Cartas

Francisco Martins Rodrigues


Cartas a SL


Carta 1
07/11/1991

Caro Amigo L:

Agradeço-te o interesse que te levou a escrever a última longa carta. Gostaria de responder brevemente. Francamente, não vejo razões para divisares "sintomas alarmantes" no nosso alinhamento político-ideológico. O problema não é querermos permanecer "cristalinos e puros" como tu dizes, mas estarmos atentos a uma muito real e muito brutal pressão de direita, contra-revolucionária, que hoje tenta varrer, cilindrar ou corromper tudo o que seja comunista ou próximo. O debate em torno da revolução russa e do leninismo inscreve-se nessa batalha. Muito francamente, também, acho que os teus argumentos revelam falta de vigilância da tua parte quanto ao que está em jogo neste debate. Quer isto dizer que eu, para não ceder terreno à reacção, vou defender Lenine à viva força? Não. Não penso que os artigos da P.O. contenham nada disso. Dá-me a impressão do que tu os leste muito pela rama, pois tu próprio dás argumentos já expostos anteriormente nesses artigos. Achas muito estranho que se diga que os bolcheviques, ao não vir a revolução da Europa, aplicaram, em situação de emergência, um programa de sobrevivência alheio ao seu programa inicial? Nesse caso peço que me digas, concretamente, na Rússia de 1918 tal como era nesse momento, como concebes que se pudesse levar por diante a ditadura do proletariado, a sério, com democracia de massas, sovietes com poder real, etc. Parece-me deduzir da tua argumentação que achavas preferível que a Rússia dos sovietes se tivesse deixado ir ao fundo sem ceder um palmo nos princípios do comunismo, que isso seria melhor do que acabar por ir ao fundo na mesma, apodrecida pelo capitalismo de Estado, a burocracia, o terror, etc. Hoje podemos fazer essa comparação, mas em 1920 ninguém podia fazê-la. Os homens que estavam à frente da Rússia pensavam: "fazemos uma série de entorses ao que deveria ser a ditadura do proletariado mas é a única forma de mantermos o poder de pé e, quem sabe, talvez dentro de um ano ou dois, venha uma revolução na Alemanha, que nos permita depois endireitar a nossa". Tentavam ganhar tempo. Explica-me então qual teria sido a política de princípios neste caso. Mas em concreto; porque tu dizes sempre que nós não fazemos análises concretas mas dás opiniões muito no abstracto.

Capitalismo de Estado - Não sabia que tu tinhas objecções a esse conceito. Marx e Engels não o usaram porque era desconhecido no seu tempo. Foi usado na Alemanha bismarckiana, e depois em escala crescente por outras burguesias que precisavam de se apoiar nos capitais do Estado por insuficiência de acumulação privada. Lenine não disfarçou a dura realidade e disse que pôr a economia a funcionar na Rússia (houve uma fome em que morreu um milhão de pessoas no Volga devido à guerra civil e à desorganização total da economia) tinha que se recorrer ao capitalismo de Estado. Mostrou a sua atitude de princípio: não disfarçar de "socialismo" uma coisa que não o era. Mais tarde, foi esse sistema que ficou a vigorar na URSS, assim como nos países da Europa de Leste, etc. Não percebo o teu reparo. Não chamamos a esses regimes pura e simplesmente capitalistas porque não tinham apropriação privada dos capitais, concorrência, etc. A burguesia "comunista" desfrutava-se da mais-valia através do capital do Estado. Parece-me um conceito claro, que já demonstrou a sua aplicação. O crescimento e apodrecimento desse regime, com todas as suas taras, é uma coisa; a sua aplicação inicial, como recurso de emergência num país devastado que não consegue organizar a produção socialista, é outra. Se não fosse isso, que alternativa ficava? Devolver as fábricas e as terras à burguesia?' Deduzo dos teus argumentos que vês uma certa justificação na "propriedade privada fundada no trabalho pessoal". Mas não sabemos nós que o pequeno burguês gera diariamente o médio e o grande, que o processo de acumulação capitalista reproduz sempre os mesmos fenómenos?

Imperialismo soviético - Acusas-me de o "camuflar" e mais uma vez foges à análise concreta da situação concreta do que foi esse tal imperialismo que ruiu como um castelo de cartas. Temos sobre o assunto artigos publicados e dispenso-me de os repetir. Sou eu que te alerto para um desvio de que pareces não ter consciência: ao repetir as histórias infundadas postas a correr pelo imperialismo ocidental acerca do "império soviético" perdes contacto com a realidade e colaboras involuntariamente numa barragem de propaganda destinada a amortecer a oposição ao imperialismo.

Pensas ver espírito de seita da nossa parte quando dizemos que "tínhamos razão”. Mas, caro L, não achas que temos motivos para sentir algum orgulho por ter dito há anos que o "império soviético” era um mito porque não tinha base económica e portanto era vulnerável? Tu, por exemplo, acreditavas que a URSS tinha um poderio terrível, estava em igualdade ou até acima do Ocidente... Somos nós que temos espírito de seita ou és tu, neste caso, que resistes a dar um balanço a ideias que tinhas e que se comprovaram erradas?

Conhecemo-nos há bastantes anos e por isso não hesito em falar-te com toda a franqueza, sem rodeios, como tu, aliás, fazes em relação a mim.

A tua carta termina com uma proposta concreta: colaborares na revista com um estatuto independente, para expores as tuas opiniões sobre a URSS, a evolução actual do capitalismo, etc. Levei esta proposta ao conhecimento da redacção e considerámos unanimemente que não deve haver esse estatuto de colaborador independente. Os artigos passam todos pela discussão na redacção e, embora tenham uma margem de pontos de vista individuais, saem quando a redacção considera que não vão contra a sua linha geral.

O que não quer dizer que recusemos publicar artigos que nos mandes. Já os temos publicado e estamos interessados em continuar a fazê-lo, teus e de outros leitores da revista, como tens visto. Só que essas pessoas não são colaboradores independentes, mas leitores que enviam trabalhos que nós publicamos ou não conforme entendemos. Vários têm sido publicados, outros têm sido recusados por não lhes acharmos interesse. O que não podemos é assumir qualquer compromisso contigo de passarmos a considera-te nosso colaborador independente e de publicarmos o que tu nos envies. Julgo que a nossa atitude é perfeitamente clara e não foge às normas habituais em qualquer revista de opinião, como a nossa. Continuamos portanto abertos e interessados em publicar textos que nos envies, pondo em questão as nossas posições, apenas com a reserva quanto à oportunidade e espaço para o fazermos.

E é tudo, caro  L. Fico à espera de uma ocasião para prosseguirmos o nosso debate de viva voz. Um abraço

Carta 2
28/04/1994

Caro Amigo:

Não sei se teremos oportunidade de nos ver na apresentação do livro(1), no Clube dos Jornalistas, sábado, dia 30, a partir das 18.30, e por isso respondo já por este meio à tua carta. No que diz respeito à necessidade duma avaliação ponderada do PREC, para destrinçar entre o que nele foi autenticamente revolucionário e o que foi folclore "revolucionarista" pequeno-burguês, estou de acordo contigo. Mas já nos exemplos que evocas, se concordo inteiramente em que a palavra de ordem do "não à guerra civil" teve um conteúdo capitulacionista, já quanto a ter sido erro o começar, naquela situação concreta, pela formação da UDP, tenho as minhas dúvidas; e quanto ao assalto à embaixada de Espanha ter sido anarqueirada estudantil, já não concordo nada contigo - pensa só na escassez de acções de confronto com a ordem que todo o PREC registou - não houve um desastroso excesso de moderação? Não nos devemos regozijar com um dos raros actos violentos - inteiramente justificado, aliás, dada a barbaridade do crime franquista, e que foi imitado noutras capitais?

Mas se o que importa é uma avaliação política reflectida desse período, penso que o livro que fizemos só ajudará a avançar-se nesse sentido, na medida em que reúne testemunhos de intervenientes directos e desenterra experiências que têm vindo há vinte anos a ser cobertas de entulho. Romper com a prática do silêncio e da calúnia gratuita que por aí se fazem é do interesse da esquerda, parece-me. Não sei se tencionas promover alguma referência da Lusa à edição, mas, se for esse o caso, peço que tenhas em consideração o mérito que representa darmos voz aos que estão privados dela há longos anos. Se não fores ao lançamento, vou enviar-te um exemplar para poderes ajuizar por ti e veres se é possível chamar a atenção para esta iniciativa.

A segunda parte da tua carta, relativa à apreciação da revolução russa à luz do marxismo de Marx, retoma uma polémica que vimos fazendo há anos, sem aproximação dos nossos pontos de vista. Só posso responder às tuas notas repetindo as opiniões que já expus noutras oportunidades e que, pelos vistos, não te convencem. Eu acho que há um erro metodológico na tua perspectiva, que é admitires que as revoluções russa, chinesa, cubana, poderiam ter sido socialistas, se os seus dirigentes tivessem sido melhores marxistas. Isso parece-me puro idealismo. Não tomas em consideração que o nível económico-social desses países impossibilitava a instauração do socialismo, por muito que os líderes revolucionários, os partidos ou as massas o desejassem; só permitiam a passagem ao capitalismo - que foi o que aconteceu. O leninismo, que tu culpas pelo fracasso, foi justamente a aplicação viva do marxismo que permitiu o êxito inicial dessas revoluções, o cumprimento das suas tarefas antifeudais, anti-imperialistas, burguesas, da forma mais radical e acelerada. Sem leninismo, não teríamos tido revoluções nenhumas porque teriam sido afogadas pela reacção logo à partida.

Isto, para te apontar brevemente como encaro a tua conclusão de que "a estreiteza revolucionária actual está na hesitação em romper definitivamente com o leninismo". Do meu ponto de vista, uma tal atitude só poderia levar a recuarmos para trás de Lenine e a afastarmo-nos do marxismo. Enfim, este é um debate para continuar entre nós. Chegaste a ler a série de artigos que publiquei na P.O. sobre a revolução russa? Não lhe encontraste nenhum argumento que abalasse as tuas convicções?

Se não me disseres nada em contrário, publicarei na próxima P.O. a primeira parte da tua carta, relativa ao PREC (assinada com iniciais). A segunda parte repete opiniões tuas que já temos publicado noutras ocasiões e por isso penso omiti-la, para não ocupar muito espaço. Em todo o caso, se entenderes fazer-nos chegar algum texto nesse sentido, de crítica ao leninismo, não como carta, mas como artigo, estamos abertos a publicá-lo.

Um abraço


Notas de rodapé:

(1) “O futuro era agora”, ed. Dinossauro, 1994. (Nota de AB). (retornar ao texto)

Inclusão 12/11/2018