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Primeira Edição: O original deste artigo encontra-se na revista O Militante, do PCP, nº 266, Setembro de 2003.
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Transcorridos 30 anos sobre o golpe do 11 de Setembro de 73, não é sem emoção e dor que evoco os acontecimentos do Chile.
Acompanhei quase dia a dia o processo revolucionário chileno.
Estava em Santiago quando Salvador Allende tomou posse. Participei na grande festa da vitória.
Voltei ao Chile um ano depois, em Dezembro de 71. Nos primeiros dias caminhei de surpresa em surpresa. Na aparência das coisas o projecto de mudança social corria sobre rodas. Nas lojas havia ainda abundância de quase tudo. Para responder a um acréscimo da demanda a indústria estabelecia recordes de produção. O boom das vendas impressionava.
Nas eleições municipais de Abril a Unidade Popular passara de minoritária a majoritária. O Partido Socialista obtivera 22,3% dos votos; o Partido Comunista 16,9%.
Na Conferencia de El Arrayan a UP procedeu a um balanço optimista. O Governo Popular cumprira grande parte da plataforma que levara Allende ao Palácio de la Moneda. O desemprego caíra de 8,3% para 4,8%; a produção industrial aumentara 11%. O sistema bancário fora quase totalmente estatizado (90%) e setenta grandes empresas haviam sido nacionalizadas, expropriadas ou achavam-se sob intervenção. O cobre, o salitre, o ferro, o aço, toda a industria pesada tinham passado à área da propriedade social. O número de casas construídas pela CORVI estatal excedera vinte vezes o de 1970. No campo, a Reforma Agrária expropriara em 14 meses 1315 propriedades com uma área de 2,4 milhões de hectares. A distribuição do rendimento nacional apresentava um panorama novo: em 1971 os assalariados aumentaram a sua percentagem de 50 para 59%. O PIB que durante o mandato de Frei crescera a uma média de 2,7% aumentou 7%.
Entretanto, o grande aumento do consumo gerou uma crise de abastecimento. O país não estava preparado para responder à «fúria» de compras resultante do acréscimo do poder aquisitivo dos trabalhadores.
A carne de vaca quase desapareceu. Os frangos passaram a ser uma raridade, embora a produção avícola tivesse aumentado 16%. Somente mais tarde, o povo tomou conhecimento de que muitos latifundiários, atingidos pela reforma agrária, tinham abatido milhares de vacas e ovelhas em matanças de significado político.
A prosperidade do primeiro ano da UP era ilusória. No sector privado os investimentos estavam quase paralisados. O governo tentava tranquilizar os empresários, alegando que no país havia 35 mil indústrias e que somente pretendia estatizar menos de 150. Mas as garantias oficiais não impediram que muitos empresários sabotassem as suas próprias empresas.
O dólar era transaccionado no câmbio negro pelo quádruplo da sua cotação oficial.
Na sua mensagem ao congresso, em Março de 71, Salvador Allende fora enfático na defesa da política de alianças.
«Devemos ajudar afirmou então os pequenos e médios industriais, comerciantes e agricultores que foram durante muitos anos um extracto explorado pelos grandes monopólios. A nossa política económica garante-lhes um tratamento equitativo (...) As indústrias pequenas e médias terão um papel activo na construção da nova economia».
Entretanto, os esforços para conquistar esses estamentos sociais fracassaram.
As dificuldades da UP aumentavam pelo facto de o discurso oficial de respeito estrito pela legalidade institucional ser mal recebido pelos sectores mais combativos da classe operária. Muitos dos valores e objectivos que o governo se via forçado a preservar na defesa da constitucionalidade do regime eram rejeitados por esses sectores, empenhados em acelerar a transição para uma sociedade socialista. A contradição nunca foi resolvida. O MIR, que não integrava a UP, agravou tensões com o seu comportamento esquerdista.
O que teria acontecido se o Presidente Allende, após as eleições municipais de Abril de 71, tivesse convocado um plebiscito para que o povo se pronunciasse sobre propostas que implicavam a dissolução do congresso? Este obstruía a realização do Programa da UP. Se a resposta fosse favorável e a esquerda obtivesse maioria numa eleição extraordinária, o caminho para a transição ao socialismo ficaria aberto. Mas no quadro na Constituição vigente, com a Câmara e o Senado controlados pela direita, a via pacifica esbarrava com obstáculos insuperáveis.
Somente voltei ao Chile um ano depois, nos últimos dias de Janeiro de 73.
A atmosfera em Santiago não saí então da capital era de grande tensão. A luta de classes exacerbara-se a tal ponto que a sensação de quem chegava era a de encontrar uma sociedade envolvida numa guerra civil atípica, sem tiros.
A abundância do ano anterior cedera o lugar a uma escassez dolorosa. Faltava nas lojas não somente o supérfluo como quase todos os produtos de primeira necessidade.
Percebi que a pequena burguesia se deslocara maciçamente para a direita. As conversas mantidas em estabelecimentos comerciais, nos restaurantes, nos transportes públicos foram para mim esclarecedoras de que os esforços da UP para conquistar o apoio das camadas médias tinham fracassado. Mais grave do que isso, uma parcela considerável da pequena burguesia exibia sem disfarce uma atitude agressiva contra o governo, assumindo as criticas do Partido Nacional e da Democracia Cristã, que haviam radicalizado o combate à UP.
Faltavam já quase totalmente produtos como o papel higiénico, os fósforos, os detergentes, a pasta de dentes, os sabonetes, as gorduras animais e vegetais, o açúcar, o leite, o arroz, a carne.
O que ouvi e li durante essa visita a Santiago reforçou a minha convicção de que a insurreição patronal de Outubro de 72 fora fundamentalmente derrotada pelo proletariado urbano numa luta épica.
O objectivo da grande burguesia ao tentar a paralisação do país com o lock out das empresas de camionistas e a tentativa de encerramento das fábricas era a criação de uma situação caótica que levasse as Forças Armadas a intervir. Mas o golpe não se produziu.
A resistência do proletariado chileno foi determinante. O governo, através da requisição dos camiões, conseguiu que os transportes funcionassem, embora de modo precário. E os empresários verificaram, alarmados, que a cada dia perdiam fábricas e que elas, dirigidas pelos trabalhadores, continuavam a funcionar.
No final de Outubro, o grande patronato compreendeu que o movimento não atingira o objectivo e se tornava a cada dia mais impopular. Tratou então de chegar a um acordo com o Governo que lhe permitisse recuperar a maioria das fábricas cujo controle fora assumido pelos operários.
A insurreição burguesa fora derrotada. As Forças Armadas, nesse momento ainda respeitadoras da «doutrina Schneider», de fidelidade à Constituição, assumida pelo general Carlos Pratts, não intervieram na crise. Somente muitos meses depois, a relação de forças, alterada em beneficio da direita, favoreceu o avanço da conspiração orientada para o golpe de Estado.
A derrota da tentativa de paralisação do país fortaleceu momentaneamente a posição do Governo. O Parlamento e o Poder Judicial tinham retirado a máscara ao apoiarem ostensivamente um movimento patronal com caracter de intentona, que visava a queda do Executivo por meios inconstitucionais.
Mas na UP, mais uma vez, não se chegou a um consenso. A tendência que defendeu novamente o plebiscito não se impôs.
Segundo os seus defensores, a derrota da direita oferecia uma oportunidade única para que o povo fosse chamado a pronunciar-se num plebiscito sobre a dissolução do Congresso, a criação de um regime unicameral, a democratização do Supremo Tribunal e a estruturação da área da Propriedade Social, sistematicamente sabotada pelo Legislativo e pelo Poder Judicial.
Os mil dias da Unidade Popular, transcorridas três décadas, continuam a ser tema de polémicas. Qualquer que seja a perspectiva, constituem para os comunistas um legado de grande valor.
Para os epígonos do neoliberalismo, o malogro da experiência da UP confirmou a irremediável superação do marxismo como ideologia inspiradora de transformações sociais de caracter revolucionário.
Difundida pelo planeta por um sistema mediático perverso e hegemónico, essa tese e a sua conclusão categórica partem de uma grosseira deformação da história. Carecem de fundamento cientifico.
A história do Chile durante o governo de Salvador Allende foi como escreveu Gabriel Smirnov «a história de uma luta de classes levada a um novo nível no qual se questiona não apenas a apropriação pelos capitalistas da mais valia produzida pelo proletariado, mas também o que é muito mais importante, e constitui uma etapa qualitativamente diferente o lugar que ocupam as classes sociais e o direito da burguesia a dirigir o conjunto das relações económicas e políticas».(1)
É um disparate evocar o golpe chileno do 11 de Setembro como prova da falência do socialismo. O que ele veio reactualizar no campo da teoria foi a temática da chamada via pacifica para o socialismo na América Latina.
Desconhecem ou deturpam o pensamento de Marx aqueles que lhe atribuem afirmações que não constam da sua obra. Ao contrário do que sugerem os seus adversários, ele chama a atenção para o facto de o controle do aparelho de Estado por um governo progressista não ser suficiente para a concretização de objectivos incompatíveis com o funcionamento e a lógica do capitalismo.
O desastre ocorrido nos países ditos socialistas da Europa Oriental veio lembrar que a estatização dos meios de produção não basta, por si só, para erradicar as raízes do capitalismo, porque as superestruturas culturais resistem por longo tempo a esse processo de transição, permitindo a sobrevivência da ideologia do antigo sistema.
No caso do Chile, não somente o poder económico permaneceu até ao fim maioritariamente nas mãos da burguesia como escaparam ao controle do governo sectores do Estado que desempenharam um papel importantíssimo na criação de condições materiais e psicológicas para a preparação do golpe, nomeadamente o Congresso e o Poder Judicial.
O general Carlos Pratts, num livro póstumo, editado por iniciativa da filha após a CIA o ter assassinado em Buenos Aires, analisa com lucidez o processo de debilitamento da resistência de militares formados nas academias da burguesia, à insidiosa propaganda que lhes apresentava o golpe como única saída para a salvação da pátria.
As teses defendidas pelo MIR, segundo as quais o povo organizado teria condições para resistir a um levantamento das Forças Armadas eram inconsistentes.
Foi esquecido o ensinamento de Lenine segundo o qual «é impossível lutar vitoriosamente contra um exército moderno, a menos que «ele se torne revolucionário». Contrariamente ao que ocorreu em Petrogrado em Fevereiro e Outubro de 1917, a coluna vertebral da disciplina não se rompeu nunca no exército chileno. Como afirmou Pratts, contra armas pesadas não há resistência popular que possa impor-se. Pode argumentar-se que o Vietname derrotou os EUA e a FLN, na Argélia, obrigou a França a reconhecer a independência do pais. Mas em ambos os casos, no quadro de guerras de libertação, insurreições de âmbito nacional permitiram a formação de autênticos exércitos capazes de enfrentar as forças militares da potência imperial.
No Chile a intervenção do imperialismo na preparação e financiamento do golpe desempenhou um papel importantíssimo. Tão evidente que Kissinger nas suas Memórias e em artigos e entrevistas reconhece que a CIA, cumprindo instruções da administração Nixon desenvolveu uma intensa actividade no país, apoiando as forças que conspiravam contra o Governo de Allende. Posteriormente, documentos secretos desclassificados pelo Departamento de Estado, confirmaram a profundidade do envolvimento estadunidense na montagem do golpe do 11 de Setembro.
O processo chileno justifica o qualificativo de revolução desarmada.
O seu desfecho trágico não trouxe uma resposta definitiva a questões que continuam a ser tema de fascinantes debates.
A até agora vitoriosa defesa da revolução bolivariana na Venezuela (apoiada pelas Forças Armadas), e a eleição de Lula no Brasil com um programa progressista (do qual se vem, aliás, desviando) conferem actualidade a uma pergunta fundamental:
Pode um governo com forte apoio popular, comprometido com um programa avançado de transformação da sociedade, levar adiante com êxito esse projecto usando como instrumento de mudança as próprias instituições criadas pela burguesia para servir os seus objectivos de classe?
A resposta que a historia dará à questão é tanto mais importante quanto as tentativas em curso na América Latina coincidem com o desenvolvimento da estratégia planetária de um sistema de poder imperial que visa a militarização da Terra e constitui ameaça à própria sobrevivência da humanidade.
Notas de rodapé:
(1) Gabriel Smirnov, La revolución desarmada, Chile, 1970-73, Ediciones Era, Mexico, 1977, pag 122. (retornar ao texto)