Cartas

Francisco Martins Rodrigues


Cartas a JC


Carta 1
26/2/1987

Caro J:

Claro que me lembro de ti e tive grande satisfação em receber a tua carta, por ver que não perdeste o norte, apesar destes anos de pausa, Quando se esteve envolvido na luta de classes, directa e brutal, sem disfarces, como foi o nosso caso no tempo da Pide, é muito difícil iludirmo-nos com histórias sobre a "importância de cada um viver a sua vida". Viver a nossa vida, plenamente, é trabalhar por virar esta organização social, porque é isso que os tempos pedem. Ninguém pode escolher a época da sua vida e a nossa época tem esse problema em aberto, que lhe havemos de fazer? Se lhe virarmos costas, não nos libertamos de nada, estaremos apenas a desperdiçar a nossa vida. £ por isso que eu não sinto a militância comunista como um sacrifício: faço aquilo de que realmente gosto e que me faz sentir vivo. Já há gente demais reduzida ao papel de joguetes cegos do capital, não tenho vontade nenhuma de lhe seguir o exemplo.

É claro que os nossos velhos planos de batalha estavam cheios de erros e isso contribuiu para muitas derrotas e para a actual fase de dispersão. Mas não serve de nada cairmos por isso no pessimismo e na amargura, lamentar "os anos perdidos", como por aí se faz agora. A revolução é uma longa aprendizagem, não há outra forma de descobrir o caminho.

Se passares os olhos pelos números já publicados da nossa revista, verás as interrogações que nos colocamos e as respostas que procuramos. No eixo de tudo vejo esta ideia: a corrente ML revoltou-se com a passagem dos revisas para o campo da burguesia, mas teve medo de levar a crítica até ao fim e tentou salvar um pouco do compromisso operário-pequeno-burguês, que já vinha muito de trás. Foi um corte a 50%, que tentou combinar as ideias revolucionárias com um bocado da herança reformista. Por isso nos era impossível explicar a União Soviética de Staline, a IC, o maoísmo, a luta de classes em Portugal e no mundo. Por isso nos agarrávamos a citações e fórmulas feitas em vez de olharmos abertamente o presente e o passado com olhos marxistas. É muito estimulante poder fazê-lo agora. No "Anti-Dimitrov" (… poderá arranjar-to) comecei essa reflexão, que ainda está nos primeiros passos e que prosseguimos na revista.

Já deves saber pelo (…) o que somos: um pequeno grupo de propaganda que procura lançar as bases para um programa comunista e para um partido comunista, combinando a teoria e a prática. Editamos a revista, que é o nosso esforço principal, mas também vamos intervindo na acção política e sindical. (Começámos a publicar um pequeno jornal sindical, a "Tribuna Operária”). As condições actuais no nosso país não são nada favoráveis a este esforço, porque o movimento operário está amachucado pela derrota das ilusões de Abril (Povo-MFA) e a pequena burguesia intelectual atravessa uma fase de carreirismo, cinismo e descrença absoluta na classe operária. Mas isto não nos impede de reagrupar um núcleo de vanguarda que passe ao ataque quando a conjuntura mudar e possa formar uma corrente sólida capaz de influir nos acontecimentos.

No plano internacional, não descuramos nenhum contacto com grupos que se orientem num sentido semelhante ao nosso e já temos relações com comunistas dos EUA, Irão, Brasil, França, Itália. Todos fracos como nós, excepto os do Irão, mas todos dispostos a limpar o marxismo-leninismo de lixos reformistas. No que se refere à OCML de França, estamos interessados em conhecer melhor as suas análises e o seu percurso e encaramos a hipótese de uma deslocação minha a Paris para um debate organizado. Vamos estudar esses números da "Cause du Communisme" que mos envias, só conhecemos o "Partisan", que recebemos regularmente.

Inteiramente de acordo em que publiquem artigos traduzidos da "PO", o que aliás já lhes propusemos. Podes pois dar-lhes a tradução que fizeste para que eles corrijam a ortografia e mesmo suprimam partes que lhes pareçam de menos interesse para o leitor francês. Seguem junto as notas que pediste(1). Publicámos no nº 8 da "PO" uma tradução condensada de um artigo do "Partisan", seria bom mostrar-lhes. Mais importante que tudo: gostaria que te informasses junto do MV sobre o que é a OCPO, que criámos há cerca de dois anos e que nos dissesses em que aspectos estás interessado em colaborar. Ele pode dar-te diversos documentos, para teres uma ideia do que pretendemos e como funcionamos. Conheces "Para a história de uma cisão"? É um conjunto de cartas de diversos camaradas em que estão resumidas as razões da nossa ruptura com o PC(R). Também lhe podes pedir o Manifesto inicial da OCPO e outros documentos.

Para além da nossa correspondência, que espero se mantenha, seria muito bom termos uma discussão directa. Como a minha ida a Paris está por enquanto indefinida, seria muito bom se pudesses vir cá (em Junho seria o ideal). Diz-me como pensas que poderás colaborar na nossa actividade.

Uma forma de apoiares a revista, além da tradução de artigos, será enviares-nos algumas colaborações ou materiais para artigos, fazeres uma assinatura, angariares assinantes. Lutamos com grandes dificuldades financeiras, como calculas.

E por agora é tudo. Fico à espera de notícias tuas. Aceita um abraço do camarada

Carta 2
24/5/1987

Camarada J:

Tenho estranhado não ter recebido mais notícias tuas depois da carta que te mandei em 26 de Fevereiro. Não sei se se deve a afazeres da tua vida ou se chegaste a conclusão de que não estás disponível para colaborar ou apoiar o projecto da "Política Operária".

Na carta anterior perguntava-te se pensavas vir a férias a Portugal e se haveria oportunidade de nos encontrarmos. Esse seria o melhor meio de restabelecermos contacto e trocarmos ideias. Peço que me informes a este respeito e que, de qualquer forma, escrevas umas linhas a dizer como vai a tua vida e perspectivas de actividade.

Mando junto um manifesto que difundimos aqui e que foi noticiado nalguns jornais. Infelizmente a nossa proposta [de frente eleitoral] não se pôde concretizar. Víamos nela uma ocasião de por algumas forças de esquerda a falar na televisão e a dizer umas verdades. Ê claro que da parte da UDP não esperávamos resposta, mas nos outros grupos também houve muito sectarismo e também infiltrações do PCP, que acabou por convidar um desses grupos (Esquerda Revolucionária - trotskista) para as suas listas. Enfim, o velho jogo. De qualquer forma, continuamos a fazer força para afirmar a existência de uma corrente de verdadeira esquerda e ganhar algumas pontas no movimento operário.

Escreve, dá notícias e diz se pensas vir cá nas férias.

Um grande abraço

Carta 3
10/1/1993

Caro Camarada:

Antes de mais, parabéns a ti e à tua companheira pela bebé. Encontrei o teu pai e soube por ele que está tudo bem com vocês. Só está mal não teres telefonado para nos encontrarmos. E a passagem do ano, foi boa? Recebi há dias o nº 19 da «Lutte de Classe» e notei a maior variedade e politização dos artigos, dando a ideia de que os vossos contactos têm progredido. Estou enganado? Se conseguissem imprimir o boletim, isso ajudaria decerto à expansão. Tens recebido a P.O.? Tens tido tempo de dar uma vista pelos nossos artigos? Não temos feito grandes avanços teóricos, mas manter e fundamentar uma plataforma comunista nos tempos que correm já não é mau. Também temos estado a ganhar alguns novos colaboradores, talvez porque, ao fim destes anos, e no vazio a que chegou a esquerda, pessoas que anteriormente nos olhavam com desconfiança agora tomam apreço pela nossa persistência. Também temos alargado a distribuição, em Lisboa e no Porto.

Estou a fazer uma série de artigos sobre os primeiros anos da URSS, passagem do poder de Lenine para Staline, etc., que ainda era um buraco na nossa explicação para a perda da revolução. Continuamos leninistas a cem por cento mas já não acreditamos que se possa dizer que a URSS ia bem até cair nas mãos de Staline. Estava tudo perdido, ainda em vida de Lenine, mas a culpa também não pode ser atribuída a ele. Se a leitura dos artigos te sugerir algum comentário, gostaríamos de o conhecer e de o publicar, se isso te interessasse.

Um pedido: lemos e apreciámos o último livro de Tom Thomas sobre ecologia, que foi editado pelo Albatroz. Fiz um resumo-comentário que sairá na próxima P.O. e gostava de entrar em correspondência com o Thomas. Como julgo que estás em contacto com ele, peço que me mandes a morada, para eu lhe escrever.

Escreve alguma coisa, mesmo que sejam só duas linhas. Abraços.

Carta 4
7/6/1993

Caríssimo J:

Foi uma boa surpresa a tua carta, já que me habituaste a nunca escreveres. Espero que não te importes, mas meti-a no correio dos leitores. É muito estimulante o que dizes sobre a importância de uma reapreciação marxista da revolução russa. No ambiente que se vive, noto da parte de muitas pessoas ou um encolher de ombros, considerando que é "bater em mortos", ou um certo receio por se pôr em causa conceitos que sempre nos serviram de âncora. Por mim, penso que não podemos preparar-nos para o novo ciclo da revolução que se vai iniciar depois desta pausa negra, se não fizermos uma avaliação correcta das revoluções deste século, numa perspectiva histórica, crítica, sem quaisquer concessões às críticas social-democratas mas também sem alimentarmos mitos defensivos. Tinha pensado acabar na próxima P.O. a série de artigos sobre a revolução russa mas devido a um ataque de reumático que me imobilizou por uma semana atrasei-me e já não tenho o artigo pronto a tempo, ficará para depois das férias, em Outubro. Se for capaz, gostaria de aproveitar o Verão para coligir e melhorar os artigos que tenho feito sobre o assunto e editar num livrinho, vamos a ver se consigo.

É pena não teres condições para continuares uma actividade de reflexão, debate e intervenção em colectivo, mesmo num pequeno núcleo. Por muitos vícios que tenham os colectivos (e nesta época de contra-revolução os colectivos revolucionários tendem a fechar-se em seitas, perder-se em questiúnculas internas, etc.) dá sempre mais possibilidades do que se ficarmos isolados. Pode ser que dentro de algum tempo encontres outra solução.

Quanto à tua assinatura, termina justamente no n° 40, que vais receber dentro de uma semana. A renovação custa, como lá vem indicado: 2.500$ por um ano, ou 5.000$ (assinatura de apoio).

E por agora é tudo. Espero que a tua vida esteja a correr bem. Um dia destes vou visitar os teus pais. Um abraço.


Notas de rodapé:

(1) Carlos Brito - líder parlamentar do PCP revisionista.
FP-25 (Forças Populares 25 de Abril) - grupo clandestino inspi rado nas ideias do "poder popular de base" que nos últimos 6 anos praticou uma série de atentados contra capitalistas, latifundiários, contra a NATO, etc. Desmantelado pela polícia, os seus activistas estão e ser julgados como "terroristas", junta- mente com Otelo Saraiva de Carvalho, acusado de ser o "mentor" da organização.
ORA (Organização Revolução Armada) - grupo dissidente das FP-25 surgido em 1986 e que pretende dar continuidade às acções armadas "excitativas".
SIS (Serviço de Informações de Segurança) - embrião de uma nova polícia política, que tem na chefia um colaborador da antiga PIDE de Salazar.
FAP (Frente de Acção Popular) - primeiro grupo maoista surgido em Portugal em 1964, de tendência guerrilheirista. Destruído pela polícia em 1966.
LUAR (Liga de União e Acção Revolucionária) - grupo armado surgido em 1968, liderado por socialistas radicais. Dissolveu-se algum tempo depois do 25 de Abril.
ARA (Acção Revolucionária Armada) - destacamento criado pelo PCP em 1970, levou a cabo atentados e sabotagens à guerra colonial.
BR (Brigadas Revolucionárias) - braço armado do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), de tendência anarquizante, actuaram no início dos anos 70. (retornar ao texto)

Inclusão 12/05/2019