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A REPÚBLICA DE ONTEM A REPÚBLICA DE AMANHÃ
S. F. — Sabendo que o 5 de Outubro se insere na luta da burguesia pelo poder, que importância atribui às classes trabalhadoras no movimento que pôs termo à monarquia em Portugal?
C. O. — Em primeiro lugar, o 5 de Outubro situa-se no prolongamento das transformações burguesas que têm lugar em Portugal a partir de 1820. Podemos dizer que é o último episódio da revolução democrático-burguesa que tem em 1834, 1836, 1850-51 e no 31 de Janeiro, os seus marcos históricos. O 5 de Outubro é assim um avanço limitado de carácter não estrutural, que tem o seu aspecto positivo na medida em que permite uma liberdade de acção, uma liberdade de ataque às forças reaccionárias, nomeadamente à igreja jesuítica, o que vem a traduzir-se por um avanço da prática política em Portugal.
Se nós compararmos os estratos sociais de onde têm origem os deputados e senadores da República e os estratos sociais que originaram os membros dos parlamentares constitucionais imediatamente anteriores a 1910, vemos que a diferença na constituição social do poder político português não se altera significativamente da Monarquia para a República.
Em segundo lugar, os governos republicanos, na tentativa de obstar à posição de intentonas chefiadas por monárquicos, nomeadamente por Paiva Couceiro, enveredaram por uma política de repressão às classes trabalhadoras, que teve como consequência a criação de um abismo entre a República Democrática e as classes trabalhadoras. Nesta separação abismal insere-se o decreto que Brito Camacho, ministro do Fomento, fez publicar em Novembro de 1910 sobre a greve. Logo atacado por todas as organizações sindicais, é conhecido pelo «decreto-burla». Com efeito, este decreto, permitindo o direito à greve, permitia o direito ao trabalho concretizado na possível evocação da força pública para garantir esse direito.
Como é óbvio, isto permite todas as manobras de fura-greves, lock-out, etc. As reacções a este decreto não se fizeram esperar e logo a seguir produzem-se os confrontos entre a recém-criada Guarda Republicana e o Exército, nomeadamente na ocupação e destruição da Casa Sindical, na Calçada do Combro, na repressão brutal às greves rurais do Alentejo, ainda em 1911, e na declaração do estado de sítio do Governo de Álvaro de Castro, em 1913.
Em terceiro lugar, há a salientar que a breve trecho, logo após a implantação da República, se produziu junto das classes trabalhadoras um desencantamento acerca dos benefícios da revolução republicana em Portugal. Com efeito, não mudando as estruturas sociais do País, não mudando as estruturas do poder, os trabalhadores portugueses logo adquiriram consciência. Eram animados por uma plêiade de sindicalistas admiráveis, tais como Carlos Rato, futuro secretário-geral do P. C., Adolfo Lima, Campos Lima, Alexandre Vieira, Pinto Quartim e outros, animados por uma propaganda intensiva, a que correspondia um esforço enorme, dado que passaram a constituir sindicatos rurais no Alentejo, em Trás-os-Montes e outras terras. Acabaram por se pronunciar contra as novas posições republicanas que os oprimiam e dominavam. Lembro-me até que em 1911, uma manifestação antigrevista organizada pela Carbonária aglutinou todos os pequenos comerciantes, pequenos industriais e proprietários urbanos.
S. F. — Quais as classes sociais mais representativas dentro do Partido Republicano Português?
C. O. — O Partido Republicano Português era um partido de construção e formação altamente heterogéneas durante o período de propaganda. Mistificando as massas trabalhadoras, o Partido Republicano Português conseguiu criar a ilusão de que era possível, com o advento da República, a criação de um mundo totalmente favorável às classes trabalhadoras. Os anarquistas e sindicalistas participaram activamente no derrube da monarquia.
Até se construiu uma Carbonária anarquista, que se comprometeu a apressar a queda da monarquia, ficando com o encargo de sabotagem e dinamitagem da Guarda Municipal. Fê-lo com a ressalva de que mal acabasse a queda da monarquia recomeçaria o combate à burguesia.
O Partido Republicano, sendo heterogéneo, agregou sobretudo a pequena burguesia urbana, os pequenos comerciantes e também grande parte das massas trabalhadoras, embora o Congresso Sindicalista de 1909 determinasse, claramente, uma opção que não passava pela institucionalização da democracia burguesa.
S. F. — Além do Partido Republicano, que outros partidos ou grupos se vão constituindo, e fortalecendo, durante a Primeira República?
C. O. — O Partido Republicano, salvo erro, em Agosto de 1911, cinde-se em três. Brito Camacho funda a União Republicana, que ficou conhecida pelo Partido Unionista, António José de Almeida funda o Partido Evolucionista. Permanece no Partido Republicano o Afonso Costa e outros democratas, que passam a ser conhecidos pelo Partido Democrático.
A base da implantação social de cada um destes partidos é diferente. Podemos dizer que à direita estava o partido de Brito Camacho, que procurava congregar ao mesmo tempo os grandes industriais, grandes agrários e a inteligência burguesa republicana. O Partido Evolucionista vivia muito na base da figura carismática e popular de António José de Almeida. Sem dúvida que o único destes partidos que tinha um projecto político consequente e acção política fundada num jacobinismo e radicalismo pequeno-burguês era o Partido Democrático. Havia por outro lado, grupos independentes, sendo o mais importante o que se desenvolveu à volta de Machado Santos, sobretudo através dos jornal «Intransigente». Esses partidos evoluem e são determinantes até 1919.
Quanto ao Partido Socialista, que nunca foi um partido de massas em Portugal, sempre se norteou por uma prática política formativa eleitoralista, que nunca compreendeu a dinâmica da sociedade portuguesa de modo a inserir-se nela e partir daí para uma luta social. O Partido Socialista desaparece praticamente da cena política como força operária, em 1914, quando se cria a União Operária Nacional.
S. F. — Neste conjunto partidário, qual foi o papel específico das correntes anarquistas?
C. O. — Os anarquistas, sobretudo os anarco-sindicalistas de tendência revolucionária, que não sendo identificáveis pertencem todos à mesma família, tiveram obviamente um papel muito importante em Portugal. Sobretudo na educação social da consciencialização das massas trabalhadoras na propaganda e organização sindical.
Os anarquistas são no fundo idealistas e, portanto, terão certas limitações na compreensão exacta do processo histórico e sobretudo na compreensão exacta dos mecanismos que há que pôr em movimento para a conquista do poder. De facto, os anarquistas foram incapazes de se dotar dos meios que lhes permitissem ao mesmo tempo um confrontamento directo contra o capital, seja qual for a forma da sua dominação, e, ao mesmo tempo, exerceram uma acção contra o poder político que é a expressão dessa dominação do capital. Aconteceu que os anarco-sindicalistas, sindicalistas revolucionários e anarquistas puderam de facto conduzir uma luta junto do patronato explorador nas fábricas e nos campos sem intermediário e em que a greve foi uma arma extremamente importante.
A transferência da luta de classes dos corredores alcatifados para a fábrica, oficina, escritório, empresa e para o campo foi obra dos anarquistas em Portugal. Esta luta, assim concebida, necessitava de ter um aparelho político e uma organização que fosse ao mesmo tempo o instrumento globalizador das lutas, a sua síntese e fizesse avançar mecanismos de conquista de poder, dado que a dominação da burguesia capitalista não se exerce apenas na fábrica, na oficina, no campo e no escritório, mas ao nível do aparelho de Estado, da dominação cultural e da dominação ideológica.
Os anarquistas foram extremamente limitados no seu ponto de vista, quando não acompanharam toda a acção de massas com a luta contra o aparelho de Estado, sobretudo do aspecto político, económico e cultural. Esperar que uma greve geral ponha na mão dos trabalhadores, como de bandeja, a destruição do Estado capitalista significa que nos esquecemos de todos os aparelhos repressivos, de todos os aspectos de dominação que são exercidos através do aparelho de Estado que, correspondendo à evolução e desenvolvimento de uma repressão capitalista, não tem na luta política uma importância de tal modo construída que a destruição do poder nas oficinas, nas fábricas e nos vários sítios seja acompanhada pela destruição do poder do aparelho do Estado. Isto constitui uma grave brecha dos anarquistas: a inexistência de uma acção política capaz de aproveitar aos vários níveis as contradições na sociedade capitalista portuguesa de modo a desenvolver a luta de classes.
Em Portugal, o anarquismo está completamente ultrapassado em termos de actualidade política e da dinamização política. Hoje, do mesmo modo que estão postas de parte todas as formas de estalinismo, que estão ao fim e ao cabo, na origem de toda a contra- -revolução mundial que, a partir de 1927-28, teve lugar no movimento operário internacional.
S. F. — Como se processou a articulação entre a «intelligentzia» e as classes trabalhadoras no período que vai de 1910 a 1926?
C. O. — Nomeadamente na «Batalha» e na revista que a central anarco-sindicalista levou para a frente, «Renovação», na «Seara Nova»,de certo modo no Partido Socialista e até no Partido Comunista, vieram a confluir muitos intelectuais.
Por exemplo, César Porto, Aurélio Quintanilha, Sobral Campos, Campos Lima, Adolfo Lima, António Sérgio, o próprio Ezequiel de Campos que em 1925 lança os fundamentos do que podia ser uma reforma agrária em Portugal.
Havia uma aliança estreita entre certos sectores da inteligência revolucionária portuguesa e as classes trabalhadoras. É óbvio que faltava às classes trabalhadoras uma organização política capaz de fazer a síntese revolucionária da luta que a classe operária e os trabalhadores em geral realizavam em Portugal. Concretamente, o Partido Comunista não poderia ser esta força quer pela sua debilidade, quer pela fraqueza da produção teórica e das suas análises que, na generalidade, estavam incorrectas e inadequadas ao processo político português.
Por outro lado, a central sindical da C. G. T. era também manifestamente insuficiente, dado que fazia depender de uma greve geral revolucionária a destruição do Estado capitalista, não tendo nem aparelhos teóricos nem aparelhos políticos capazes de impulsionar a conquista do poder às classes trabalhadoras portuguesas. Desde 1911, mais concretamente desde o «decreto-burla», decreto-lei das greves de 1910, abriu-se um fosso entre a República Democrática e as classes trabalhadoras. Isto explica em parte a facilidade com que se fez o golpe de Estado de 1926.
S. F. — A Primeira República foi o resultado natural da evolução do liberalismo monárquico. Como se explica o 28 de Maio que, em 1926, institui em Portugal uma ditadura militar?
C. O. — A partir de 1917, com a aparição de Fátima e a criação da Cruzada Nuno Álvares, com o exemplo da revolução russa vitoriosa de Outubro de 1917 e ainda com a subida ao poder de Primo de Rivera e de Mussolini, começam a aparecer nos jornais portugueses frases como: «Portugal precisa de um ditador como Mussolini ou Primo de Rivera. Quem é que vem salvar a Pátria?».
O perigo da revolução social era latente. Dá conta disto a cisão de Domingos dos Santos, que no ano de 22/23, sai do Partido formando a Esquerda Democrática, alinhando ao lado da esquerda em Portugal.
O problema que estava na ordem do dia era por um lado a incapacidade dos partidos burgueses da República em assegurarem uma estabilidade mínima indispensável que garantisse às classes possuidoras a sua existência política dominante. Por outro lado, o exemplo da Revolução de Outubro na Rússia, acrescido de uma força sindical poderosa — a C. G. T., com 135 mil filiados ao lado da qual alinhava o Partido Comunista, uma força extremamente minoritária, o Partido Socialista, a Esquerda Democrática e a «Seara Nova».
Todos os partidos republicanos, excepto o Partido Democrático, que estava no poder, participam no golpe de Estado. Os partidos democratas burgueses estavam interessados num golpe militar que criasse um poder forte, que estabilizasse a vida política portuguesa. Por exemplo, o general Gomes da Costa era membro do Partido Radical Republicano, que era do centro-esquerda, cujo programa era progressista. Por outro lado, com o 18 de Abril de 1925, ensaio geral para o 28 de Maio, criaram-se condições para uma unidade de todos os partidos burgueses, quer procurando de uma vez por todas, destruir a hegemonia do Partido Democrático quer, por outro lado, tentando eliminar o perigo de uma revolução social em Portugal.
Em 1926, a propaganda religiosa à volta de Fátima, a Cruzada Nuno Álvares, a Confederação Patronal, a União dos Interesses Económicos, grupos nacionalistas e nacionais-sindicalistas, etc., tinham cavado o terreno para que o golpe militar de 28 de Maio adquirisse todo o carácter reaccionário que se veio a desenvolver.
S- F. — Que conclusões de carácter imediato se podem tirar da história da República Democrática?
C. O. — Nenhuma modificação política é realmente significativa se não for acompanhada de mudanças estruturais, que favorecem as classes trabalhadoras e oprimidas de uma dada sociedade.
Isto não quer dizer que as classes trabalhadoras não tenham sido sempre a vanguarda contra as tentativas reaccionárias, que surgiram durante a Primeira República. Foram as classes trabalhadoras que estiveram na vanguarda do Monsanto, quando da intentona monárquica de 1919. Foram as classes trabalhadoras que destruíram a possibilidade do golpe militar de 1925.
É fundamental ter presente que a República Democrática caiu porque se apoiou numa burguesia liberal incapaz de integrar no seu próprio processo político as reivindicações das classes trabalhadoras.
É este tema que nos coloca abertamente na actualidade.
S- F. — Em que termos é então possível estabelecer uma analogia entre o período que acaba de abordar e o movimento democrático iniciado com o 25 de Abril?
C. O. — O que se verificou até 1926 foi a incapacidade da burguesia portuguesa deter um poder económico que fosse acompanhado de um poder político estável, capaz de evitar conflitos. Os conflitos sociais evitam-se pela reintegração progressiva e sistemática das reivindicações das classes trabalhadoras no próprio processo produtivo da burguesia e no próprio processo político, de modo a obter um equilíbrio social que seja o fundamento do equilíbrio político.
Isto, que é próprio dos países capitalistas avançados, foi e é ainda impossível em Portugal. O salário mínimo nacional de três contos e trezentos deixa de fora grande parte da população activa. Tal é o caso de grande parte dos camponeses, soldados e marinheiros que serão aí os seus seiscentos ou setecentos mil indivíduos. É a prova mais que evidente da incapacidade da burguesia portuguesa. Em certos sectores, como a indústria têxtil, que ocupa cerca de duzentos mil indivíduos, se os trabalhadores reivindicarem mais duzentos escudos mensais, irão à falência uma série incalculável de empresas.
Diz-se, e o Primeiro-Ministro ainda o disse aqui há dias, que é necessário e urgente institucionalizar a democracia em Portugal. Se a democracia que se pensa institucionalizar é a democracia burguesa, tipo ocidental, fundada no equilíbrio de classes, tal institucionalização é impensável.
Isto pelas seguintes razões: em primeiro lugar o desenvolvimento do modo de produção capitalista em Portugal não criou uma burguesia com capacidade económica e até com capacidade de gestão para integrar no seu próprio projecto político as constantes reivindicações das classes trabalhadoras.
O sistema de implantação do capitalismo em Portugal é um processo lento, cuja fase final se realizou ou na dependência do capital estrangeiro ou na exploração colonial. Primeiro no Brasil, depois, a partir do século XX nas explorações coloniais. O fascismo português realiza na prática o processo de acumulação de capital, através da exploração colonial, que permitiu à burguesia investir em novos instrumentos produtivos da actividade económica portuguesa.
Em segundo lugar, para que a democracia burguesa portuguesa fosse possível, havia que verificar-se uma estabilidade social marcada pelo equilíbrio entre as classes trabalhadoras e as classes possuidoras. Ora este equilíbrio é instável, quer pela existência de fortes classes médias em Portugal, quer pela maioria da população activa aglutinada nas classes trabalhadoras.
A democracia burguesa —com liberdade para todos — é impensável e impossível. A experiência destes poucos meses mostra que a liberdade para os partidos da direita significa a continuidade das sucessivas intentonas da reacção. A burguesia não tem capacidade de resposta às reivindicações económicas, sociais e de saneamento. O capitalismo tem necessidade de um regime forte, única forma de lhe garantir a continuidade no poder. Daqui a uns tempos haverá novas tentativas da burguesia aglutinada em partidos da direita, que substituirão os que agora foram destruídos, para impor o seu domínio de classe.
S. F. — Uma vez recusada a via de uma democracia burguesa com liberdade para todos, que solução prevê para a situação actual?
C. O. — É possível em Portugal um poder popular que seja uma fase de transição entre o momento actual e o socialismo e que garanta, minimamente, uma democracia avançada para os trabalhadores. Claro que este não é o esquema da integração na Europa.
Não é o esquema que permita ao capital estrangeiro, chefiado pelo capital norte-americano, exercer a sua dominação em Portugal. Para instituir um poder popular que sirva de facto os trabalhadores é necessário que nós criemos em Portugal um sistema de aliança internacional.
É necessário mudar o sistema de aliança para países que nada têm a ver com o capitalismo industrial avançado que lutam contra o capital norte-americano. Refiro-me aos países do Terceiro Mundo, aos países de língua árabe e aos países que serão Moçambique, Angola, e Guiné. Esta aliança permitirá que Portugal afronte a burguesia dependente do capital estrangeiro e as manobras do capitalismo e do imperialismo em Portugal.
S. F. — Como se insere a actuação pluripartidária, dentro do poder popular a que acaba de se referir?
C. O. — A título pessoal, aliás como toda esta entrevista, penso na necessidade de uma nova organização política. É necessário unificar as lutas parciais da classe operária numa organização política. É urgente criar uma vanguarda revolucionária das classes trabalhadoras, que seja produto da luta destas classes.
A construção deste novo partido revolucionário terá a ver com as condições concretas em que se desenvolve a luta de classes, com a história do modo de produção capitalista entre nós e com o desenrolar da luta progressista.
Na actual fase, a possibilidade de uma revolução socialista é remota, dado que não existem condições, nem objectivas, nem subjectivas, para que ela seja possível.
Não se pode estar ao mesmo tempo ao lado dos capitalistas e dos trabalhadores, e o Governo Provisório tem estado, simultaneamente, ao lado dos trabalhadores e dos capitalistas. Isto envolve uma série de contradições de que estes últimos dias foram a evidência mais eloquente. O poder popular a que me referi não pode ser realizado nem pelo Partido Comunista, nem pelo Partido Socialista, nem pela Esquerda Socialista, nem pela Liga Trotskista, mas por todas as forças políticas que em Portugal têm uma implantação operária e audiência junto das classes trabalhadoras.