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Primeira Edição: Política Operária nº 9, Mar-Abr 1987
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
A discussão sobre as perspectivas do marxismo já não diz nada aos nossos intelectuais. Por terem encontrado um melhor sistema de ideias ou porque a revolução “não convém”?
Das “Notas sobre Staline”, aqui publicadas no número de Novembro/Dezembro, deduz Isabel Salavisa (Expresso de 21 de Março) a necessidade de escolher entre duas conclusões opostas: ou o socialismo proletário não é possível; ou, pelo contrário, ele é possível e consiste nos regimes em vigor na União Soviética, China, Albânia, etc.
Parece não lhe ter ocorrido uma outra hipótese, afinal bem mais óbvia: aquilo que temos vindo a presenciar, de há cem anos para cá, são sucessivos ensaios fracassados de revoluções proletárias, que se inscrevem no longo processo de acumulação de forças da revolução socialista mundial. Não foi, de resto, isso que aconteceu com todas as revoluções sociais do passado?
Esta recusa em admitir que a revolução socialista tem que fazer a sua própria aprendizagem, esta pressa em dar como encerrado um período histórico que mal faz os primeiros passos, dão que pensar. Como a classe operária não se mostra capaz de construir, à primeira ou à segunda tentativa, o modelo de uma sociedade avançada — aí está a prova de que a revolução anticapitalista é impossível! Se o movimento operário não faz milagres, então mais vale deixarmo-nos de “utopias” e reconhecermos apenas o que existe. Raciocínio estranho, quando “o que existe” é um cadáver em decomposição envenenando a humanidade.
A revolução proletária, é certo, até hoje falhou. Fracassou a Comuna de Paris ao pretender instituir o socialismo quando nada estava maduro para isso: era querer “assaltar o céu”. Fracassaram as revoluções russa e chinesa ao tentar levar ao socialismo sociedades camponesas, atrasadas: uma e outra degeneraram numa forma opressiva de capitalismo estatal.
Mas o que se afirmou através desses ensaios tacteantes, frustrados, foi a busca pela classe operária de uma nova organização social governada pelos produtores. De forma imperfeita, abortada, o caminho para o socialismo saiu dos livros de doutrina e começou a tomar contornos, através dos seus próprios fracassos.
O que ressalta do ciclo das revoluções falhadas dos últimos cem anos não é a inviabilidade da revolução proletária, é a sua necessidade. Que a busca do comunismo se tenha antecipado de tal forma ao amadurecimento das condições sociais para o seu êxito, só mostra as reservas de energia do movimento que fermenta, que o levam a romper por todas as brechas.
“Mitologia proletária” tudo isto? Ou não devemos antes falar da mitologia burguesa que recusa reconhecer o socialismo como uma necessidade imperiosa, gerada pelo próprio capitalismo?
O que, no fim de contas, não tem nada de estranho: o pensamento pequeno-burguês, aprisionado na dependência do capital, há-de arranjar sempre forma de concluir que o capitalismo é imbatível, é eterno, e afinal nem é tão mau como isso…
Como não havia de apodrecer a corrente “marxista-leninista” dos anos 60? Começou por declarar guerra sem tréguas ao revisionismo moderno, com grande rufar de tambores, mas logo a seguir recuou assustada com as conclusões da sua crítica. É claro que o marxismo faz pagar caro este género de jogos.
Orgulhávamo-nos da ousadia histórica de virmos a público denunciar o carácter burguês do “comunismo” de Kruchov e Togliatti. Mas isto ainda não era uma nova corrente de ideias, era apenas o seu anúncio.
Tinha que se lhe seguir, obrigatoriamente, uma explicação social das origens do revisionismo e do processo de formação da burguesia de estado. E isto envolvia não só uma crítica a Staline, a Mao, à Internacional Comunista, etc., mas um novo balanço ao lugar histórico das revoluções russa e chinesa e, duma forma geral, de todas as revoluções deste século dirigidas pelos partidos comunistas. Com efeito, se as revoluções proletárias desembocaram todas, sem excepção, em regimes híbridos, bastardos, governados por uma nova burguesia “vermelha”, então é a própria viabilidade da revolução socialista, é o próprio marxismo que parece posto em causa.
A corrente M-L, ao descobrir a dimensão do problema que ela própria enunciara, fugiu diante dele, com uma cobardia nada marxista: fabricou toda uma teoria policial de infiltrações e traições para iludir a questão da génese da nova burguesia, no interior do partido comunista; proibiu, sob pena de excomunhão, qualquer investigação em torno do stalinismo; passou do endeusamento do maoismo para o seu repúdio definitivo, sem se saber bem em que base; e convenceu-se de que toda esta mesquinhez teórica podia ser compensada com um bolchevismo serôdio, construído à base de citações e de reverências ao caminho de Outubro. Como se a firmeza proletária de classe, de que tanto se falava, fosse uma questão de pose e não de princípios políticos!
Assistiu-se assim a este fenómeno caricato: a ruptura com o revisionismo, em vez de desencadear uma explosão criadora de ideias novas e de forças revolucionárias, engendrou uma corrente passadista, enquistada, protegida atrás de uma cerca de dogmas e tabus. Os novos “revolucionários”, receosos de cair no revisionismo, nasceram já como conservadores do passado.
A partir dai, ficou traçado o triste destino da corrente M-L. Reafirmando todos os dias a sua recusa intransigente a pôr o passado em questão, é empurrada pelas necessidades da política para uma adaptação servil às tendências espontâneas do movimento. Os campeões da “pureza do marxismo-leninismo” embrenham-se, um pouco mais cada dia que passa, na floresta do revisionismo tão execrado.
Vinte e cinco anos de lutas e sacrifícios para chegar a tal resultado! Será bom que tomemos o marxismo mais a sério, se não quisermos ter um fim semelhante.
Se deixarmos de lado os episódios, a que se resume a tão falada “falência histórica do marxismo”?
Os únicos países onde a revolução proletária até hoje se tornou possível, os elos fracos da cadeia imperialista mundial, eram vulneráveis precisamente por serem retardatários do ponto de vista capitalista. A ordem burguesa rompeu-se aí, não por estarem amadurecidas as condições para o socialismo, mas porque o capitalismo estava em atraso. A revolução falhou por não conseguir galgar de um salto todo um período histórico de séculos — e foi o que aconteceu em primeiro lugar na Rússia.
Deduzir daqui que a revolução foi um “erro”, censurar a “antecipação voluntarista” dos bolcheviques e elogiar a perspicácia de Kautsky quando declarava a revolução proletária impossível na Rússia, como agora se tornou moda, é uma forma particularmente obtusa de pôr a questão. Se os bolcheviques não tivessem correspondido nesse momento de crise geral às necessidades revolucionárias das massas e aproveitado audaciosamente a decomposição da velha ordem social, só lhes restaria trair os operários e pôr-se ao serviço da burguesia, como aliás fizeram os mencheviques e socialistas-revolucionários.
Que os bolcheviques tenham dado o exemplo de como se comporta um partido operário numa situação revolucionária, eis o que continua a ser intolerável para a burguesia e o que tem um valor inestimável para nós.
Mas esta antecipação da revolução proletária, imposta pela história, tinha o seu preço e bem pesado. Para manter o poder num país onde não estavam reunidas as premissas mínimas para o socialismo, o partido bolchevique teve que escolher entre duas cedências: ou transigir com as reivindicações democrático-burguesas da massa da população, esmagadoramente camponesa, o que a breve prazo abriria as portas à contra-revolução; ou, para eliminar o capitalismo privado, delegar o poder operário, demasiado débil para a tarefa, num enorme aparelho bucrocrático, com os riscos de degenerarão que isso comportava.
Este dilema poderia ter sido ultrapassado se entretanto se tivessem desencadeado outras revoluções na Europa capitalista. Contudo, nesses países o proletariado defrontava-se com uma burguesia vitalizada pela expansão imperialista e encontrava-se muito mais distante da revolução do que poderiam supor Lenine e os bolcheviques. A revolução russa, que só poderia salvar-se enquanto prólogo e detonador das revoluções europeias, encontrou-se cercada e afogada nas suas próprias contradições.
O pano de fundo das lutas entre Staline—Trotsky—Bukarine é já o de uma degeneração irremediável: a classe operária, extremamente minoritária, perde rapidamente a hegemonia política conseguida no período revolucionário; para gerir a economia nacionalizada e conter a germinação do capitalismo nos campos, constitui-se um aparelho burocrático tentacular, nominalmente ao serviço do proletariado, mas que na realidade se serve a si próprio; os sovietes, que deveriam ser o alicerce do novo Estado, não exercem qualquer poder; o partido comunista torna-se gradualmente o instrumento da ditadura das novas camadas dirigentes; sob as proclamações de triunfo do socialismo, forma-se uma nova burguesia alimentada pela propriedade estatal e cooperativa; ganham contornos relações capitalistas de um tipo novo.
Foi este percurso que repetiram, agravado, as revoluções conduzidas pelos comunistas na China, Vietname, etc., onde os recuos do bolchevismo foram erigidos em teoria. A “Democracia Nova” e a “Democracia Popular” exprimiram, sob a cor de um marxismo “nacional e popular”, a tentativa de enquadrar as aspirações do campesinato e da pequena burguesia na revolução. O resultado desta adaptação oportunista foi uma degeneração ainda mais acelerada.
O capitalismo de estado de fachada “socialista” não pode ser explicado pelos erros de Staline, pelos desvios de Mao, ou pelas traições de Kruchov e Deng Xiaoping. Ele foi a consequência do derrubamento das relações pré-capitalistas pela classe operária, é um subproduto da ditadura do proletariado abortada. A luta heróica do proletariado, conduzido pelos comunistas, não foi suficiente para colmatar a ausência de premissas para o socialismo. Através de um largo desvio histórico, semeado de convulsões, é o capitalismo que faz ainda valer as suas leis.
Daqui concluem os ex-marxistas desencantados que a revolução proletária foi um erro. Mas não será que ela foi precisamente, embora num prazo muito mais dilatado do que previa Lenine, aquilo mesmo que ele dizia — o prólogo e detonador de novas revoluções proletárias que amadurecem nos subterrâneos deste longo refluxo?
É forçoso reconhecer que a discussão sobre as perspectivas do marxismo e da revolução já não diz nada à maioria dos nossos intelectuais. Acham-na pura arqueologia.
A superioridade da civilização democrática sobre todos os demais regimes e a ameaça de perversão totalitária que trazem no bojo as ideologias revolucionárias, tais são os argumentos definitivos que os convenceram a repudiar frontalmente o marxismo.
João Carlos Espada di-lo, com a limpidez habitual, no Expresso de 14/3: o erro do marxismo foi o de ter pedido à razão que ocupasse o lugar outrora ocupado pela religião. O contrato social não pode basear-se na virtude, como queria Marx, mas só na liberdade, como demonstrou Popper.
Não serei eu a pôr em causa a lógica inatacável do ilustre Popper. A liberdade acima de tudo, como forma de coexistência dos seres humanos em sociedade? De acordo.
Só que há aqui um pequeno buraco, geralmente esquecido por pessoas distraídas. É que a liberdade de expressão, o direito soberano à livre escolha dos governantes e outros pilares desta nossa civilização aberta assentam sobre uma cláusula não escrita que é a chave de tudo.
A saber: a escala das liberdades de cada cidadão varia na razão directa do capital que possui; a massa dos produtores, em matéria de democracia, só leva os sobejos; e o sistema só funciona bem se os que têm menos democracia não tentarem obter tanta como os outros.
Daí haver quem diga que o consenso democrático, que causa frémitos de orgulho a J. Espada, não passa de uma amável patacoada. De facto, de cada vez que os de baixo se metem a exigir a tão decantada igualdade de oportunidades, logo a democracia entra em derrapagem. Os cidadãos de primeira categoria ficam traumatizados ao verem os seus confortáveis privilégios ameaçados pelos cidadãos de segunda. Traumatismo tal que lhes faz perder a confiança nos ideais democráticos e os leva a recorrer à força para restabelecer a ordem.
Posta pois a questão em termos grosseiros, podemos dizer que a essência do consenso democrático consiste no seguinte: para a grande maioria, o direito ao voto livre paga-se com o dever de sustentar uma legião de chulos. Se recusarem pagar a factura, têm o fascismo às costas. O que leva por vezes as pessoas comuns a pensarem que a democracia lhes fica um bocado cara.
É claro que J. Espada e o seu mestre Popper, com espírito aberto e tolerante, reconhecem esta imperfeição da democracia. Arrisco-me contudo a pensar que não lhe medem todo o alcance. Com efeito, para quem está na mó de cima, os privilégios parecem uma insignificância, um simples detalhe que não justifica dramatizações demagógicas. Mas para quem os paga, tornam-se uma carga humilhante, insuportável, revoltante.
Resulta daqui um pequeno problema. A aspiração a uma democracia mais democrática germina continuamente na cabeça das pessoas. Seguindo sem o saber as pisadas do professor Popper, pensam que a liberdade deve ser tomada a sério e não percebem porque é que os democratas nunca querem pôr em prática alguns sãos preceitos elementares da democracia.
Acham, por exemplo, que ninguém deveria trabalhar para ninguém mas que todos deveriam trabalhar para todos; pensam que deveria haver uma lei para ser preso todo o que fosse apanhado a explorar ou oprimir outrem; aderem ao espírito democrático do preceito “quem não trabalha não come”: imaginam que a liberdade geral será muito maior se o trabalho manual e o trabalho intelectual, o trabalho de execução e o trabalho de direcção, forem distribuídos entre todos; acham pré-histórico, do ponto de vista democrático, os cidadãos dividirem-se em pobres e ricos e por isso defendem que os rendimentos individuais deveriam tender para a igualização.
Esta proposta de um contrato social mais equitativo, mais livre, mais aberto, não merece contudo a aprovação de mestre Popper. “A igualdade — declara ele ao Expresso — não consiste e não pode consistir em igualdade económica, porque se a impuséssemos perderíamos muitas coisas úteis”. Até parece que é bruxo!
E é justamente tendo em conta esta pequena divergência democrática que o marxismo prevê que a liberdade plena vai ter que ser concedida pela força aos Popper deste mundo.
Uma coisa é certa: o marxismo não se presta a trampolinices de feira. Talvez por isso passou de moda. Faz muito bem o João Carlos Espada em não querer nada com ele.
POPPER TINHA 17 anos quando presenciou o assassinato de vários jovens pela polícia, durante uma manifestação em Viena. Aqui começou a sua descoberta de que o que está mal não é a ordem burguesa mas… o marxismo. Era o início de uma carreira gloriosa como filósofo de serviço da burguesia.
Alguns dos seus conceitos, que o Expresso nos oferece, em entrevista de J. C. Espada:
Inclusão | 15/10/2018 |