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Fonte: https://resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
A derrota do golpe na Venezuela voltou a chamar a atenção para a América Latina como campo de lutas sociais e laboratório ideológico.
Cientistas políticos e revolucionários, estimulados pelos acontecimentos na pátria de Bolívar, debatem a nível continental a questão fundamental do Poder e as estratégias e tácticas inseparáveis da sua conquista e defesa.
O imperialismo norte-americano Pentágono, Departamento de Estado e CIA esteve profundamente envolvido na conspiração. A sua gente acompanhou passo a passo a montagem do golpe.
Chavez foi preso; formaram um governo de extrema direita e desencadearam uma vaga de repressão. O fascismo andou à solta nas ruas.
E contudo o golpe foi derrotado; durou apenas 47 horas. Chavez está novamente no palácio de Miraflores.
Significa isso que ficou assegurado o êxito na Venezuela da formula segundo a qual a revolução é viável pela via institucional? Longe disso. O saldo de mortos e feridos da intentona aconselha prudência aos defensores da revolução social sem violência. Por si só o novo discurso de Chavez confirma que o pais está dividido. Generais envolvidos no golpe permanecem no Alto Comando das Forças Armadas. A unidade inquebrantável do Exército era uma aspiração do Presidente mas não uma realidade.
A agressiva atitude de Washington dissipa dúvidas. Novas ameaças impendem sobre a revolução bolivariana.
Recentes declarações do subcomandante Marcos contidas numa entrevista ao jornalista mexicano Júlio Scherer(1) vieram reactualizar uma antiquíssima questão que antes da Revolução Russa se expressava na antinomia «reforma ou revolução».
Não se pode negar ao líder do EZLN coragem pela forma como, sem rodeios, colocou as coisas.
«A definição do revolucionário clássico declarou não se adapta a nós». Foi categórico e expressivo: «O destino é diferente. O revolucionário tende a converter-se num político e o rebelde social não deixa de ser um rebelde social. Um revolucionário pretende fundamentalmente transformar as coisas de cima e não a partir de baixo, ao contrario do rebelde social. O revolucionário propõe-se: vamos fazer um movimento, tomo o poder e a partir de cima transformo as coisas. E o rebelde social não. O rebelde organiza as massas e a partir da base vai transformando sem ter que se colocar a questão do poder».
Marcos atribui ao revolucionário uma concepção vertical do poder que excluiria a participação popular. É uma definição voluntarista e redutora da qual como comunista discordo. A afirmação de que o rebelde social organiza as massas deforma, por generalizante, a realidade. Mas considero importante que o dirigente do EZLN coloque a questão do poder, para o zapatismo, com muita franqueza numa perspectiva reformista, embora diferente da clássica dos austro-marxistas.
Marcos é sincero quando condena o capitalismo e o considera incompatível com as aspirações do homem. Mas a teoria e a pratica do seu movimento, ao defender a lenta transformação da sociedade a partir quase da base zero, não configuram uma ameaça para o capitalismo. Este não se sente em perigo quando os adversários o querem derrotar através de reformas graduais. O projecto afigura-se-lhe utópico. É esclarecedor que televisões de dezenas de países tenham transmitido para todo o mundo a marcha dos comandantes zapatistas sobre a Cidade do México e o discurso que Marcos pronunciou na Praça do Zocalo.
Recordo que Raul Reyes, um comandante das FARC-EP, comentou então: Se um simples destacamento das guerrilhas colombianas caminhasse cinco quilómetros por uma estrada, na selva ou na montanha, não haveria televisões a filma-lo, mas choveriam bombas do céu.
O sociólogo chileno Hugo Zemelman interveio recentemente na polemica travada em torno da questão do poder, colocando-a numa perspectiva marxista. «Para mim — afirmou — um revolucionário é, por definição, um rebelde, mas nem sempre um rebelde é um revolucionário». E, para clarificar as coisas, acrescentou: «Um rebelde enfrenta o sistema, formula alternativas, cumpre uma função critica, mas nem sempre coloca a transformação do sistema nem a tomada do poder. O revolucionário procura mudar o sistema, não entra no sistema, trata de o derrubar, de o mudar».
E, abordando a «velha discussão a respeito da contradição entre o partido e o movimento social» disse o obvio, que muitos simulam ignorar: «creio que o movimento social, a rebeldia social, é fundamental para manter os partidos em alerta permanente, ao mesmo tempo que são necessários os partidos para levar adiante a transformação».
O sistema de poder dos EUA tolera, com muitas restrições, alguns rebeldes sociais; não aceita os revolucionários, sejam eles colombianos, palestinos, bolivarianos da Venezuela, sem terra brasileiros, ou os comunistas fieis à ideologia e aos princípios
O silencio que, de repente, envolveu o zapatismo, não obstante a repressão na área de Chiapas se ter intensificado, resulta de uma realidade que abalou o prestigio das teses de Marcos. A audiência mundial alcançada pelo discurso mediático do subcomandante do EZLN não pode ocultar uma evidencia: o novo Código Indígena do México, aprovado pelo Congresso, é ainda pior do que o anterior. Após uma década de luta, o zapatismo não conseguiu melhorar a condição dos índios.
Três cientistas sociais de prestigio internacional como o egípcio Samir Amin, a chilena Marta Harnecker e o mexicano Pablo Gonzalez Casanova tratam em trabalhos recentes o tema de uma desejada cooperação no combate ao neoliberalismo e ao imperialismo entre as diferentes organizações e tendências da esquerda latino-americana.
Marta Harnecker expressa uma aspiração compartilhada pela maioria da humanidade progressista ao defender a articulação dos partidos políticos e dos movimentos sociais que coincidem na rejeição do sistema de dominação que oprime os povos do Continente. Mas o objectivo que enuncia «construir uma confluência maior num grande bloco social anti-neoliberal de todos os que sofrem as consequências do actual capitalismo» é muito difícil de atingir, para não dizer romântico, porque as discordarias principiam não apenas na escolha das formas de luta, mas na questão da atitude perante o sistema, ou seja a sua destruição ou a sua transformação.
As escaramuças que no Brasil precedem a próxima eleição presidencial são esclarecedoras do que está em causa no grande debate em curso.
O programa eleitoral do PT, apresentado após a vitoria de Lula nas previas (85%), não é alentador. Depois de obter da Executiva Nacional carta branca para alianças eleitorais com partidos do centro direita, o candidato do Partido dos Trabalhadores esforçou-se na TV por convencer a classe media de que na Presidência a sua política não constituiria ameaça para o ordem social vigente. Segundo o analista Luiz Alberto Magalhães(2), do Observatório da Imprensa, foi muito hábil, mas suscita preocupação o facto de o responsável pela estratégia de marketing da sua campanha ser um publicitário que contribuiu decisivamente para a eleição de Maluf, o ex-governador e prefeito de São Paulo, um dos políticos mais corruptos da direita brasileira.
Não se pode censurar a Lula que seja cauteloso. A prudência num quadro como o do Brasil do ano 2002 é, pelo contrario, uma prova de maturidade política. Mas a linguagem que o candidato do PT utilizou para se distanciar do MST, sugerindo ainda segundo Luiz Magalhães que «não vai tolerar ocupações» justifica a apreensão que as suas palavras suscitaram num amplo sector do seu próprio eleitorado.
Ninguém responsável espera de Lula, no caso de vencer a eleição o que será muito difícil uma política de matizes revolucionários. Um tal projecto é incompatível com a correlação de forças existente, mas existe uma enorme diferença entre um programa progressista, orientado para uma democracia avançada e um programa cimentado em concessões que inspiram desconfiança em partidos de esquerda que apoiam Lula, como o Partido Comunista do Brasil e o Partido Socialista.
O PT, na sua actual fase, parece querer assemelhar-se a qualquer outro partido da burguesia brasileira. E isso é preocupante. Traz à memória o projecto e a retórica do francês Robert Hue.
Quando um partido de esquerda conquista o poder, ou pelo menos as suas insígnias, utilizando mensagens conservadoras dirigidas aos seus adversários, paga sempre uma pesadíssima factura pela abdicação dos princípios.
A ideia de que «depois», após a vitoria, poderá, então, desenvolver a sua verdadeira política e reassumir a linha progressista que lhe proporcionou a confiança e o apoio dos trabalhadores tal ideia traduz uma postura oportunista.
Se na Venezuela a esquerda, com uma constituição por ela redigida, e dispondo de maioria absoluta no Congresso, foi confrontada com um golpe de Estado ao tentar levar adiante reformas de conteúdo revolucionário, parece evidente que no Brasil, no quadro de uma constituição imposta pela burguesia, um governo PT esbarraria com obstáculos intransponíveis se pretendesse introduzir por via institucional transformações estruturais na sociedade que apontassem para rupturas revolucionarias.
A consciência dessa realidade não implica porem a necessidade de um programa eleitoral que nega o programa do partido pela natureza das concessões feitas à direita. O imperialismo não se deixa enganar por garantias de bom comportamento e declarações de intenções vindas da esquerda.
Na Europa encontramos precisamente o culto da ambiguidade e a renuncia aos princípios nas sinuosas manobras políticas que assinalaram a caminhada ao longo da qual alguns partidos comunistas realizaram através das suas direcções a complexa metamorfose que os transformou de marxistas-leninistas em sociais democratas, aliados da direita neoliberal. Isso aconteceu com o italiano, está a acontecer com o francês.
Claro que o oportunismo se disfarça sob o manto de taticismos que o escondem mal. Mas o seu novíssimo (na realidade bem velho) discurso carrega no ventre as sementes da destruição do partido ou melhor da sua total descaracterização. Falam de fidelidade ao projecto humanista de transformação da sociedade, da sua repulsa pelo capitalismo, da sua determinação firme de lutar por uma renovação do partido que, essa sim, seria revolucionaria. Mas o próprio entusiasmo que esse discurso suscita na direita vale por uma confirmação daquilo que pretendem: outro partido.
Na Itália, os dirigentes do PCI que promoveram a metamorfose juravam que permaneceriam eternamente comunistas; hoje lamentam ter sido comunistas. Na França anunciavam, no inicio da viragem, um partido comunista renovado, de novo tipo, mais próximo do sonho de Marx. Hoje, no meio do caminho para a socialdemocratização sem máscara, aspiram a ser um partido tão igual aos demais quanto possível e já lamentam a Revolução de Outubro de 17, considerando que tudo, absolutamente tudo, foi negativo nas sete décadas de existência da URSS. O diário «L'Humanité» recusa-se mesmo a publicar noticias sobre sessões comemorativas do 7 de Novembro.
Nessa família de renovadores de fachada incluo os lideres do grupo-movimento que em Portugal pretende «renovar» o PCP.
Precisamente por sentir que um partido revolucionário não se assume como tal se não estiver em permanente renovação, aspiro a que no Partido Comunista Português se mantenha viva a consciência de que nunca como agora, ao longo da sua grande historia, se tornou tão premente a exigência da sua participação criadora no debate de ideias na busca de respostas aos desafios que a humanidade enfrenta, na sua luta contra o flagelo da globalização neoliberal e a ameaça de ditadura mundial vinda do imperialismo norte-americano. É uma renovação que somente pode resultar do aprofundamento do dialogo entre a direcção e as bases, uma renovação que concretize o ideal comunista da participação do povo como sujeito da historia. É portanto uma renovação revolucionária incompatível com a dos falsos renovadores, adulados pela burguesia, ansiosos por se entenderem com ela, tal como ocorreu na Itália, na França, e noutros países europeus. A historia recente recorda-nos que cada fornada desse tipo de renovadores que olham de cima para as bases e temem a verdadeira participação popular acabou em Portugal nas fileiras do Partido Socialista.
Regressando à América quero explicitar que não me passa pela cabeça comparar o subcomandante Marcos e muitos rebeldes dos movimentos sociais do Continente, para os quais vai o meu respeito, com os lideres da «renovação» do PCP que não me inspiram qualquer sentimento de respeito.
Nuvens de tempestade adensam-se sobre a América Latina.
Mas não sou pessimista.
A complexidade da situação na Venezuela não pode apagar o significado do papel decisivo que o povo desempenhou na derrota de um golpe no qual a participação do Alto Comando das Forças Armadas surpreendeu o próprio Chavez.
Na Colômbia, a guerra vai intensificar-se após a provável eleição de Álvaro Uribe, uma criatura da extrema direita, aliado dos paramilitares. O ouro e as armas de Washington e a intervenção militar progressiva dos EUA não conseguirão, porém, vencer as FARC, um exército popular que se bate há quatro décadas numa epopeia que entrou na história.
Na Bolívia, no Equador, no Peru, no Paraguai os movimentos indígenas desafiam as oligarquias.
Na Argentina o povo continua a sair às ruas. No Brasil o MST não se deixa intimidar e desenvolve novas e originais formas de luta enquanto nos seus acampamentos e assentamentos lança as sementes de estruturas sociais, culturais e económicas que deixam entrever os contornos de um Brasil humanizado e progressista.
A cidadela cubana resiste, com firmeza e heroísmo, demonstrando que é possível dizer NÃO ao imperialismo.
No contexto do debate criador de ideias que volta a agitar o Continente como nos anos 60, uma realidade suscita consensos cada vez mais amplos. Revolucionários e rebeldes sociais registam que a luta de classes desempenha um papel de crescente importância nos conflitos que irrompem por todo o Continente, inquietando o poder imperial dos EUA. O golpe e o contra golpe da Venezuela constituíram uma demonstração quase laboratorial dessa evidência.
Nunca talvez, desde a época de Bolívar, o verbo Resistir! expressou com tamanha fidelidade o sentir das forças progressistas do mundo latino-americano.
Notas de rodapé:
(1) Citado por Hugo Guzman, Agencia de Noticias de Chile, 06/Abr/02. Júlio Scherer é um dos mais prestigiados jornalistas do México. Foi director do diário «Excelsior» quando este era um dos grandes jornais da América Latina (retornar ao texto)
(2) Luís Alberto Magalhães foi director do «Observatório da Imprensa», o mais influente jornal electrónico do Brasil. O artigo citado apareceu em http://www.observatoriodaimprensa.com.br (retornar ao texto)