Lições para Portugal do 'não' em França e na Holanda

Miguel Urbano Rodrigues

13 de junho de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O NÃO dos povos à Constituição Europeia e ao que ela simboliza fustiga o Velho Mundo como um tsunami político.

Em meados do século XIX, o medo do comunismo percorria a Europa como um fantasma, no dizer de Marx. Neste começo do século XXI outro grande medo faz estremecer o Continente. A engrenagem de Poder da União Europeia teme o despertar tempestuoso dos povos.

Habituados a impor a sua vontade através de governos neoliberais e dos mecanismos comunitários, os senhores da Europa foram apanhados de surpresa. Não esperavam que o povo da França rejeitasse a Constituição por eles concebida para institucionalizar o capitalismo. O NÃO dos holandeses, logo a seguir, tornou transparente a falência do projecto do grande capital.

Em França, apesar das sondagens, a classe dominante não acreditava seriamente na vitória do NÃO. Mais de 80% dos media defenderam o Sim. Chirac apresentou a hipótese do NÃO como um apocalipse. O diário Le Monde e o Liberation, socialista, admitiram a impossibilidade de uma recusa da Constituição. Em Paris, o Congresso — Senado e Câmara — aprovou o texto pela esmagadora maioria de 92%. Por toda a Europa os Parlamentos faziam a apologia do mal chamado Tratado Constitucional e votavam por ele maciçamente.

Nunca se assistira em França a um desfile de governantes estrangeiros similar. Chegaram de todos os azimutes para anunciar o caos se os franceses não aprovassem o mostrengo da Constituição. Blair, Schroeder, Zapatero, Berlusconi, e dirigentes satélites de países do Leste pronunciaram o mesmo discurso, com variantes mínimas. Numa linguagem dramática repetiram o discurso do caos, da angústia, da tragédia. Não faltou sequer o presidente Sampaio, cuja oratória acaciana começa a trazer à memória a do almirante Américo Tomás.

É compreensível que o tsunami francês tenha gerado pânico nas classes dominantes; o holandês trouxe a certeza de que o projecto comunitário do grande capital recebera um golpe mortal.

Blair já anulou o referendo britânico, temendo um desastre. Em Praga foi tomada idêntica decisão, nada de referendos.

As explicações dos analistas políticos da burguesia deixam transparecer desorientação. Na televisão portuguesa algumas mesas redondas que acompanhei foram espectáculos de indigência mental.

Esconder as causas da derrota foi preocupação comum dos governantes e dos seus epígonos.

Todos omitiram que o NÃO envolveu a condenação de uma política comunitária de destruição de conquistas históricas dos trabalhadores europeus, política que desrespeita fronteiras políticas e geográficas. A recusa da Constituição foi na França a resposta de um povo adulto às privatizações, ao trabalho precário, às ameaças de aumento do horário laboral, a transferência de fábricas para outros países, a leis imaginadas para destruir a Segurança Social.

Um coro de lamentações sobe do patronato francês. Eles esperavam o Sim vindo de um eleitorado que viam como incapaz de resistir ao bombardeamento mediático, como aconteceu em Espanha. "A Europa é o nosso destino, não é de direita nem de esquerda", tinha proclamado Jean Pierre Raffarin, o primeiro-ministro (agora ex.) de Chirac.

Mas a insurreição dos cidadãos — a expressão é de Georges Labica — com o voto de classe dos oprimidos fez ruir a estratégia da ditadura da burguesia. O choque foi tamanho que ainda não chegaram a acordo quanto a opções imediatas.

Escrevo antes da reunião do dia 16, em Bruxelas, convocada para que os dirigentes da União Europeia elaborem uma política de resposta à derrota que lhes foi infligida.

Seria uma ingenuidade esperar que ali sejam tomadas decisões positivas.

Georges Labica, num lúcido artigo publicado em resistir.info, reflecte sobre o quadro político resultante da vitória do NÃO no seu pais e manifesta um optimismo sereno sobre as perspectivas de luta por ele abertas aos povos. Esse intelectual revolucionário francês estará connosco em Serpa, no dia 24, para nos ajudar a compreender melhor o significado do grande acontecimento.

Extrair lições úteis para Portugal do que se passou na França e na Holanda é uma tarefa prioritária para as forças progressistas do nosso país.

QUE FAZER?

O primeiro-ministro e os membros do seu gabinete que têm debitado opiniões sobre o tema comportam-se como um grupo de comediantes amadores em espectáculo de feira estival. Logo que foi conhecido o NÃO francês começaram a bradar, com energia, que o referendo deve ser mantido, blá, blá, blá, que isto aqui é Portugal e que os espanhóis votaram sabiamente, etc, etc. Mas há fissuras. O sr. Freitas do Amaral diz que respeitará o que for decidido, mas teme o pior e vai adiantando que no seu entender a Constituição, agora, não tem pernas para andar. O desabafo valeu-lhe logo reprimendas vindas do PS.

Nos comentários dessa gente aflora o pânico da burguesia portuguesa.

Os referendos da França e da Holanda iluminaram a contradição entre os povos e os sistemas de poder que os desgovernam. A democracia caricatural imposta através de instituições concebidas pela burguesia para atingir os seus objectivos ficou subitamente desmascarada.

O voto popular negou o voto dos parlamentos.

O enorme significado dessa contradição é entretanto assimilado somente por uma minoria das vítimas da engrenagem neoliberal. A situação existente é tão paradoxal que muitos milhões de cidadãos que recusam a Constituição Europeia não estabelecem uma relação de causa e efeito entre a ideologia do sistema, os mecanismos que o servem e o aumento das desigualdades, do desemprego, da exclusão social.

Em Portugal a grande maioria dos eleitores, confundida por um bombardeamento mediático perverso, não tomou ainda consciência de que o regime sob o qual vive — tal como o existente nos demais países da União Europeia — lhe veda participar na construção do futuro. A falsa democracia portuguesa não é representativa. Um sistema de poder montado para servir a estratégia do grande capital funciona na prática como ditadura de classe de fachada democrática.

Aquilo que é uma realidade para o conjunto da Europa assume uma gravidade maior em Portugal, porque a metamorfose da social-democracia assume no pais de Abril facetas particularmente chocantes. Ao Partido Socialista Português, criado artificialmente na Alemanha Federal por um punhado de intelectuais burgueses, faltou desde o berço a base operaria que permitiu a partidos como o SPD alemão e os da social democracia escandinava desenvolver durante muitas décadas políticas formalmente anti-capitalistas. Em Portugal o 25 de Novembro fez cair a máscara ao PS de Mário Soares. As memórias desse político e toda a sua intervenção no processo de destruição das conquistas da revolução de Abril iluminam com nitidez a sua incompatibilidade com qualquer projecto socialista.

Mas Soares não é excepção. Contrariamente ao que o nome sugere, o PS é um partido cujos dirigentes se opõem a qualquer política cuja meta seja o socialismo. Todos os seus governos desenvolveram políticas orientadas para a recuperação e expansão do capitalismo. Presentemente o PS actua como um partido totalmente identificado com a estratégia do grande capital, eufemisticamente auto intitulada de neoliberal. Essa evidência transparece aliás do seu programa.

Quando no Governo, a política por ele executada pouco diferiu no campo económico e financeiro da aplicada pelo PSD. Definir o PS como um partido de esquerda é, portanto, um absurdo. Nega a realidade. Entretanto todo o sistema mediático apresenta o PS como parcela da esquerda. Não é inocente essa mentira. Ela contribui para confundir milhões de cidadãos.

É um facto que alguns dirigentes do PS, como Manuel Alegre, cultivam um discurso de esquerda. Mas esse jogo integra-se numa estratégia mistificadora. Aquilo que separa fundamentalmente o PS do PSD é a sua base social. Daí a necessidade de uma linguagem diferente. Uma percentagem ponderável do eleitorado socialista tem convicções democráticas e desejaria transformações estruturais na sociedade portuguesa que reduzissem a desigualdade, respondendo minimamente aos ideais de Abril.

Enganar essa massa de cidadãos — o punho erguido, o uso das palavras camarada e socialismo, o vermelho na bandeira, etc. — tem sido um objectivo permanente de todas as direcções do PS.

Umas das lições mais importantes do NÃO francês encontramo-la precisamente na lucidez revelada por milhões de eleitores conseguindo distanciar-se da posição assumida pelas direcções dos Partidos em que costumam votar.

Os aparelhos ideológicos da burguesia exerceram uma pressão sem precedentes sobre os cidadãos empurrando-os para o Sim. O presidente Chirac e os seus colegas de outros países somaram-se aos canais de televisão, aos grandes diários, às cúpulas partidárias, às hierarquias das igrejas, a artistas famosos, ao patronato, a dirigentes sindicais, à quase totalidade dos parlamentares numa campanha frenética, alucinatória, para vender o Sim.

Mas a ofensiva fracassou. O povo francês, assumindo-se como sujeito, disse NÃO!

Reflectir sobre a capacidade demonstrada por esse povo adulto para transformar o impossível aparente em possível real é - repito – uma exigência da actualidade portuguesa.

É incerta ainda a manutenção do referendo marcado para a data das eleições autárquicas.Mas a simples insistência de Sócrates & Cia Lda na defesa da Constituição Europeia é esclarecedora das intenções do governo – com o apoio maciço de toda a direita - de desenvolver em Portugal uma campanha similar à francesa se o referendo for adiante.

Reflectir sobre a capacidade demonstrada por esse povo adulto para transformar o impossível aparente em possível real é — repito — uma exigência da actualidade portuguesa.

É incerta ainda a manutenção do referendo marcado para a data das eleições autárquicas. Mas a simples insistência de Sócrates & Cia Lda na defesa da Constituição Europeia é esclarecedora das intenções do governo — com o apoio maciço de toda a direita — de desenvolver em Portugal uma campanha similar à francesa se o referendo for adiante.

Temos assim, pela frente, uma situação que abre ao nosso povo uma oportunidade excepcional de seguir o exemplo do francês (e do holandês), alterando, com a sua participação, o rumo da história.

Cabe lembrar que em França, Jospin, o ex- primeiro ministro do PS gaulês, foi um dos defensores mais esforçados do Sim, atitude que acompanhou a tomada pela direcção do seu partido.

O apelo não foi ouvido. A grande maioria do eleitorado socialista votou NÃO.

Contribuir para distanciar em Portugal os eleitores socialistas das orientações capituladoras dos seus dirigentes será uma tarefa prioritária na fase de intensas lutas sociais e políticas que se inicia. É tempo de os portugueses compreenderem que tudo continua sempre na mesma quer a maioria (e o governo) seja PS ou PSD.

O combate ao referendo é complementar do combate na frente das autarquias.

A crise profunda que o pais enfrenta, agravada por uma cascata de medidas reaccionárias que negam compromissos assumidos há poucos meses, facilita a desmontagem dos mecanismos da engrenagem perversa da ditadura da burguesia de fachada democrática.

Acreditar que a Assembleia da Republica, sendo instrumento do sistema de poder, pode, no presente contexto, desempenhar qualquer papel relevante em transformações estruturais positivas da sociedade portuguesa é uma ingenuidade perigosa. O Parlamento é hoje uma peça da engrenagem cuja tarefa, na perspectiva da classe dominante, consiste em servir a estratégia do grande capital. A redução das desigualdades, do desemprego, a luta contra a injustiça social são objectivos incompatíveis com o seu projecto, com a lógica do neoiliberalismo globalizado.

Em São Bento vão prosseguir as escaramuças verbais entre o PS e o PSD e o CDS. Elas fazem parte da caricatura de democracia que a burguesia nos impôs.

O PCP é a excepção, como partido de esquerda de tradição revolucionária. Mas o funcionamento dos mecanismos do sistema veda-lhe a possibilidade de inflectir, pela via parlamentar, o rumo da história. A presença ali dos deputados comunistas é importante. Mas desde que orientada para a denúncia permanente do sistema, sem integração no mesmo. Os comunistas estão conscientes de que não há reformas que possam humanizar o capitalismo. A actual crise de civilização confirma essa evidencia.

Somente a luta do povo, nas fábricas, nos sindicatos, nas escolas, nos portos, nos serviços pode romper o círculo vicioso instalado pela ditadura da burguesia de fachada democrática.

O NÃO francês sopra, entretanto, nestes dias pela Europa como um vendaval de esperança.

Aquilo parecia impossível. Mas aconteceu!

Em Portugal também podem produzir-se situações que meses atrás seriam inimagináveis.

Duas certezas:

  1. A luta contra o referendo conduz ao desmascaramento do governo de direita do sr. Sócrates e da sua política de submissão ao imperialismo. Pode e deve funcionar como factor de unidade popular. Mesmo que não haja referendo a luta dos trabalhadores deve ampliar-se e radicalizar-se.
  2. A próxima campanha das autárquicas abre grandes alamedas ao povo português para que reassuma com uma participação diferente o papel de sujeito da história.

Inclusão: 01/08/2021