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Ninguém ignora que o Império dos Romanov não constituía uma nacionalidade única; como todos os Estados criados pelo capital comercial, sobre o mesmo cetro reunia povos de diferentes origens, que tinham a desgraça de viver perto das vias comerciais que, direta ou indiretamente, necessitavam do capital comercial russo: aos habitantes das margens orientais do Báltico, das margens setentrionais e orientais do mar Negro, das ocidentais do mar Cáspio, os povos que habitavam nas margens do Vístula, do Niemen, do Diuna ocidental, do Dniester e do Pruth, falando línguas estranhas, não só à russa, mas também diferentes entre si. Os georgianos e os polacos, os finlandeses e os tártaros da Crimeia, os letões e os kirghizi, todos eram súditos do czar russo, e, com poucas exceções, se achavam em condições completamente semelhantes, isto é, não desfrutavam nenhum direito perante o poder central, que se considerava russo, apesar de seus últimos representantes, a partir de meados do século XVIII, serem de origem alemã de puro sangue.
Este fato era tão patente, que não podia passar ignorado aos mais inteligentes servidores dos últimos autocratas russos. Witte escrevia (mais ou menos em 1910) em suas notas:
"O erro fundamental da nossa política de muitas décadas consiste em não termos, desde os tempos de Pedro o Grande e Catarina, compreendido que não existe uma Rússia, e, sim, um Império Russo. Quando cerca de 31% da população se compõem de alógenos e os russos se dividem em russos da Grande Rússia, da Pequena Rússia, e da Rússia Branca, é impossível no século XIX e XX, fazer política ignorando este fato histórico, de importância capital, e as particularidades das demais nacionalidades que integram o Império, sua religião, sua língua, etc., etc.".
Os Romanov eram os únicos que não compreendiam isso. Vira-se a Polônia privada de seus últimos resquícios de liberdade por Alexandre II. Os povos transcaucásicos perderam-na antes. Alexandre II dedicou-se à tarefa de "russificar" as regiões bálticas; na Letônia e na Estônia atuais, países cultos, onde quase toda a população estava alfabetizada, havia literatura e imprensa próprias, etc. Os juízes falavam com os acusados ou com as testemunhas por intermédio de um tradutor e a situação não era melhor que nas colônias europeias da África Central. A Nicolau II estava reservada a tarefa de "russificar" a Finlândia; Nicolau consagrou-se, com tal ardor, que não tardou em provocar a revolução num pequeno país que, sob o governo de Alexandre II, era ainda modelo de "fidelidade".
Graças a esta política unificadora dos Romanov, a explosão de 1905 contra a autocracia alcançou não só a parte central do Império, a parte russa, mas também as nacionalidades não russas, e, como a população destas era, há muito tempo, mais culta que a do centro, o movimento devia tomar, forçosamente, um caráter mais consciente, politicamente mais definido que no próprio centro. Em 9 de janeiro, além de Petrogrado, só os povos não russos responderam com greves puramente políticas,, enquanto no centro da Rússia o movimento continuava a ser semieconômico.
Mas a vitória ou a derrota da revolução dependia precisamente desse centro. Desde que a autocracia venceu no centro, não tinha nada a temer na periferia; a experiência do século XIX ensinava que era fácil liquidar a periferia e a posição do centro fosse firme. O resultado da insurreição polaca de 1829-31 achava-se pré-determinada pela derrota de dezembro de 1825; a insurreição de 1863 havia forçosamente de fracassar por não se ter dado a insurreição camponesa no centro da Rússia. Eis porque, para seguir a marcha geral dos êxitos e dos fracassos da revolução de 1905, não é necessário sair dos limites da região central. A marcha do movimento na periferia podia, até certo ponto, ajudar ou entorpecer, debilitar ou reforçar o movimento no centro, porém, não o podia substituir. Não é, pois, o nacionalismo, mas o dever de dar uma explicação histórica, que obriga a descrever o ano de 1905 como uma cadeia de acontecimentos genuinamente russos, ou, para dizer de um modo ainda mais concreto, petrogradense-moscovita.
É necessário, contudo, dizer algumas palavras sobre a revolução na periferia, entre outros motivos porque, como veremos, concorre, apesar de tudo, com algo de novo para a revolução central.
O mais difícil — impossível a um compêndio como este — é separar a Ucrânia desta última. O movimento ucraniano daqueles dias acha-se íntima e indissoluvelmente ligado ao movimento russo geral. O Primeiro Congresso da Social-Democracia russa foi convocado por iniciativa da "Liga de Combate pela Emancipação da Classe Operária", de Kiev. As primeiras manifestações e a primeira saída do movimento revolucionário à rua, em 1901, deram-se em Karkov. As primeiras grandes agitações desenrolaram-se na primavera de 1902, nas províncias de Karkov e Poltava. O teatro da primeira greve geral, na primavera de 1902, foi o sul da Rússia, isto é, em primeiro lugar, a Ucrânia. A primeira rebelião militar importante, a ação "Potenkin", esteve ligada à Odessa, etc., etc. Mas, de tudo isso só se pode falar como de aspectos da revolução russa geral de 1905. Se acrescentarmos a isso que as palavras de ordem nacionais não desempenharam quase nenhum papel no movimento ucraniano de 1905 (nada mais se pedia que a introdução da língua nacional na escola e nos Tribunais, isto é, a "autonomia cultural"; a reivindicação da independência política não apareceu até 1905), reconhecerá o leitor a dificuldade de se falar de um modo particular, neste compêndio, do movimento ucraniano de 1905. Poderia apresentar a História da Primeira Revolução Russa sob um ponto de vista ucraniano, porém isto deve ser obra de um historiador ucraniano.
No que se refere à Polônia e à Finlândia a situação é completamente diferente. O leitor, nascido depois de 1914, não compreenderá porque na História russa se fala dos Estados Estrangeiros e precisamente desses. Se o autor quer falar dos Estados "vizinhos" fale então, também, da România, da Turquia, da Pérsia, etc. Com efeito, na atualidade, o russo pode considerar a Polônia e a Finlândia como Estados "estrangeiros", com mais razão, por exemplo, que a Alemanha. No momento em que se escreveram estas linhas, Berlim, capital de um país que guerreou conosco em 1914, é menos "estrangeiro" que Varsóvia ou Helsingfors. E é difícil formar uma ideia dos tempos em que Varsóvia era a "primeira cidade russa" para o natural do nosso país, que regressava do estrangeiro ou onde o mesmo viajante, depois de esforços inúteis para se fazer compreender num alemão confuso pelo vendedor de qualquer taberna, ouvia dos lábios do empregado admirado: "Mas o senhor não fala russo?"
Por mais que, no decorrer destes últimos anos, se tenham individualizado, em relação à Rússia, esses dois países, que integraram noutra época o nosso Império, na revolução de 1905 ocupam um lugar determinado. É possível imaginar-se aquela sem a Polônia ou Finlândia. Como é impossível explicar a revolução polonesa ou finlandesa por meio da russa, inversamente, para explicar a Revolução Russa, a Polônia e a Finlândia não nos prestarão nenhum auxílio.
Durante muito tempo, o movimento revolucionário polonês, como movimento operário, foi considerado como anterior ao russo. Enquanto as nossas organizações políticas do ano 70 (as "Ligas operárias" do sul e do norte da Rússia) permaneciam na sombra, o partido polonês "O Proletariado" era considerado como o antecessor da social-democracia russa. Sabemos agora que os dois movimentos são de uma mesma idade, porém o movimento polonês desenvolveu-se mais rapidamente que o russo, graças ao tipo mais europeu da indústria polonesa e de sua proximidade ao movimento ocidental. Esta maior rapidez de desenvolvimento manifestou-se, por exemplo, muito bem no seguinte fato: enquanto os operários de Varsóvia honravam o 1.° de maio de 1891 com manifestações nas ruas, os operários de Petrogrado só contavam com forcas para organizar uma assembleia puramente conspiradora, em que participaram dezenas de pessoas. Enquanto, em Petrogrado, em princípios de 1905, o grão-duque Vladimir, por meio de descargas de fuzil, empurrava os operários, que dirigiam uma petição ao czar, Varsóvia já se achava dominada por um movimento político bem definido e respondia com uma greve geral e com manifestações que terminaram em matança, que, por suas proporções, só é inferior a de Petrogrado de 9 de janeiro. No restante da Rússia, não houve nada parecido. Até outubro de 1905, Varsóvia presenciou a greve quatro vezes, e a greve assumia tais proporções, que a administração czarista só podia dominá-la pela forca.
Desgraçadamente, essa administração dispunha, para isso, de condições especiais na Polônia. Como região fronteiriça, a Polônia estava cheia de tropas que, por outro lado, o governo se esmerava em não formar com recrutas locais. Enviavam os recrutas poloneses para servir na Sibéria, no Cáucaso, num ponto qualquer, contanto que não fosse na Polônia; e os oficiais poloneses também não tinham o direito de servir no seu país. Os regimentos aquartelados na Polônia eram compostos de russos, ucranianos, tártaros, e muitos cossacos; e a guarnição de Varsóvia, por sua composição social, era muito afim da de Petrogrado. Nessa cidade, havia uma parte da guarda do czar. Os movimentos surgidos entre as tropas não estavam, ordinariamente, relacionados com as organizações revolucionárias locais e não tinham nada que ver com a revolução polonesa. Esta última, como consequência de todas as circunstâncias históricas, havia de levar, e levava, efetivamente, um traço especial que a diferenciava sensivelmente do movimento revolucionário russo; na Polônia, para todos os grupos revolucionários pequeno-burgueses e para uma parte considerável do proletariado, os lemas nacionais ocupavam o primeiro lugar, e, antes de todos, o da emancipação da Polônia.
Havia, no país, uma organização internacionalista, a "Social- Democracia da Polônia e da Lituânia" (P.S.D.), porém o "Partido Socialista Polonês" (P.P.S.) disputava-lhe a influência entre os operários e dominava entre a pequena burguesia, onde nenhum partido podia disputar-lhe a primazia. Para os elementos do "Partido Socialista Polonês", criadores reais da Polônia burguesa atual, a expulsão dos moscalei (moscovitas) ocupava lugar preeminente. A sua influência era muito séria, visto a Polônia, diferentemente da Rússia, contar com um setor importante da pequena burguesia urbana, em que se apoiara a insurreição de 1863 e que, com a sua ideologia, contaminava os setores de operários poloneses mais chegados. Depois do fracasso da revolução, só restou o nacionalismo para o pequeno-burguês, nacionalismo inclinando-se para uma espécie de "outubrismo" polonês, que encontrou a sua expressão no partido dos "Democratas Populares", onde o ódio animal ao nacionalismo combinava com a reivindicação da independência da Polônia e com o antissemitismo.
As condições exteriores em que tinham de lutar os revolucionários poloneses eram incomparavelmente mais difíceis do que as russas. A Polônia achava-se quase constantemente em estado de guerra. As execuções, sem formação de culpa, só conhecidas na Rússia Central em 1905, eram ali um fenômeno banal e o governador de Varsóvia demonstrava que tinha mesmo o "direito" de fazê-las. Esse mesmo governador, quando surgiu a questão do levantamento do estado de guerra, declarou que, então, não lhe restaria outro remédio senão demitir-se, pois estava "acostumado" com essa situação. Quanto a torturas, a Polícia de Varsóvia gozava de uma fama geral em todo o "Império". A única que lhe podia disputar a palma era a Polícia de Riga.
Tomando em consideração o caráter consciente do movimento, tudo isto devia determinar uma agravação extraordinária em suas manifestações. É indubitável que, se na Polônia existissem as condições exteriores de 1863 (quando a Prússia era considerada a aliada mais importante e a fronteira prussiana quase não era viciada), o movimento teria tomado a forma de uma verdadeira insurreição armada. Mas, depois de ruptura com a Alemanha em fins de 80, havia na Polônia 400.000 soldados russos tão espalhados pelo país que toda tentativa para criar "bandos" seria sufocada em germe. Não achando a sua expressão na insurreição armada, a energia acumulada das massas operárias tomou a forma do terror. No tocante a atentados terroristas, a Polônia superava a Rússia, apesar de que, nesta, durante o ano de 1905, eles se convertessem em fenômenos quotidianos(1). Mas o terror, aqui como em toda parte, não podia dar resultado, a não ser aumentar o pânico das autoridades, criado pelo movimento das massas. Se o movimento fracassava, as autoridades animavam-se e justificavam moralmente as suas crueldades nos atentados terroristas que, apesar da sua frequência, não produziam muitas baixas em suas fileiras.(2)
"Eles não nos dispensam atenções, por que, então, havemos de ser complacentes para com eles?"
Na Polônia, dava-se o mesmo que na Rússia: o terror polonês, por um lado, dava vazão ao sentimento de vingança que se acumulara, e, por outro, justificava as crueldades. Mas não fazia, nem podia fazer, a revolução avançar um só passo. O movimento acalmava-se na Polônia como se acalmava na Rússia, e, afinal, os "democratas populares" conceberam a absurda esperança de obter pelo menos a autonomia da Polônia das mãos de Nicolau II. Como mais adiante veremos, a conduta do czar não foi isenta de certa demagogia.
Para a revolução russa, entretanto, o movimento polonês não passou sem deixar vestígios. Em primeiro lugar, já antes de 1905, no período clandestino do movimento (que se renovou depois de 1907), a Polônia serviu magnificamente de ponte entre os centros revolucionários estrangeiros da imigração e as organizações que atuavam na Rússia. As mais curtas vias de comunicação entre a Rússia e a Europa ocidental passavam pela Polônia. Se não houvesse nesse país nenhum movimento nada seria mais fácil à Polícia russa que vigiar essas vias de comunicação. Mas, na Polônia, o revolucionário achava-se rodeado de uma tal atmosfera de amizade e simpatia, era-lhe tão fácil atravessar a fronteira, transportar livros, etc., que o movimento polonês prestou inapreciáveis serviços. Por outra parte, o movimento polonês, amadurecido rapidamente, achando-se em estreito contacto com a Europa ocidental, deu magníficos revolucionários marxistas, que desempenharam papel saliente no movimento operário internacional, mas que se achavam, ao mesmo tempo, intimamente ligados à Rússia. Basta recordar o nome de Rosa Luxemburgo, educada em Varsóvia, mas que falava o russo com perfeição. Mais tarde, esse contacto foi ainda mais estreito e a Rússia recebeu da Polônia vários revolucionários eminentes, tais como Dzerjisnki, Radek e outros.
O movimento revolucionário da Finlândia tinha de comum com o da Polônia o papel desempenhado pelas palavras de ordem nacionalistas; os finlandeses, em sua massa pequeno-burguesa (mais densa e forte que a polonesa), lutavam, em primeiro lugar, contra a autocracia pela independência nacional, o que lhes era mais fácil que aos poloneses, pois ainda possuíam uns restos dessa independência. Ao anexar a Finlândia em 1809, Alexandre I já se preparava para a guerra com Napoleão (1812), e o que mais o preocupava era cobrir a retaguarda de Petrogrado e assegurar a comunicação sem obstáculos com a Inglaterra através do mar Báltico e da Suécia. Para isto, era necessário contar com a Finlândia e, para "acalmar" os finlandeses, Alexandre deixou-lhes a autonomia política. Existia na Finlândia alguma coisa parecida com uma Constituição, embora, para dizer a verdade, de tipo medieval: havia um Seim corporativo. Nos tribunais, na administração local, na escola, na igreja, falavam-se as línguas locais; a princípio, só o sueco, idioma oficial da Finlândia, até a sua conquista pelos russos; depois, o governo russo, não sem intuitos demagógicos (divide e vencerás!), concedeu o direito de cidadania ao finlandês, idioma da imensa maioria da população agrária. Finalmente, a Finlândia dispunha de tropas próprias. É certo que estas não constituíam um exército especial com comando próprio, porém os regimentos russos da Finlândia eram formados por naturais do país; o seu comando era indígena (geralmente sueco). Fora do seu país os finlandeses não serviam.
Daqui partiu Nicolau II, açulado por seu Ministro da Guerra, Kuropatkin, para a ofensiva. Evidenciou-se, em certas manobras, que os soldados finlandeses não compreendiam o russo. O mesmo ocorrera durante 90 anos. Durante esse período, a Rússia levou a cabo guerras em que os finlandeses participaram (na Crimeia, por exemplo; em 1877, na Bulgária, entrou, também, um regimento finlandês), e ninguém viu nisso nada de mal. Mas, subitamente, o czar e os seus acólitos viram aí um terrível perigo em caso de guerra. Em 1899, promulgou-se uma lei obrigando os finlandeses a fazer o serviço militar, como todos os súditos do czar, na Rússia. É fácil supor o que significava para o camponês finlandês, que não compreendia nem uma palavra do russo, ir parar num quartel de Tula ou de Saratov. Com esta lei, qualificada de "golpe de Estado" pelos finlandeses, suprimia-se uma das manifestações essenciais da sua autonomia política.
O resultado foi, no ano seguinte, nenhum finlandês apresentar-se nas fileiras. Começou a famosa "resistência passiva". Na luta contra ela, o governo czarista foi destruindo gradualmente todos os restos da autonomia. Só não se atrevia a introduzir a língua russa nas escolas e nos tribunais (nos Correios e nas estradas de ferro todos tinham a obrigação de compreender o russo), em síntese: a única coisa que restou aos finlandeses foi a autonomia cultural; entretanto, os nacionalistas russos davam a entender que isto não passava de uma medida temporária, que a russificação definitiva da Finlândia era uma questão de tempo; falava-se num projeto de anexar a província de Viborg, nas cercanias de Petrogrado, ao "Império".
A luta — iniciada sem proveito para os interesses do czarismo, pois até então os finlandeses haviam dado provas de uma "fidelidade" exemplar — tomou um aspecto agudo: da resistência "passiva" passou-se, logicamente, à resistência "ativa". Em 1904, foi assassinado o general governador da Finlândia, Bobrikov, enviado para pôr em prática a nova política.
Mas esta forma de luta armada, o terror, não lançou raízes na Finlândia; afora o assassinato de Bobrikov, nenhum atentado terrorista se cometeu durante toda a revolução. Com o incremento tomado pela indústria, aumentou rapidamente o proletariado (cuja língua era a finlandesa) e desenvolveu-se o movimento operário. Fundou-se, em 1903, o Partido Social Democrata Finlandês. Foi precisamente este que desempenhou o papel de vanguarda no movimento revolucionário e não os "ativistas" fino-suecos, cuja ação principal foi o atentado contra Bobrikov. O movimento operário nesse país, como na Polônia, não estacionou na etapa econômica, mas, ao contrário, converteu-se rapidamente em político e em 1905 foi possível consumar o que não se pôde realizar na Rússia: a insurreição armada da massa.
Existiam na Finlândia condições excepcionalmente favoráveis a ela. Nesse país, todo camponês se dedica à caça e sabe manejar as armas de um modo excelente; durante a conquista, os guerrilheiros finlandeses eram mais perigosos para os russos que o exército sueco. A extensa fronteira marítima, cuja vigilância era difícil mesmo para uma esquadra melhor que a russa, facilitava extraordinariamente o contrabando de armas. Existiam algumas embarcações dedicadas a isso e era raro aos cruzadores russos apoderarem-se delas. Contrariamente ao que sucedia na Polônia, na Finlândia havia poucas forcas russas; o vizinho imediato, Suécia, há tempo perdera o caráter de adversário sério sob o ponto de vista militar e empregar tropas para proteger a fronteira não valia a pena. E na esquadra, da qual Helsingfors, a capital da Finlândia, era uma das bases principais, o estado de espírito era tal que se temia a sua adesão ao movimento. Finalmente, a língua finlandesa, falada ainda pelas massas, constituía uma barreira invencível separando o gendarme russo de seu objetivo de espionagem na Finlândia; da língua sueca ainda podia entender alguma coisa, porém do finlandês podia-se-lhe gritar em pleno rosto: "Abaixo a autocracia!", que ele não compreenderia.
Graças a todas essas circunstâncias, os finlandeses conseguiram organizar-se e armar-se de um modo impossível em toda a extensão do "Império". E, quando o novo governador, príncipe Obolenski (o mesmo que espancara com tanto entusiasmo os camponeses de Poltava e Karkov, em 1902), enviado como substituto de Bobrikov, se achou em face de uma massa compacta de operários e camponeses armados, não teve outro remédio senão capitular. Por instigação sua, em outubro de 1905, Nicolau assinou um ukase, em virtude do qual, não só se restabelecia a autonomia política da Finlândia (com exceção, entretanto, do exército), como também o Seim medieval seria substituído por uma assembleia eleita pelo sufrágio universal, direto e secreto. O exército não foi restabelecido, porém o proletariado permaneceu armado e, pela primeira vez na História do movimento revolucionário russo, criou a Guarda Vermelha. Essa organização subsistiu até julho de 1906, data em que foi dissolvida — em virtude do sufocamento da insurreição de Sveaborg, com o auxílio da Guarda Branca, organizada pela burguesia sueca de Helsingfors. Data daquela época o uso de ambas as denominações.
A autonomia continuava subsistindo; Nicolau não conseguiu anulá-la de um modo real até 1909 (as violações parciais começaram a partir de 1907). Essa autonomia exerceu a função de reserva da retaguarda, não para o czarismo, mas para a Revolução Russa. No território da Finlândia — que começava a 50 minutos de Petrogrado — celebrava-se tudo o que estava "severamente proibido" no "Império": congressos das associações profissional-políticas, conferências dos partidos revolucionários, reuniões dos comitês revolucionários, impressão da literatura revolucionária, etc., etc. Só em fins de 1907, o governo de Stolipin resolveu pôr mão sobre essa base da Revolução Russa, e só a partir de 1909 a autonomia do povo finlandês, que fora conservada unicamente graças aos fuzis dos operários e camponeses finlandeses, deixou de servir de refúgio aos revolucionários russos. Sólidos foram os resultados da insurreição armada nos lugares em que se conseguiu organizá-la, embora não fosse mais que na reduzida superfície de um dos componentes do Império dos Romanov.
As revoluções polonesa e finlandesa, como vemos, não estiveram enlaçadas organicamente com a Rússia, se se prescindir do fato de em ambas o papel diretivo ser desempenhado pelo proletariado e se esquecermos também que o movimento proletário de todo o mundo está estreitamente unido. Mas como revoluções burguesas, as revoluções polonesa e finlandesa podiam ser dirigidas até contra a russa, como sucedeu em nossos dias. O laço existente entre elas e o movimento da Rússia central era apenas exterior. A revolução acordava todos os ódios contra os "Romanov", tanto contra o czar russo como contra o "czar da Polônia" e o "grão-duque da Finlândia".
No Cáucaso, o movimento revolucionário já se encontrava mais organicamente enlaçado com a Revolução Russa. No Cáucaso, sobretudo numa natureza que não se parece nada com a russa e nem com a europeia, formou-se um dos centros mais importantes do movimento proletário russo e que desempenhava neste um papel que, por sua grandeza, só foi superado por Petrogrado, pela região central e pelo Ural. Referimo-nos a Bakú. Em torno das primeiras jazidas de petróleo do "Império", formou-se uma grande cidade com uma população operária internacional em que estavam representados todos os povos do Cáucaso, porém cujo setor mais qualificado era constituído pelos russos. Bakú teve uma participação ativa na greve geral do sul de 1903. Como as promessas feitas naquela época pelos proprietários não fossem cumpridas, a greve reiniciou-se em dezembro de 1904.
Os novos truques dos patrões provocaram novas explosões, terminadas no grandioso pogrom de agosto de 1905 e no incêndio de que já falamos atrás; sabemos a repercussão que estes acontecimentos tiveram no movimento russo.
Bakú, onde, repito, se representavam os diferentes povos do Cáucaso, unia este país ao movimento proletário russo geral. Eis por que, quando se fala da revolução caucásica, não se alude geralmente a Bakú, mas a um país mais separado, à primeira vista, da Rússia, por seu passado, que a Finlândia e a Polônia e, entretanto, talvez mais estreitamente ligado à Revolução Russa do que esses dois países. Esse país é a Geórgia ou, para dizer com mais precisão, a sua parte ocidental, um pedaço de terra cuja população se contava, não por milhões, mas somente por algumas centenas de milhares. Referimo-nos a Guria, que deu à Revolução Russa dois modelos: aos bolchevistas uma ilustração à palavra de ordem da insurreição armada e aos menchevistas um modelo de "autonomia revolucionária".
Geórgia, país de cultura muito antiga (a História da Geórgia começa nos tempos de Alexandre da Macedônia, isto é, mais de 1.000 anos antes das notícias relativas à Rússia), tinha a infelicidade de achar-se no cruzamento das grandes vias comerciais do mar Negro, ao Cáspio, e da Rússia à Ásia. Por esta razão, a sua História é uma História de invasões e de conquistas incessantes. Depois do conquistador macedônio, chegaram ao país os romanos, os persas, os bizantinos, os turcos e outra vez os persas. As devastações dos dois últimos conquistadores foram desastrosas; os persas, em fins do século XVIII, não deixaram em Tiflis mais de duas casas, — tudo o mais foi destruído pelo fogo. Depois disto, a Rússia não teve que conquistar a Geórgia: as tropas czaristas simplesmente a ocuparam (em 1801). Os georgianos achavam-se demasiadamente debilitados para oferecer resistência séria. O governo czarista afirmava ter ocupado o país com as suas tropas afim de "defendê-lo". Os "defensores", naturalmente, não tinham notícias do passado e da cultura georgianas. A Geórgia era governada como uma das províncias russas, com a particularidade, entretanto, de viver em estado de guerra. Só havia uma instituição indígena compreendida devidamente pelos generais russos procedentes da classe dos proprietários de terra. Na Geórgia, conservavam-se reminiscências consideráveis do feudalismo. Os generais russos estavam de acordo em considerar os nobres georgianos como cidadãos, embora de segunda categoria; a numerosa assembleia dos proprietários georgianos, muito semelhante pela sua composição à chliajta polonesa (alguns magnatas, que receberam o título de príncipes russos, e a massa dos pequenos fazendeiros, proprietários de dezenas de deciatinas), converteu-se em aparelho da administração russa, por cujo intermédio de novas autoridades desconhecedoras do idioma georgiano — podiam "instaurar a ordem" no país. Os magnatas transformaram-se em generais russos ou em vice-governadores (perto dos russos) e os pequenos fazendeiros contentaram-se com o papel de pristav e de uriadnik.
Em 1864, o direito feudal foi abolido também na Geórgia, mas os nobres do país souberam aproveitar-se de sua situação e da completa ignorância do centro russo acerca do regime georgiano. Em nenhuma parte, como aqui, merece ser posta entre aspas a expressão "emancipação dos camponeses". Alguns autores russos asseguravam mesmo que, na Geórgia, o direito feudal não fora abolido, mas suavizado somente; esses autores não se acham afastados da verdade, uma vez que sobre os georgianos continuou a pesar uma sobrecarga de obrigações de caráter medieval. Receberam pouquíssima terra, em média, apenas 1 ½ deciatina por família. Na província de Tiflis, do milhão e meio de deciatinas dos nobres, os camponeses receberam menos de 3/4 de milhão de deciatinas. Os impostos, depois da "emancipação", assim se dividiam: na província de Tiflis, correspondiam ao proprietário territorial, sob a forma de diversas exações, 18 rublos e 50 kopeks ouro por deciatina e ao camponês, 8,50; na província de Kutais (estas eram as duas províncias que constituíam a Geórgia), ao proprietário correspondiam 16 rublos e 60 kopeks; ao camponês 13,30. Os camponeses imigrados (Khizan), muito numerosos, não receberam a menor parcela de terra, tendo de arrendá-la, ficando, assim, à mercê do proprietário.
Compreende-se perfeitamente que, colocados nestas condições, os camponeses tivessem que procurar o seu modo de vida noutras ocupações.
"A imensa maioria dos camponeses de Guria não é composta de proprietários independentes, mas de semiproletários e de proletários completos; as suas explorações agrícolas, debaixo das condições estabelecidas depois da abolição do direito feudal, só lhes dão a possibilidade de não morrer de fome.
Povos como Khidistavi, Amagleva, Surebi, Chokhateuri e outros enviam a maior parte de sua mão de obra aos centros industriais do Cáucaso: a Batum, Poti, Novorossik. Os gurianos constituem uma parte considerável dos operários industriais da margem do mar Negro; muitos deles também vão às explorações petrolíferas de Bakú, assim como a Tiflis e a outras cidades. A necessidade jogava-os para todos os cantos da Rússia e até para o este da Ásia, onde o número desses operários é de dezenas de milhares".(3)
Algumas cifras darão uma ideia das proporções desse êxodo: de uma "sociedade" agrária de Guria, de 520 famílias (dimov), saíram em busca de trabalho 322 pessoas; de outra, de 359 famílias, 233; de outra, de 473, 300, e assim sucessivamente.(4)
Batum estava coalhado de operários da Guria e a grande greve estourada em 1902 e terminada sangrentamente (morreram 19 operários), deu o primeiro impulso ao movimento revolucionário na Guria. Os camponeses haviam lutado antes contra os proprietários territoriais por meio dos processos habituais: "galo vermelho"(5), destruição do gado, tala dos bosques, ceifa dos prados, etc., etc. Os operários expulsos de Batum para o seu país levaram para este ideias mais concretas e certa organização (a propósito da influência dos operários, teremos ainda ocasião de mencionar alguns dados interessantes fornecidos por testemunhas). Já em abril de 1903, nas aldeias de Guria, organizaram-se centenas de manifestações com bandeiras vermelhas e lemas social-democratas. No ano seguinte, a organização ingressou formalmente no Partido. Os meetings políticos converteram-se num fato habitual, que a dissolução de um deles, pela Polícia, em abril de 1904, provocou indignação geral, por se considerar esse ato uma violação de direito já conquistado. O enterro dos camponeses mortos nessa ocasião transformou-se numa grandiosa manifestação. Um mês mais tarde, a Policia de Guria achou-se em presença de um acontecimento pouco comum na Rússia: celebração do 1.° de maio pelos camponeses. Em dezembro do mesmo ano (recordemos que a guerra nipo-russa se achava no apogeu) Guria não dava recrutas e nem pagava tributos. O 9 de janeiro de 1905 ficou marcado por meetings e manifestações tumultuosas.
Em 18 de fevereiro do mesmo ano declarou-se o estado de guerra na Guria. Entretanto, ao mesmo tempo, enviaram um funcionário à aludida região para estudar as "pretensões" dos camponeses. O funcionário, naturalmente, não pôde entrar num acordo com os camponeses. À guisa de reivindicações, os camponeses entregaram-lhe o programa mínimo do Partido Operário Social-Democrata Russo. O funcionário foi embora e os camponeses começaram a realizar o programa por conta própria. Todas as "administrações rurais" foram incendiadas (só no decurso de 10 dias, de 1 a 11 de março de 1905, foram incendiadas 16), e expulsaram ou assassinaram os pristav e uriadnik.
Os proprietários cederam e começaram a celebrar tratados com os camponeses, em virtude dos quais os pagamentos destes foram fixados num décimo do rendimento da terra; os proprietários ficaram contentes pelo fato dos camponeses se conformarem em pagar alguma coisa... As tentativas realizadas para sufocar o movimento com os cossacos não deram resultado. Os gurianos, embora mal, estavam todos armados. A infantaria e a artilharia entraram em ação. Em Guria, porém, não se tomaram as medidas de precaução adotadas na Polônia pelo governo czarista: nos regimentos do Cáucaso havia muitos naturais do país. As tropas que se encontravam, há muito tempo, nas fronteiras de Guria — e cuja ofensiva fora contida, em parte, pelos próprios proprietários de terra, agora temerosos de represálias — foram influenciadas pela propaganda, a tal ponto que, em junho, as autoridades, temendo uma rebelião militar, as retiraram das fronteiras. Nada melhor que descrever o estado de coisas dominante na época, valendo-se das palavras de uma testemunha inteiramente imparcial, o professor burguês H. Y. Marr(6), acusado até por alguns dos nossos camaradas caucasianos de propaganda contra os social-democratas. Esta circunstância nada mais fez que valorizar o seu relato, máxima se se levar em conta que Marr é natural de Guria e conhece perfeitamente a língua e os costumes do país. Eis o que ele disse, a propósito do estado de coisas reinante nessa região, em agosto de 1905:
"Há uma vida política intensa nas aldeias. Celebram-se assembleias após assembleias e causa assombro ver como esses camponeses, sobre os quais pesa o trabalho rude do campo, podem encontrar-se em todas as partes, participando vivamente dos debates e permanecendo horas e horas nas reuniões e às vezes dias inteiros. Hoje, "juízo; amanhã discussão de questões de interesse geral, com discurso de um orador conhecido; depois de amanhã, resolução de assuntos locais: questão das escolas, das estradas, da terra, etc. Repito: nas aldeias, as antigas autoridades desapareceram, e, onde existem, permanecem inativas, fazendo o possível para que ninguém se lembre delas; constituem, à sua maneira, uma espécie de sociedade secreta. Por isto, a população tem razão em interpretar, num sentido completamente diferente do que tem na realidade, o manifesto do representante do poder central, proclamando a dissolução das sociedades e organizações secretas. Em Guria, na atualidade, por sociedades secretas subentendem-se os funcionários., a sociedade aos funcionários, etc. Guria acha-se francamente dividida em distritos, cada um dos quais está confiado a uma determinada pessoa. Os "representantes" (czarmomadieeneli) estão subordinados ao chefe do distrito. Cada representante tem a seu cargo três aldeias. À frente de cada aldeia, acha-se um centurião(7), sob cujas ordens estão os "decuriões". Este chefia um "grupo de dez (tsre), do qual faz parte, anuncia verbalmente ao grupo as datas em que se efetuam as reuniões, arrecada as quotas dos seus subordinados, à razão de 10 kopeks (a quota anteriormente era de 20) de cada membro e apresenta à Sociedade, isto é, aos habitantes da aldeia ou de algumas aldeias, segundo o caso, as queixas dos membros do seu grupo. O processo escrito está completamente suprimido. Todos os assuntos são resolvidos verbalmente. O tribunal aceita as petições e soluciona gratuitamente todos os assuntos. As resoluções são executadas sem vacilações, em caso contrário, a própria sociedade age contra o desobediente. As mulheres assistem às assembleias do mesmo modo que os homens. As reuniões realizam-se, segundo o tempo, ao ar livre ou em locais fechados (nas escolas ou nas igrejas). A reunião é convocada por meio do toque de sino.
As assembleias em que se debatem questões políticas gerais, de princípios e mesmo científicas despertam interesse. Tomam parte nessas assembleias todos os aldeãos, embora só coparticipem ativamente dela os elementos mais instruídos, habitualmente operários da cidade e intelectuais da localidade. Entre os operários instruídos da aldeia, há tipos sumamente simpáticos, que têm sede de saber e dão grande valor à ciência, abstração feita de sua importância prática. Diante da minha surpresa e observação de que, mesmo entre os intelectuais é rara tal concepção, e que — mesmo nos meios ilustrados — a ciência é apreciada por sua utilidade material, um operário observou-me não ser possível esperar outra atitude dos intelectuais contemporâneos, pois estes, ou procedem da burguesia, ou são intérpretes de suas opiniões, e, por conseguinte, é natural que considerem a ciência sob o ponto de vista burguês, utilitário... Note-se, ainda, que alguns elementos ativos reconhecem a insuficiência da instrução popular, da qual deriva, geralmente, a extrema ignorância do proletariado. "Nossa desventura — dizia um deles — consiste em que a liberdade nos colheu desprevenidos: chegou antes da instrução". "E daí o seu afã para se instruírem, constituindo, com esse objetivo, círculos e sociedades que realizam a sua missão, mesmo nos momentos de combate..." "Os gurianos esforçam- se por cultivar a sua mentalidade, assistindo aos debates sobre questões de princípio, que têm lugar nas diferentes assembleias, que são uma espécie de universidade embrionária. Numa delas, tomou parte Khtis-Tskaloba, orador muito conhecido no país e que se distinguia pelo conhecimento da matéria. Travara-se o debate entre duas facções do Partido Social-Democrata: entre a "maioria" (bolchevistas) e a "minoria" (menchevistas), Khtis-Tskaloba era o orador da "maioria", mas o único orador. Falaram contra ele diversos adversários. O debate recordava uma discussão universitária entre um expositor, que preparou bem o seu tema e numerosos adversários. Os oposicionistas esforçavam-se por atrair o pública, que pouco compreendia do assunto, por meio de frases altissonantes e rebuscadas sobre questões de interesse geral. O nosso orador, entretanto, sem perder a calma, rebatia todos os pontos abordados pelos contrários. Alguns dos presentes bocejavam, como em nossas conferências e debates, porém muitos ouviam com vivo interesse. O tema versava, principalmente, sobre o papel dos operários e de Marx na elaboração do socialismo científico. Pode-se aquilatar do interesse manifestado pela assistência, considerando que os debates se prolongaram das duas horas da tarde até a uma dá madrugada e a maioria da assembleia permaneceu até ao fim"(8).
Por um relato ulterior acerca de uma manifestação, vê-se que as autoridades de Guria, embora não agissem, desempenhavam um papel singularíssimo:
"diziam que o pristav receava ser obrigado a levar a bandeira vermelha à frente dos manifestantes’' .
Esta emancipação de um pequeno país de pouco mais de cem mil habitantes, valendo-se unicamente das próprias forcas contra o czarismo, entusiasmava todos os nossos camaradas no verão e no outono de 1905. Parecia aos menchevistas a realizado de seu ideal de "autonomia revolucionária". Acha-se em Tiflis o representante do poder central, e, em Guria, a dois passos de Tiflis, reina completa liberdade. Liberdade conquistada pelas armas, acrescentavam os bolchevistas. Aí está um exemplo da exequibilidade da insurreição armada na Rússia.
Indubitavelmente, uns e outros exageravam ao ver em Guria a realização de seus ideais. Antes de tudo, Guria, país montanhoso, coberto de bosques, não se podia comparar com a Rússia central. Era mais difícil penetrar em Guria, onde não havia barricadas, que numa rua qualquer de Moscou atulhada delas. Em segundo lugar, só de longe pode supor-se que para a conquista da independência da Guria houve combates contra tropas regulares. É verdade que em toda "liquidação" das "administrações rurais" falavam os fuzis e os revólveres. No campo inimigo, porém, havia stranjniki ou pequenos destacamentos de cossacos; na luta mais importante que houve — perto de Nosakerali (em outubro de 1905), entraram em ação cerca de 100 plastunov (infantaria cossaca) contra 30 druginiki gurianos bem armados e algumas centenas de camponeses quase que desprovidos de recursos bélicos. Os combates não eram mais renhidos que os de dezembro daquele mesmo ano, travados nas ruas de Moscou e nos quais uma drugina georgiana tomou parte saliente. As autoridades czaristas não se decidiam, como vimos, a deslocar forcas importantes para lá. Quando, em dezembro, chegaram forcas "frescas" de Moscou, não influenciadas pela propaganda, o representante do poder central passou à ofensiva e sem grandes perdas pôde restabelecer a "ordem", assinalada pelo incêndio de aldeias inteiras e fuzilamentos. E não foi grande consolo para os gurianos o fato do chefe dos verdugos czaristas, o general Alikanov, comandante da "repressão", ser morto, mais tarde, por uma bomba terrorista. Naquele momento, já reinava em Guria a paz dos cemitérios.
Por isso, os acontecimentos de Guria não podiam servir de exemplo, nem em favor da insurreição armada (este exemplo, no extremo oposto do "Império", a Finlândia o deu) em apoio da "autonomia revolucionária". A sua significação consistia no que até um professor burguês observou: tratava-se de um modelo típico de insurreição camponesa dirigida pelo proletariado .
Houve outra região da Rússia em que este contacto entre o movimento proletário e o camponês era quase tão íntimo quanto na Guria: Letônia. A Letônia convertera-se em domínio dos Romanov muito antes da Polônia, Finlândia ou Geórgia. A primeira invasão da Letônia pelas tropas czaristas remonta à época anterior aos Romanov, ao século XVI (guerra da Livônia). O segundo Romanov autêntico, sem aspas) Alexis, em meados do século XVII, tentou, sem resultado, tomar Riga. Em princípios do século XVIII, quando da criação do "Império russo". Letônia, em companhia da Estônia, foi integrada no mesmo, do qual só se separou no século XX, ao desmoronar-se o "Império". O domínio dos Romanov era sólido por ter achado o terreno propício: ambos os países já não eram livres; no século XIII, os "cruzados" alemães apoderaram-se deles, convertendo-os em dominadores, de sorte que os novos conquistadores podiam apoiar-se nos antigos. A nobreza da Letônia e da Estônia transmudou-se em servidora dos Romanov ainda mais dedicada que a Georgiana; os últimos czares consideravam-na mesmo mais digna de confiança que a russa e os cargos palacianos e os altos postos policiais eram, em grande parte, desempenhados por gente da nobreza ost sêes.(9) Uma das pessoas mais chegadas ao último czar era o barão Frederik, homem absolutamente incapaz, mas de inteira confiança da família imperial.
Os nobres ost-see foram mestres dos russos em muitas boas coisas; eles foram, por exemplo, os introdutores na Rússia central das cordas para os chicotes em vez dos batogui (cajados) moscovitas. Foram eles que ensinaram aos proprietários territoriais russos, que era mais vantajoso converter o trigo em aguardente do que levá-lo ao mercado em forma de grão ou farinha. "Um cavalo transporta uma quantidade de aguardente tal que, se fora trigo, exigiria seis cavalos". Foram eles, também, que mostraram, pela primeira vez, como se deve "emancipar" os camponeses: ao serem os servos da Letônia e da Estônia "emancipados" em 1819, tiraram-lhes todas as terras, de tal modo que, desde então, os camponeses estonianos e letões só podiam ser arrendatários das terras senhoriais ou jornaleiros. Os "barões" alemães consideravam esses camponeses uma raça inferior. Os descendentes dos "cavaleiros", que conquistaram o país na Idade Média, não podiam resignar-se à ideia de que o letão ou o estoniano fosse um ser humano.
No período feudal, as relações eram, pouco mais ou menos, as mesmas que na América entre os plantadores brancos e os negros. Tanto num como noutro lugar acudia em auxílio do plantador o padre (neste caso, o padre católico até o século XVI; o pastor luterano depois), que pregava a resignação e a humildade aos escravos. Sob o domínio dos czares, o padre ortodoxo começou a rivalizar com aqueles. Os camponeses, vendo que os padres querelavam entre si, regozijaram-se e começaram a confiar num futuro mais promissor. Os letões, especialmente, principiaram a converter-se à igreja ortodoxa. Não tardaram, porém, em convencer-se que, por mais que os padres brigassem entre si, o fazendeiro não se via ameaçado e, mesmo no caso de se livrarem inteiramente do "pastor", o "barão" (assim chamavam ao "senhor") não se abalaria. Depois disso, os camponeses mostraram-se indiferentes para com a ortodoxia. A "russificação", como já dissemos, consistia, naquela época, numa campanha contra as línguas regionais(10) e na invasão do país por funcionários que falavam com a população valendo-se de tradutores.
Isto tinha lugar no país que, todo império, era o que mais; se aproximava do tipo europeu. Enquanto na Rússia europeia de fins do século XIX a percentagem da população urbana não passava de 13, na Letônia atingia 31. Quase a terça parte da população compunha-se de habitantes urbanos. E a maioria esmagadora dos aldeãos era proletária. Numa população de 3.000.000 havia 600.000 camponeses arrendatários (contando as suas famílias); proletários, 1.300.000; os restantes eram jornaleiros agrícolas.
A propriedade agrária tinha um caráter burguês como em nenhuma parte da Rússia; as fazendas dos "barões" eram imensas empresas agrícolas ocupando frequentemente centenas de operários. Por esse motivo, as contradições de classe na aldeia eram sumamente agudas; nenhuma delas estava tão preparada como a letã por seu desenvolvimento, para a propaganda social-democrata. Além disso, havia nessa região dois grandes centros urbanos, futuras capitais das Repúblicas letã e estoniana. Deles, Riga era um dos grandes centros industriais e proletários do "Império"; Reval, menos industrializado, era um porto marítimo importante, com uma numerosa população operária.
O movimento proletário alcançara grande desenvolvimento desde fins do século XIX. Em 1903, surgiu o Partido Social- Democrata Letão, bolchevista quase em sua totalidade; o menchevismo não desempenhou na Letônia nenhum papel. Aquele tornou-se o partido de todo o proletariado letão e não só do urbano. Este partido encontrou para sua atuação um ponto de apoio particularíssimo. Como os "barões" criam que a única necessidade espiritual de seus escravos era a religião — salvar a alma é necessário mesmo ao camponês! — as igrejas se transformaram em centros públicos da aldeia, onde os camponeses se reuniam. Os agitadores social-democratas faziam das igrejas ou das tabernas os seus "clubes". As funções religiosas iam-se convertendo num pretexto cada vez mais cômodo para organizar meetings. Era coisa corrente levantar-se um homem de entre a multidão, enquanto o pastor pregava, e propor que se ouvisse a ele em vez do padre. Então, a multidão seguia-o ao átrio da igreja ou à praça imediata e o sermão luterano era substituído, as vistas do pastor estupefato, pela propaganda socialista. Foi por isto que o progresso do movimento revolucionário na Letônia se acompanhou de um fenômeno inesperado: o fechamento das igrejas. Quando o movimento letão de 1905 estava no apogeu, as autoridades fecharam os templos. Em janeiro de 1905, Riga atravessou dias semelhantes aos de Varsóvia; Reval, em outubro do mesmo ano, foi uma das poucas cidades do "Império" em que o proletariado, durante alguns dias, dominou inteiramente a situação, obrigando o governador a capitular. Mas, embora em ambos os lugares os operários se armassem — em Riga chegaram a levantar barricadas — uma insurreição armada semelhante à da Finlândia ou à da Guria não era possível, pela mesma razão que na Polônia, visto Riga e Reval serem fortalezas militares, nas quais se achavam concentrados grandes contingentes de tropas, compostos de elementos vindos de fora, completamente estranhos à população, e que, dificilmente, se colocariam ao seu lado. Eis porque, apesar do espírito revolucionário do proletariado, sobretudo do letão, este não se podia lançar na luta armada com esperança de êxito a não ser na aldeia.
A aldeia letã e, em grau menos elevado, a estoniana, transformaram-se, por conseguinte, no único lugar do "Império" em que se levou à realidade a insurreição armada em grandes extensões fora dos centros industriais. A característica do mencionado movimento foi o seu pronunciado caráter de classe. Em Moscou, em Rostov, na linha siberiana, na Guria, as druginas operárias e camponesas lutavam contra as tropas czaristas; na Letônia e na Estônia, os camponeses lutavam diretamente contra os fazendeiros e contra o pessoal de serviço militarizado por estes. Além disso, os descendentes dos cruzados recebiam habitualmente um regimento de dragões e com toda essa forca organizavam guerrilhas contra os camponeses armados. Mas o tempo das "cruzadas" havia passado e no século XX os camponeses mostraram-se evidentemente mais fortes que os senhores. Foram tomadas cerca de 300 casas senhoriais e devastadas e incendiadas pelos insurretos. A nobreza fugiu aterrorizada para a Prússia e Guilherme escrevia a Nicolau, com amargura e indignação, que as nobres baronesas, para poderem subsistir, se veriam obrigadas a trabalhar como criadas de serviço ou como lavadeiras. Como vemos, o movimento letão era, em todos os seus aspectos, uma espécie de prelúdio do que, em proporções imensas, teve lugar em toda a Rússia em 1917.
O governo czarista não podia, naturalmente, ficar indiferente diante desses acontecimentos. Enviaram-se às províncias ost see, como a Moscou, regimentos de granadeiros escolhidos; tratava-se nada menos que de salvar os servidores mais dedicados da casa czarista. Mandou-se à Estônia um destacamento especial formado por marinheiros que se revoltaram em Cronstadt, em outubro de 1905; enganavam agora esses infelizes, embriagados naquele momento, com a esperança do perdão, caso servissem fielmente o czar, lutando contra os seus irmãos camponeses cuja língua não compreendiam. À frente dessas forcas, marchavam os "barões" vestidos com uniformes de general e de oficial. Havia muitos deles no exército e nessa expedição tomaram parte com um prazer especial.
Os camponeses letões e estonianos não puderam, naturalmente, resistir diante de forcas regulares importantes. Os mais valorosos refugiaram-se nos bosques e ali sustentaram, durante algum tempo, uma luta de guerrilhas. Muitos deles foram fuzilados no lugar. As execuções sem formação de culpa que, na Rússia central, constituíam rara exceção e, na Polônia, começavam a tornar-se comuns, na Estônia e na Letônia, converteram-se em regra sem exceção. A crueldade dos "barões" comandantes das forcas "pacificadoras" provocou a indignação até mesmo de Witte. Durante a "pacificação", morreram 10.000 pessoas. Os "barões" deram provas de um ódio particular à socialdemocracia letã; o simples fato de pertencer a este partido era punido com trabalhos forçados.
O proletariado letão passou por uma severa escola no inverno de 1905-06; eis porque forneceu mais tarde tão valorosos combatentes à revolução de outubro.
Notas de rodapé:
(1) Só em abril e maio desse ano houve na Rússia 116 atentados contra diferentes funcionários da administração czarista, dos quais houve 62 mortos e 62 feridos. (N. do A.). (retornar ao texto)
(2) Depois da morte de Pleve por uma bomba socialista-revolucionária, nem um só Ministro do Interior, durante toda a revolução, caiu vitima de atentados. A tentativa realizada para matar Dubassov fracassou; Dubassov apenas ficou ferido e o atentado custou a vida de alguns terroristas. O organizador do 9 de Janeiro, grão-duque Wladimir, não recebeu si quer um arranhão. O atentado contra Stolipin custou muitas vitimas e Stolipin saiu ileso, etc., etc. (N. do A.). (retornar ao texto)
(3) Kalandadze e Mjeidze. Apontamentos sobre o movimento revolucionário em Guria. (N. do A.). (retornar ao texto)
(4) Schajnazarian. O movimento camponês na Geórgia. — (N. do A.).(retornar ao texto)
(5) Chamava-se "galo vermelho", entre o povo, o incêndio ateado pelos camponeses nos bens dos fazendeiros. (retornar ao texto)
(6) O professor Marr é um filólogo, atualmente membro da Academia de Ciências de Leningrado e colaborador de diferentes instituições cientificas soviéticas. (retornar ao texto)
(7) Uma espécie de prefeito. (retornar ao texto)
(8) Prof. M. Marr: Minhas impressões e observações de Guria. (N. Do A.). (retornar ao texto)
(9) Os alemães chamam ost see (Mar do Este) ao Mar Báltico, por que se acha a este da Alemanha; eis porque a Estônia e a Letônia são consideradas províncias do este. (N. do A.). (retornar ao texto)
(10) Falavam-se três línguas: a alemã, idioma das classes dominantes; o letão, da família aria, tão afim do lituano e do estoniano, e, mais ainda, o finlandês, em que estes e os estonianos se compreendiam sem dificuldade. (N. do A.). (retornar ao texto)
Inclusão | 20/01/2015 |