham trabalho e moradia. No entanto, na medida em que seus problemas de fundo só poderão ser definitivamente resolvidos pela transformação revolucionária da sociedade, eles continuarão a exercer um papel não negligenciável nas lutas de massa.
Antes das eleições, a esquerda chilena se dividia entre os partidários da via eleitoral e os partidários da luta armada. Os primeiros se integraram na UP. Os outros prosseguiram suas atividades clandestinas com o objetivo de desencadear a luta armada. Mas a posse de Allende mostrou que essa oposição era falsa. A luta armada revolucionária só poderia ser concebida dentro do quadro da dinâmica de lutas de classes no Chile. Além disso, a capacidade de aprender no contato com a realidade constituiu a primeira prova de maturidade para cada um dos grupamentos de esquerda.
À primeira vista, as organizações da UP não tinham nenhuma autocrítica a fazer, uma vez que a "via eleitoral" tinha dado seus frutos. Mas, na medida em que ela apenas representava uma tática correta, o êxito da luta eleitoral mostrou seus limites. É a formação de um governo popular que demonstrou que a "via eleitoral" da "revolução popular" não poderia ser colocada em prática e que as medidas populares do governo eram apenas uma transição para o socialismo. Daí as discussões no interior da UP sobre a dupla questão do enfrentamento armado e da construção do socialismo.
Ainda não existe um verdadeiro partido revolucionário no Chile, mas são numerosas as formações revolucionárias que se desenvolvem e que podem se encontrar na luta pelo socialismo.
O PC chileno segue fielmente a política soviética e apoia incondicionalmente a União Soviética no caso tcheco, no polonês e no conflito com os chineses. Mas limitar a análise do PC chileno a esse "adesismo" revisionista no plano internacional seria um grave erro. É certo que se trata de uma atitude que tem consequências no plano interno: o sectarismo stalinista é sempre poderoso e impede que numerosas bases operárias do partido se transformem em forças vivas da revolução socialista. Dentro desses limites, entretanto, o PC chileno foi mais longe do que outros PC do continente. Ele soube se transformar em uma força política combativa, abrindo perspectivas para as massas trabalhadoras: ele utilizou a fundo as possibilidades de uma legalidade democrático-burguesa. O que lhe falta é uma política revolucionária para formar a classe operária na perspectiva da tomada do poder. Em resumo, o PC (assim como o PS) formaram um proletariado ao mesmo tempo socialista, anticapitalista, legalista e reformista e isso através de uma luta econômica persistente e uma luta política eleitoral.
A vitória eleitoral reforçou, em um primeiro momento, a tradicional forma monolítica de agir do PC, aumentando seu sectarismo em relação ao "aventureirismo esquerdista". Enquanto outras formações políticas da UP preconizavam uma política mais aberta, dentro de um sentido de cooperação limitada com a extrema-esquerda, o PC se esforçava ao máximo para se isolar. Nas eleições para a Federação de Estudantes do Chile, em novembro de 1970, o PC se opôs firmemente à união com a Frente Revolucionária que tinha o MIR no comando. Ele sabia muito bem que essa divisão levaria à vitória da DC, apoiada pela direita. Esse resultado só foi evitado porque o MIR retirou sua própria lista e apoiou a da UP, sem deixar de denunciar o sectarismo do PC. Essa mesma política foi seguida em Concepción, quando os militantes do PC mataram um militante do MIR e feriram um outro. A bem pensada atitude do MIR - que mais uma vez denunciou o sectarismo, mas se recusou a fazer o jogo da direita, que já anunciava uma "guerra mortal" entre o MIR e o PC - e que continuou a apelar ao PC pela união contra o verdadeiro inimigo de classe, provocou reações no interior do PC contra essa política.
Além disso, as repercussões emocionais desencadeadas pelo acontecimento, mais a intervenção do próprio Allende, levaram os dirigentes do PC a condenar os agressores. Por outro lado são cada vez mais numerosos os encontros entre militantes do PC e militantes da esquerda revolucionária, especialmente no nível das lutas camponesas. O que permitiu um certo número de acordos de base apoiados em pontos concretos. Finalmente, as discussões em nível de direção conduziram o PC a uma atitude mais flexível em relação à esquerda revolucionária.
O P.S. não é propriamente um partido, ou pelo menos não o é no sentido leninista do termo. Seu funcionamento orgânico, apoiado em uma estrutura bastante fluida, torna-o semelhante às organizações social-democratas, federalistas e liberais. Mas setores muito radicalizados se desenvolveram em seu interior, sobretudo sob a influência da revolução cubana. Quando o PC se lançou contra a nova esquerda revolucionária estimulada pelos cubanos, o PS defendeu abertamente a organização da OLAS. Para a concepção liberal do PS, a defesa da via revolucionária continental e o exemplo cubano não ocasionam necessariamente a aplicação consciente e centralizada de uma linha revolucionária no Chile. Para alguns, isso se resumia ao emprego de uma linguagem mais agressiva quando das campanhas eleitorais. Para outros, isso incluía a preparação da guerrilha rural. E ainda para alguns outros, envolvia a formação de bases revolucionárias entre as massas de trabalhadores socialistas. Se bem que, em geral, as bases do PS se situam mais à esquerda que aquelas do PC, suas contradições internas são maiores e o efeito prático das decisões da direção central é muito limitado. É verdade que o dinamismo das novas bases produziu algumas mudanças no partido. No último Congresso (janeiro de 1971) a ala de direita, composta principalmente por políticos tradicionais do partido, enfrentou a ala de esquerda, apoiada pela maioria dos jovens. A ala de esquerda foi largamente vitoriosa. O novo secretário geral, Carlos Altamirando, acabara de declarar em uma entrevista concedida a "Punto Final" (dezembro de 1970), que lhe perguntara se haveria enfrentamento com a reação, que "nós nos preparamos e pensamos que o desenvolvimento e a radicalização do processo devem levar a tal enfrentamento. Se eu estiver enganado, tanto melhor. Mas eu penso que, infelizmente, o Chile não será uma exceção no conjunto dos processos revolucionários que se desenvolveram na história universal".
O MAPU reagrupa especialmente antigas e importantes bases da DC que estavam ligadas às atividades de sindicalismo rural, de mobilização estudantil e de algumas categorias de trabalhadores urbanos. A nova organização abandonou toda a veleidade de uma "terceira via" e se integra na luta de classes. Mas, na medida em que ela não definiu ainda um programa, persiste uma grande heterogeneidade em seu interior. Ali nós encontramos homens políticos e técnicos que se colocaram à esquerda da DC, mas que continuam a fazer política no velho estilo, e ali nós também encontramos militantes formados dentro de um trabalho efetivo de mobilização de massas.
A organização de esquerda mais importante além da UP é, sem nenhuma dúvida, o MIR. Até à véspera das eleições, ele não imaginava a importância que elas teriam. Esta subavaliação era consequência dos desvios "foquistas" que estavam presentes na sua concepção de "organização político-militar". Mas ele soube ter um papel na radicalização da juventude, entre os sem-teto e os camponeses. No início, essas visões "guerrilheiras" limitaram sua intervenção na luta de classes. Constituído para desencadear a luta armada no campo, o MIR não compreendia a importância das lutas das massas trabalhadoras.
No entanto, alguns meses antes das eleições, ele mudou sua atitude e parou de se opor à campanha da UP. Mais tarde, ele afirmaria que a vitória nas eleições representava uma vitória dos trabalhadores, mas criticou a "composição política heterogênea" e a ausência de "uma força militar própria" da UP. Sua tática consistia, portanto, em mostrar as limitações de um governo popular inserido em um aparelho de Estado burguês e em afirmar a inevitabilidade de um enfrentamento armado. Trata-se de um apoio crítico ao governo: o MIR apoia a UP contra a direita e no sentido do aprofundamento das medidas revolucionárias. Cada vez que se produz um choque entre a esquerda e a direita, ele se une à UP. A equipe de guarda-costas pessoais de Allende é composta de seus militantes.
Ele preconiza a união com a ala proletária da UP visando à formação de uma frente de classe, capaz de assumir a hegemonia das forças populares. No campo, ele estimula a mobilização independente dos trabalhadores, apoiando as ocupações de terras. Ele luta pela formação de um "poder camponês". Nas cidades os "miristas" apoiam as lutas operárias e participam das ocupações de fábricas. A dinâmica dessas ações já provocou atritos com o governo.
Em maio de 1971, depois de algumas medidas repressivas do governo em relação aos camponeses, ele frisou que não seguiria o governo quando este se utilizasse da repressão contra operários e camponeses, sem deixar de lembrar sua intenção de resolver "as diferenças entre a UP e o MIR através do debate político, tendo em vista o enfrentamento contra o inimigo principal".
A cada vez que ocorre uma desavença entre o MIR e a UP, a ala direita do governo aproveita para tentar cortar todas as ligações com a esquerda revolucionária. Mas a ala revolucionária da UP, a habilidade pessoal de Allende e do MIR têm impedido tal ruptura. Esse último permanece, portanto, um pólo político da via nacional, frente ao qual todas as forças são obrigadas a tomar posição. Além do mais, ele se torna mais forte, uma vez que ele compreende a necessidade das transformações socialistas, e que só assim seria possível obter uma vitoria definitiva sobre a direita.
O que não quer dizer que o MIR já seja capaz de dirigir a revolução proletária que ele preconiza. Por um lado, faltam-lhe bases mais sólidas no interior da classe operária. Seu modo de ação, mais as dificuldades que o PC lhe criou, atrasaram essa implantação. No momento, ele tenta preencher esse vazio. Por outro lado, o MIR ainda não conseguiu assegurar uma presença política nacional que lhe permita responder aos acontecimentos do dia-a-dia.
Existem ainda grupamentos menos importantes dentro da esquerda revolucionária e fora da UP. Normalmente a ação deles gira em torno do MIR. Todavia, eles se fracionaram ainda mais a respeito da atitude a adotar face ao governo Allende. Alguns grupos se integraram no interior da UP; outros ficaram ainda mais afastados do que já estavam antes das eleições.
O PCR, maoísta, tenta organizar as massas e dispõe de uma imprensa que circula sobretudo no meio estudantil. Mas sua atitude equivocada a respeito das eleições e do governo da UP, isolou-o do conjunto das forças revolucionárias do Chile.
A tendência "Outubro", cisão trotsquista do MIR, se constituiu a partir da crítica ao "foquismo". Algumas de suas análises da situação são interessantes. Seu trabalho entre as massas é limitado porque se trata de um grupo reduzido.
O MR2 (Movimento Revolucionário Manuel Rodrigues, nome de um chefe guerrilheiro das lutas pela independência) era originalmente uma organização ainda mais foquista que o MIR, mas atualmente ela concentra sua atividade junto aos trabalhadores da base aliada da UP. O MR2 apoia o caráter socialista da revolução e se aproxima muito do MIR. Trata-se também de uma organização muito pequena.
Nós não podemos dar uma descrição precisa do estado atual de cada uma das organizações que estão em contínua evolução. Acreditamos, todavia, que o papel do MIR é decisivo, e isto apesar dos erros que ele cometeu. A vanguarda do proletariado no Chile se constituirá com a participação das forças revolucionárias que estão atualmente no PS e no PC, que deverão começar ali uma luta interna consequente, com as forças que estão nas formações políticas menos importantes - MR2, "Outubro", PCR - ou heterogêneas, como o MAPU. Mas tanto por causa da sua força atual, como por sua posição no conjunto das forças políticas, o MIR permanece o principal núcleo revolucionário.
O problema-chave é aquele da determinação de um programa de ação que unifique as forças revolucionárias em torno das tarefas que assegurem uma transição real em direção a um poder socialista no país. O governo de Allende só pode ser um governo de transição. Suas bases sociais e seus trabalhos o levam a abrir a via ao socialismo. Para reforçar suas bases e para liquidar a contrarrevolução que o ameaça todos os dias ele é forçado a colocar em prática medidas econômicas e políticas que levam ao socialismo. Um governo apoiado na força política dos trabalhadores, mas inserido em uma estrutura de poder burguês não tem escolha. Ou bem ele escolhe a via real que leva ao socialismo e age visando a destruição do poder político e econômico da burguesia, ou bem ele contemporiza, concilia e segue as instituições burguesas. Mas, nesse último caso, é a via capitalista, porque se restar força nas mãos da burguesia ela não tardará a derrubar o governo e a aniquilar as organizações de massa que a ameaçam.
O governo da UP não apresenta uma perspectiva suficientemente clara para realizar esta transição ao socialismo. Na realidade ele oscila entre as necessidades da passagem revolucionária e as tendências para compromissos com as instituições burguesas. Seria abusivo comparar, sem maiores considerações, o governo de Allende com os governos de "frente popular" dos anos 30. A principal razão é que a presença da burguesia no governo da UP é praticamente nula. Apesar dos elementos reformistas e do compromisso com a pequena burguesia (que participa do governo), a força principal da UP fundamenta-se nos trabalhadores. É por isso que a tática do MIR, de apoio crítico, é justa de um modo geral. É claro que esta posição não pode permanecer estática. É preciso empurrar para frente as forças
do governo, na direção do socialismo. É nesta perspectiva que o programa de transição ganha toda sua importância. Nós tentaremos apresentar, de forma bastante esquemática os principais problemas colocados pela formulação de tal programa.
1- As grandes transformações econômicas
O problema central é aquele das medidas de estatização capazes de criar as condições para a passagem a uma economia socialista. Como ressaltou o MIR, as medidas governamentais objetivando aumentar o consumo popular freiam os investimentos nos setores-chaves do capitalismo, o que poderia levar a uma grave crise, cujos efeitos já se fariam sentir em 1972, caso as principais decisões relativas à política de investimentos permaneçam nas mãos dos capitalistas. Para impedir uma volta atrás é preciso que se coloque desde agora o problema da estatização em seu conjunto. Esta não é uma questão puramente administrativa. Porque se a expropriação dos principais meios de produção se efetua em bloco e sem indenização, ela representará um golpe terrível aplicado na burguesia chilena. E somente nestas condições ela terá um alcance econômico. Também é necessário escolher bem o momento e explicar corretamente às massas o papel que elas terão nesse processo.
2- Luta armada e exército revolucionário
É necessário que a esquerda possa contar, nos momentos decisivos, com uma força própria, que lhe permita avançar de maneira independente, sem depender de seus aliados hesitantes. A UP não irá muito longe se a aplicação de seu programa depender da neutralidade do exército regular, formado pela burguesia e para a burguesia. Não se trata de negar a importância de um trabalho de neutralização do exército. Mas ele deve se completar com a formação de milícias operárias e camponesas e de organizações militares da esquerda revolucionária. É claro que não se deve precipitar as coisas: a cobertura legal continua indispensável. Mas é ainda mais equivocado frear o armamento popular e criar perigosas ilusões entre as massas (como faz a UP quando ela idealiza e mistifica o papel do exército chileno).
3- O duplo poder
Trata-se de criar as organizações dos trabalhadores da cidade e do campo, dos camponeses, dos "pobladores", dos estudantes, dos soldados, etc., que dirigem as lutas locais e que constituirão progressivamente as bases do poder revolucionário. Para isso, é preciso que as organizações representem as bases e que elas disponham de meios materiais, aí compreendidos meios militares, para contribuir efetivamente com o crescimento do processo revolucionário. Os comitês de unidade popular perderam seu conteúdo porque eles tinham sido criados somente com objetivos eleitorais. Os novos organismos que se formam através das lutas atuais devem ser concebidos como bases de massa para a transformação revolucionária do país, para a destruição em cada lugar do poder da burguesia e de seus agentes econômicos, políticos e ideológicos. Os comitês camponeses para a ocupação de terras, os comitês de "pobladores", os comitês operários de controle das empresas devem todos avançar nesta direção.
4- Unidade dos trabalhadores e a neutralização das camadas intermediárias
Para romper, em favor da esquerda, o atual equilíbrio de forças é preciso ganhar os trabalhadores e camponeses pobres democrata-cristãos e neutralizar as camadas intermediárias (exército, burocracia, pequenos comerciantes, artesãos, etc.). Os trabalhadores democrata-cristãos só passarão para o campo da revolução se os revolucionários provarem sua confiança na revolução socialista. É preciso um trabalho paciente para mostrar, em cada caso concreto, as mistificações da ideologia democrata-cristã e para encontrar as formas de uma ação comum anticapitalista. No que diz respeito à neutralização das camadas intermediárias,
ela é indispensável se não quisermos que a direita se reforce mais. Para chegar a isso, não é necessário castrar a iniciativa revolucionária das massas para que ela "não faça medo" às camadas intermediárias.
A combinação das formas legais e ilegais de luta no Chile colocou muitos problemas. As tendências que, no interior da UP, superestimam as astúcias legais, contribuem para tornar difícil a formulação de uma estratégia revolucionária; é, sobretudo, o empirismo que orienta uma prática preocupada demais em dar conta de aliados oscilantes e das instituições em vigor. Por outro lado, setores da esquerda fora da UP tendem a ignorar o papel relativo das táticas legais, o que impede a elas também de fixar uma estratégia revolucionária viável, quer dizer, ligada à luta política atual, tal como ela se desenvolve concretamente.
É tão equivocado apoiar em bloco a política atual da UP quanto romper com ela. O importante é determinar as medidas que conduzem à ruptura revolucionária e propor unidade de ação em torno dessas medidas. Esta luta despertará novas forças revolucionárias e tornará mais forte uma vanguarda revolucionária capaz de conduzir a revolução até o fim.
Julho de 1971 Raul Villa
POST-SCRIPTUM:
O BALANÇO DO DIA 4 DE NOVEMBRO
Para o primeiro aniversário de seu governo, Allende ressaltou os progressos realizados dentro do quadro da legalidade e prometeu construir as bases do socialismo sem romper com as instituições legais. O secretário geral do MIR apresentou a destruição do atual aparelho de Estado como a tarefa política central do período. E a Democracia Cristã concentrou seus esforços na denúncia "efetiva" da "legalidade democrática". Vê-se que o sistema legal é a chave da situação política atual.
A descoberta da "fórmula Novoa" permitiu à UP avançar ainda mais no controle da economia, sempre dentro do respeito às instituições. Trata-se de uma lei desencavada por um jurista da UP (Eduardo Novoa) que tinha sido promulgada quando da "república socialista" de 1932 e esquecida logo em seguida. Ela permite ao Executivo intervir nas empresas que apresentem problemas sociais, sem pedir a aprovação do Congresso. O que torna possível ao governo aumentar o setor público da economia e combater as sabotagens dos capitalistas.
O objetivo do governo é a "constituição de uma nova economia" de "transição em direção ao socialismo", dentro da qual o setor da "propriedade social" será dominante. Sem falar do cobre, já foram nacionalizados: o salitre, o carvão e o ferro. As indústrias adquiridas pelos setores públicos ou sob seu controle não representam, apesar de sua importância, mais do que 8% do emprego industrial do Chile. Em uma entrevista concedida a Via Chilena, Gonzalo Mertner, planejador do governo, explica: "Nós iremos expropriar em torno de 150 (unidades industriais) que representam um caráter monopolista e que controlam uma parte importante da produção. Entretanto, nós deixaremos subsistir mais de 34.000 produtores privados industriais". No que diz respeito à terra, todos os latifúndios serão expropriados, mas "subsistirão 600.000 ou 700.000 proprietários, em alguns casos coletivos ou cooperativados, em outros, individuais". "Nós acreditamos que, em dezembro deste ano (1971), o Estado chileno controlará mais ou menos 60% do produto nacional. E perto do fim deste período de governo, é provável que ele chegue a controlar 70% ou 80%. Em resumo, nós estaremos muito perto do que chamamos de economia socialista". Mertner não diz o que ele entende por "controle estatal". Seja lá o que for, achamos curiosa a sua concepção quantitativa do socialismo.
As modalidades de indenização e os critérios de estabelecimento dos montantes das indenizações às companhias nacionalizadas no setor do cobre foram anunciadas pelo governo no dia 3 de outubro de 1971. Os lucros que ultrapassavam 10% ao ano foram considerados
como "excessivos" pela lei chilena e não seriam objeto de nenhuma indenização. Eles seriam portanto deduzidos do montante total das indenizações. Nas três maiores minas de cobre do país (Chuquicamata, El Salvador - pertencentes a Anaconda- e El Teniente- pertencente à Kennecott), os lucros excessivos tinham atingido 774 milhões de dólares, entre 1955 e 1970. Sendo o valor das empresas nacionalizadas somente de 330 milhões de dólares, as duas companhias americanas, no final das contas, ainda deviam ao governo chileno a soma de 454 milhões de dólares. O contra-ataque americano não demorou, sob a forma de ameaças as mais diversas. (O Eximbank, aliás, tinha subordinado o financiamento pedido pelo Chile, à solução da questão das indenizações às companhias americanas expropriadas). No entanto, a reação ianque não poderia ir muito longe na realização de suas ameaças. A UP, com efeito, encontrou no plano interno, um grande apoio às medidas de nacionalização. Mesmo a extrema-direita teve o pudor de se calar.
No curto prazo, o objetivo da UP é aumentar sua base de apoio. Os êxitos de sua política econômica são considerados como um dado fundamental para a conquista da "maioria". É assim que Jorge Insunza, um dos principais teóricos do PC, coloca o problema: "(...) para resolver o problema do poder de forma definitiva e irreversível a favor do povo é preciso que o movimento popular se torne uma maioria sólida. É necessário também organizar a produção social para que ela satisfaça as necessidades urgentes das massas e para tornar evidente a superioridade do sistema que nós propomos sobre aquele que nós queremos abandonar." Allende, no dia 4 de novembro de 1971, ressaltava que, em um ano, o desemprego tinha caído de 8,4% para 4,8%, e que a parte dos assalariados na renda nacional tinha passado de 50% para 59% e que a inflação tinha caído em 50%. A produção industrial tinha também aumentado durante o primeiro ano do governo da UP, de 17,3% segundo os dados oficiais, de 10,6% segundo as associações patronais.
Mas a fuga de capitais, a sabotagem dos industriais e dos proprietários fundiários e as pressões externas colocavam muitos problemas. (O preço do cobre está em baixa contínua. A dívida externa herdada do governo Frei chega a 2.570 milhões de dólares). Estes problemas se manifestam normalmente sob a forma de especulação e de lacunas no abastecimento. Estas lacunas constituem o bicho-papão de que se serve a burguesia para juntar as forças contra o governo. A argumentação dos burgueses é bem estranha: eles sabotam a produção e depois seus representantes políticos tomam como exemplo as faltas no abastecimento para "provar a falência da experiência socialista". No entanto, se a burguesia pode se servir de certa astúcia é porque a UP lhe permitiu fazê-lo. O artigo de Insunza que nós acabamos de citar mostra isso claramente. De fato, trata-se, segundo ele, de "tornar evidente a superioridade do sistema que nós propomos sobre aquele que nós queremos abandonar". Mas como "tornar evidente a superioridade" de um sistema que contenta-se em propor e que se organiza no interior mesmo daquele que ele quer abandonar? Falando de outra forma, as responsabilidades do sistema que se quer abandonar são dissimuladas pelo fato mesmo de serem assumidas pelo governo que aceita jogar de acordo com as regras definidas pelo adversário. O que deve fazer um governo que queira realmente substituir o velho sistema, é mostrar os limites. É uma ilusão perigosa pretender tornar evidente a superioridade do socialismo através das medidas que um governo popular pode adotar no quadro do sistema capitalista. Sem falar das sabotagens internas e externas, a passagem de um sistema a outro não será feita sem um período de sacrifícios. A tarefa dos revolucionários é mostrar a necessidade desses sacrifícios a fim de destruir pela raiz o regime que é a causa de todos os males. Se a esquerda perde esta luta ideológica ela perde a batalha principal.
É verdade que os êxitos econômicos do governo semearam uma grande inquietude no interior da classe dominante. A manifestação mais importante desse estado de espírito foi uma guinada à direita da DC. Agora, os acordos com a extrema-direita são considerados, dentro da DC, como a coisa mais natural do mundo e seu inimigo principal passou a ser o "perigo marxista". Tanto nas eleições sindicais e legislativas quanto na sua ofensiva de propaganda através da imprensa, sua aliança com a extrema-direita já passou às vias de fato. No entanto, isso custou ao partido de Eduardo Frei uma nova cisão, que deu lugar à "Esquerda Cristã". O presidente da
Juventude Democrata-Cristã, numerosos deputados e outros dirigentes formaram um novo partido, ao qual aderiu Chonchol (o ministro da Agricultura, que fazia parte do MAPU). Este partido (MAPU) apoia a UP.
No campo as coisas andam rápido. No dia 18 de agosto de 1971, a DC denunciou a existência de 250 propriedades ocupadas ilegalmente e de quase 500 onde os trabalhadores estavam em greve. Na luta contra o latifúndio, a pressão do movimento camponês constitui o fator determinante. Mas o governo também adota uma atitude cada vez mais firme. Foram criados Centros de Reforma Agrária, alternativa coletivista aos assentamentos que a DC preconizava. Enquanto nos assentamentos os camponeses-proprietários exploram os assalariados, a estrutura democrática e a concepção de propriedade ligada às tarefas socialistas caracterizam os Centros. A DC, para contra-atacar, mobilizou suas bases camponesas contra o "estatismo" e pela defesa da "propriedade camponesa". O governo recuou um pouco em face dessa pressão, como demonstra a destituição do delegado geral da CORA em Linares, um militante socialista que acelerava as expropriações nessa província.
Em setembro de 1971, a direita, apoiada pela DC, concentrou todas as suas forças em uma ação que devia levar a um golpe de Estado. O pretexto foi uma acusação constitucional, levada à Câmara dos Deputados, visando à destituição do ministro da Economia, responsável pela política de nacionalizações. Paralelamente, foram feitos contatos com os militares reacionários para checar a possibilidade de ajuda. A UP contra-atacou em dois níveis. A CUT lançou uma advertência: toda tentativa de golpe se confrontará com a ocupação das fábricas. Posteriormente, o ministro da Justiça convocou os dirigentes da DC para dissuadi-los de participar do golpe de Estado, chegando até a dizer que as "tentativas de subversão" vinham "tanto da extrema-direita como da extrema-esquerda". Enquanto as bases militantes se mobilizavam contra o golpe de Estado, os funcionários do governo ressaltavam seu respeito pela "ordem social". No dia 15, a CUT realizou uma manifestação contra o golpe. Mas neste mesmo dia o governo tinha feito um acordo com a DC, acordo por cujos termos o governo aceitava distinguir claramente os "três setores de propriedade" (estatal, mista e privada) e a DC aceitava abandonar a "acusação constitucional" e se afastar das manobras do PN.
A DC abandonava assim a aventura que a extrema-direita lhe tinha proposto, descobrindo ao mesmo tempo os pontos fracos da UP, os pontos sobre os quais a UP estava disposta a recuar. Frei volta à cena imediatamente depois com uma violenta declaração anticomunista. A DC agora retoma a ofensiva a partir "da base". Ela denunciou por toda parte a violência e as "calúnias" da imprensa governamental. O mais triste é que ela obteve do ministro do interior José Toha, a promessa de que a imprensa de esquerda mudaria de tom...
Tudo isto mostra que as principais fraquezas da UP vêm de sua tática atual que consiste em aplicar medidas econômicas fundamentais, mas que não supõem a mobilização das massas. Na verdade é preciso administrar os aliados mais conservadores das forças armadas, do aparelho judiciário, etc. Esses elementos apoiam as reformas "nacionalistas", mas se opõem à revolução social. Daí o silêncio no que diz respeito aos aspectos repressivos do Estado. Os carabineiros prendem os camponeses e os juízes os condenam e Allende não diz nada. Até mesmo os funcionários do Executivo enfrentam a repressão quando eles executam suas tarefas de maneira revolucionária. A direção do PS denuncia os elementos repressivos do aparelho de Estado, mas o fato de que Allende os legitima e repete o tempo todo que o socialismo será construído com a máquina estatal existente só pode perturbar e desorientar as bases.
O dia 4 de novembro foi comemorado dentro de um cenário de êxitos econômicos e de fraquezas políticas
No dia 1° de novembro, Miguel Enriquez, em nome da direção do MIR, acompanhava o enterro de um camponês morto em um enfrentamento com os latifundiários. Nessa ocasião ele expôs a orientação da esquerda revolucionária:
a morte de Moisés Huentelaf (...) nos oferece uma síntese do que se passa atualmente no Chile, de forma muito mais clara do que centenas de tratados de teoria política." Ele denunciava o caráter de classe do Estado e as hesitações do governo. "Por um lado, o governo da UP nacionalizou o cobre, estatizou quase todos os bancos,colocou sob seu controle algumas indústrias, expropriou quase um terço das propriedades fundiárias com mais de 80 ha,, distribuiu a renda nacional a favor das classes mais pobres da população, diminuiu de maneira significativa o desemprego. Tudo isso é positivo e é apoiado pelos trabalhadores do campo e da cidade.
Mas o respeito às leis já tinha forçado o governo a ter compromissos com a repressão e,
sem incorporar as massas ao processo nem atingir o aparelho de Estado e suas instituições, a UP se enfraqueceu. Porque são precisamente estas duas medidas, a incorporação das massas ao processo e os golpes dados no aparelho de Estado que definem um processo como revolucionário e o tornam irreversível desde que elas sejam colocadas em prática.
Não se trata, portanto, de parar de apoiar a UP em seus aspectos positivos, mas de mobilizar- se de maneira independente.
No combate dos trabalhadores e na força de sua mobilização se desenvolve um potencial indomável que nada nem ninguém poderá deter (...). Tal é a tarefa do período atual, aquela da esquerda e do governo: apoiar e empurrar para a frente estas mobilizações.
Os trabalhadores compreendem que o que freia seu avanço é
a legalidade construída pelos patrões. A primeira tarefa será a dissolução do Parlamento para acabar com a maioria democrata-cristã direitista que dele se serve para atacar os trabalhadores. É preciso substituí-lo por uma Assembleia do Povo, onde serão representados, proporcionalmente a seu peso real na sociedade, os operários, os camponeses, os "pobladores", os estudantes e os soldados. É preciso criar formas de poder local dos trabalhadores do campo e da cidade que assumam as tarefas de construção da base de um poder revolucionário e popular. A tarefa dos camponeses deve se realizar graças aos Conselhos Comunitários Camponeses. É a única possibilidade de acumular força suficiente para enfrentar a grande tarefa do período atual: a conquista do poder pelos trabalhadores.
Incontestavelmente, o discurso de Enriquez colocou as questões centrais do momento. As conquistas econômicas do governo e a reação cada vez mais agressiva das classes dominantes exigem que a esquerda passe à ofensiva nos domínios político e ideológico. A visita de Fidel Castro mostrou que não faltam condições para isso. Depois da vitória eleitoral de Allende, não se tinha mais visto um tal entusiasmo popular. Mais de 700.000 pessoas na rua, sobretudo nos bairros operários, com suas bandeiras vermelhas, provocaram uma comoção extraordinária em Santiago. É que Fidel indica o caminho revolucionário, dá o exemplo de uma revolução socialista que não pára diante de seus adversários nem diante do aparelho burguês de opressão e de mistificação.
Tal é a força social que a esquerda chilena deve mobilizar para destruir o aparelho de Estado burguês e transformar a conquista do governo em tomada do poder.
Raul Villa
Notas de rodapé:
(1) Raul Villa: pseudônimo utilizado por Eder Sader em seus escritos políticos nas décadas de 60/70. O autor foi fundador e dirigente da ORM Política Operária até se exilar no Chile após o Ato Institucional N°. 5. No Chile, militou nas organizações de esquerda, tendo sido dirigente do MIR - Movimiento de Isquerda Revolucionaria. (retornar ao texto)
(2) Esta passagem, evidentemente, foi escrita antes do golpe de Estado de Banzer (N.d.T. da versão francesa). (retornar ao texto)
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