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Londres, 7 de dezembro de 1861
A imprensa de Palmerston — e em outra ocasião mostrarei que, em termos de relações internacionais, Palmerston controla 90% da imprensa inglesa de modo tão absoluto quanto Louis Bonaparte controla a imprensa francesa — sente estar trabalhando sob “obstáculos encantadores”.(1) Ela admite, por um lado, que juristas da Coroa reduziram a acusação contra os Estados Unidos a um mero erro de procedimento, um deslize técnico. Por outro lado, ela fanfarreia que, com base em chicana jurídica, um ultimato autoritário foi dado aos Estados Unidos, um que só pode ser justificado como uma violação grosseira da lei, e não por um erro formal no exercício de um direito reconhecido. Supostamente, a imprensa de Palmerston está apelando agora à questão do direito material. A imensa importância do caso parece exigir somente um breve exame da questão de direito material.
A título provisório, pode-se observar que nem um único jornal inglês se aventura a censurar o San Jacinto por sua visita e inspeção do Trent. Assim, esse aspecto fica fora da controvérsia.
Antes de tudo, mais uma vez ressaltamos a passagem relevante na proclamação da rainha Vitória de 13 de maio de 1861 acerca da neutralidade. A passagem diz:
“Vitória R.
Estamos em paz com os Estados Unidos [...] alertamos todos os nossos prezados súditos [...] que abstenham de interferir em nossa Proclamação [...] por meio de rompimento do bloqueio legalmente reconhecido ou por meio de transporte de oficiais, [...] despachos [...] ou qualquer contrabando de guerra. Todos os indivíduos que cometerem tais infrações serão passíveis de diversas penalidades impostas pelas leis municipais britânicas e as leis das nações [...] Tais indivíduos não receberão, de nenhuma maneira, nossa proteção contra as consequências de sua conduta, mas, pelo contrário, enfrentarão nosso descontentamento”.(2)
Essa proclamação da rainha Vitória, portanto, declara antes de tudo que despachos são formas de contrabando, o que torna navios que carreguem tais contrabandos passíveis da “penalidade pela lei das nações”. Quais são essas penalidades?
[Henry] Wheaton, um autor americano que escreveu sobre lei internacional e cuja autoridade se deixa reconhecer em ambos os lados do Oceano Atlântico, diz em seu Elementos de Lei Internacional [Elements of International Law], p. 565:
“O transporte de despachos de inimigos em uma nau neutra a submete a apreensão e confisco. As consequências de tal serviço sobrepõem e muito o efeito do transporte de contrabandos ordinários [...] como o Sir. W. Scott, juiz inglês, diz, o transporte de artigos bélicos é necessariamente um transporte de natureza limitada, enquanto o transporte de despachos é um ato que pode pôr abaixo todo um plano de campanha do oponente [...] O confisco do artigo nocivo, que constitui a penalidade habitual do contrabando, seria ridículo se aplicado a despachos. Despachos não contam como frete. Portanto, seu confisco não afeta o proprietário do navio e, destarte, não é uma punição contra o navio que os carrega. O veículo que os carrega deve, assim, ser confiscado.”
[Timothy] Walker, em seu Introdução ao Direito Americano [Introduction of American Law], diz:
“[Embarcações] neutras não devem tomar parte em despachos inimigos, sob penalidade de confisco do navio e de sua carga”.
[James] Kent, que é tomado como uma autoridade decisiva nas cortes inglesas, afirma em seus Comentários sobre a lei internacional [Commentaries on International Law]:
“Caso, na revista de um navio, for descoberto que ele carrega despachos inimigos, ele será submetido à penalidade de apreensão e confisco sob julgamento de uma corte qualificada”.
OdoutorRobert Phillimore, advogado de Vossa Majestade em seu Tribunal do Almirantado, diz em sua mais nova obra sobre lei internacional, p. 370:
"Comunicações oficiais vindas de um oficial acerca dos assuntos de um governo beligerante são despachos que imprimem um caráter hostil em quem os carrega. As consequências prejudiciais de tal serviço são incalculáveis e se estende para além do efeito de qualquer contrabando habitual, pois é manifesto que, ao transportar tais despachos, os planos mais essenciais de um exército beligerante podem ser repassados ou obstruídos [...] A penalidade é o confisco do navio que leva os despachos e de sua carga.”
Assim, duas coisas são certas. A proclamação da rainha Vitória de 13 de maio de 1861 submete navios ingleses que carregarem despachos da Confederação às penalidades da lei internacional. A lei internacional, de acordo com intérpretes ingleses e americanos, impõe a pena de apreensão e confisco de tais navios.
Os órgãos de Palmerston, assim, mentiram sob ordens vindas de cima — e nós fomos ingênuos o bastante para acreditar em sua mentira — ao afirmar que o capitão do San Jacinto malogrou na tarefa de procurar por despachos no Trent e, portanto, não encontrou nada; que, daí, o Trent, teria se tornado intocado em função desse descuido. Os jornais americanos de 17 a 20 de novembro, que ainda não tinham notícia da mentira inglesa, afirmaram unanimemente que, pelo contrário, os despachos foram retidos e já se encontravam na prensa para ser dispostos perante o Congresso em Washington. Isso muda todo o quadro. O San Jacinto, por causa dos tais despachos, tinha o direito de guinchar o Trent, e qualquer corte especializada americana tinha o dever de confiscar tanto a nau, quanto sua carga. Com o Trent viriam, obviamente, seus passageiros situados dentro da jurisdição americana.
Os senhores Mason, Slidell e companhia, assim que o Trent embarcou em Monroe, foram sujeitados à jurisdição americana na condição de rebeldes. Se, portanto, em vez de guinchar o Trent em um porto americano, o capitão do San Jacinto tivesse se contentando em tomar posse dos despachos e aqueles que os carregavam, não teria piorado, de qualquer forma, a posição de Mason, Slidell e companhia. Por outro lado, na medida em que o erro de procedimento beneficiou o Trent, sua carga e seus passageiros, de fato, teria sido uma novidade se a Inglaterra quisesse declarar guerra contra os Estados Unidos por que o capitão Wilkes cometeu um erro de procedimento penoso para os Estados Unidos, mas lucrativo para a Inglaterra.
A questão sobre os próprios Mason, Slidell e companhia serem contrabandos só foi e só poderia ser levada em conta porque os jornais de Palmerston divulgaram a mentira; que o capitão Wilkes nem vasculhou em busca de despachos, nem os reteve. Nesse caso, Mason, Slidell e companhia de fato teriam sido os únicos itens presentes no navio Trent que estariam aptos a ser categorizados como contrabando. No entanto, desconsideremos esse aspecto por ora. A proclamação da rainha Vitória designa officials de um partido beligerante como contrabando. Será que esses officials dizem respeito meramente a oficiais militares? Seriam Mason, Slidell e companhia officials da Confederação? “Officials“, diz Samuel Johnson em seu dicionário da língua inglesa, são “homens empregados pelo serviço público”. Isto é, em alemão, öffentliche Beamte, funcionários públicos. Walker provê a mesma definição (ver seu dicionário, edição de 1861).
Portanto, de acordo com o vernáculo da língua inglesa, Mason, Slidell e companhia, esses emissários, id est, oficiais da Confederação, se encaixam na categoria de officials, os quais a proclamação real declara como contrabando. O capitão do Trent sabia que exerciam tal função, tornando, desta feita, a si, seu navio e seus passageiros sujeitos ao confisco. Se, de acordo com Phillimore e todas as outras autoridades [no assunto], o navio se torna sujeito a confisco como carrier [portador] de um despacho inimigo, já que está violando a neutralidade, em um nível ainda mais alto isso vale para a pessoa que está carregando os despachos. De acordo com Wheaton, mesmo um embaixador inimigo, contanto que esteja in transitu, é passível de ser interceptado. Em geral, contudo, o fundamento de toda lei internacional é que qualquer membro de um partido beligerante possa ser considerado e tratado como “beligerante” pelo partido a que opõe.
“Contanto que”, diz Vattel, “persista sendo um cidadão de seu próprio país, ele é inimigo de todos aqueles com quem sua nação se encontra em situação de guerra”.(3)
Vê-se, portanto, que os oficiais de lei da Coroa inglesa reduziram o assunto em disputa a um mero erro de procedimento, não um erro in re, mas um erro in forma, porque, na verdade, não ocorreu nenhuma violação de direito material. Os órgãos de Palmerston tagarelam sobre a questão do direito material mais uma vez, pois, um mero erro de procedimento, em interesse do Trent, não dá pretexto plausível para que se emita um ultimato em alto e bom som.
Entrementes, vozes importantes se ergueram nesse sentido de lados diametralmente opostos. De um lado, os senhores Bright e Cobden; do outro, David Urquhart. São inimigos em questão de princípios e em questões pessoais: os dois primeiros, cosmopolitas pacíficos; o terceiro, o último dos ingleses; os primeiros, sempre prontos para sacrificar toda legislação internacional em prol do comércio internacional; o outro, não vacila em momento algum no princípio Diat justitia, pereat mundus [que se faça justiça ainda que o mundo venha abaixo] — e a justiça em questão, é claro, ele entende pela justiça inglesa. As vozes de Bright e Cobden são importantes pois representam um setor poderoso dos interesses da classe média, e são representadas no Ministério por Gladstone, Milner Gibson e, também, em partes, pelo Sir Cornewall Lewis. A voz de Urquhart é importante pois a lei internacional foi seu tema de estudo por toda a vida, e todos reconhecem-no como um intérprete incorruptível dessa legislação internacional.
As fontes jornalísticas usuais comunicarão o discurso de Bright em suporte aos Estados Unidos, assim como a carta de Cobden, concebida no mesmo sentido. Portanto, não me demorarei neles.
O órgão de Urquhart, The Free Press, afirma em sua última edição, publicada em 4 de dezembro:
“’Devemos bombardear Nova York!’ Essa gritaria desvairada pôde ser ouvida há oito dias em todas as ruas de Londres pela noite, com a chegada de informações sobre um incidente de guerra totalmente insignificante. O ato foi do tipo que, em qualquer guerra, a Inglaterra cometeu corriqueiramente — a saber, o confisco, a bordo de um navio neutro, de pessoas e propriedades de seus inimigos”.
O Free Press desenvolve que Palmerston teria, em 1856, no Congresso de Paris, sem qualquer autoridade da Coroa ou do Parlamento, sacrificado a lei marítima inglesa ao interesse da Rússia, e então complementa:
“Para justificar tal sacrifício, os órgãos de Palmerston afirmaram na época que se mantivéssemos o direito de visita e busca [a embarcações], certamente nos envolveríamos em uma guerra contra os Estados Unidos na ocasião da primeira guerra [estourar] na Europa. E agora ele evoca os mesmíssimos órgãos de opinião pública para bombardearmos Nova York pois os Estados Unidos agem com base em leis que não são diferentes das nossas próprias”.
Em consideração às afirmações de “órgãos de opinião pública”, o Free Press observa:
“O relincho da trompa do Barão de Münchhausen(4) não é nada em comparação com o clamor enlouquecido da imprensa britânica com a captura de Mason e Slidell”.
Então, com bom humor, ele expõe, lado a lado, a estrofe e a antístrofe, as contradições com as quais a imprensa inglesa tenta culpar os Estados Unidos por “infringimento da lei”.
Notas:
(1) A expressão satírica aparece no prólogo do volume de poemas Neue Gedichte (parte 1: Neuer Frühling)de Heinrich Heine e já havia sido utilizada por Engels no Anti-Dühring, em um trecho que diz: “O pensar dialético aparece [na filosofia grega] ainda na sua simplicidade natural, não perturbado pelos obstáculos encantadores que a metafísica do século XVII e do século XVIII [...] a si mesma levantou e com os quais barrou a si mesma o caminho de chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração na conexão universal.” Com base nesse uso anterior da expressão, provavelmente Marx se refira a impasses pela imprensa inglesa que seriam completamente desnecessários e fictícios. (retornar ao texto)
(2) Marx cita a partir do artigo “The Capture of Mason and Slidell”. New-York Daily Tribune, no. 6435, 18/11/1861. (retornar ao texto)
(3) E. de Vattel, Le Droit des gens..., Tomo II, livro III, capítulo V, § 71.(retornar ao texto)
(4) Personagem satírica recorrente nas literaturas da Áustria e da Alemanha, Münchhausen era aquele que inventava mentiras absurdas acerca de seus feitos para impressionar os ingênuos. (retornar ao texto)
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