Relatório Sobre o Momento Actual

V. I. Lénine

24 de Abril (7 de Maio) de 1917

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Primeira edição: Publicado pela primeira vez em 1921, nas Obras de N. Lenine (V. Uliánov), t. XIV, parte II.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 2, pág: 52 a 63. Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso - Moscovo

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t. 31, pp. 342-358.

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1977.


1 — Acta

capa

Camaradas, ao abordar a questão do momento actual, da sua apreciação, terei de abranger um tema extraordinariamente extenso, que se divide, ao que me parece, em três partes: primeiro, apreciação da situação propriamente política no nosso país, na Rússia, atitude em relação ao governo e à dualidade de poderes que se criou; segundo, atitude em relação à guerra, e, terceiro, a situação que se criou no movimento operário internacional, que o colocou, falando à escala mundial, directamente diante da revolução socialista.

Penso que só poderei deter-me brevemente em alguns destes pontos. Por outro lado, tenho de apresentar-vos um projecto de resolução sobre todas estas questões, mas com a reserva de que, dada a extrema escassez de forças entre nós e também a crise política que surgiu aqui, em Petrogrado, nós não pudemos não só discutir a resolução como também comunicá-la em devido tempo às organizações locais. Repito, pois, que não se trata senão de projectos preliminares, que facilitarão o trabalho da comissão e lhe permitirão concentrar-se em algumas das questões mais substanciais.

Começo pela primeira questão. Se não estou enganado, a Conferência de Moscovo aprovou a mesma resolução que a Conferência da cidade de Petrogrado. (Vozes: «Com emendas».) Não vi essas emendas e não posso julgar. Mas como a resolução de Petrogrado foi publicada no Pravda, posso considerar, se não houver objecções, que é conhecida de todos. E esta resolução que submeto hoje, como projecto, à presente Conferência de Toda a Rússia.

A maioria dos partidos do bloco pequeno-burguês que reina no Soviete de Petrogrado apresenta a nossa política, ao contrário da sua, como uma politica de passos precipitados. A nossa política distingue-se pelo facto de que exigimos, antes de mais nada, uma exacta caracterização de classe do que se passa. O pecado capital do bloco pequeno-burguês consiste em que oculta ao povo com frases a verdade sobre o carácter de classe dò governo.

Se os camaradas de Moscovo têm emendas poderão lê-las agora.

(Lê a resolução da Conferência da cidade de Petrogrado sobre a atitude em relação ao Governo Provisório.)

«Considerando:
«1) que o Governo Provisório é, pelo seu carácter de classe, um órgão de domínio dos latifundiários e da burguesia;
«2) que ele e as classes por ele representadas estão ligados de modo indissolúvel, económica e politicamente, ao imperialismo russo e anglo-francês;
«3) que mesmo o programa por ele proclamado é cumprido apenas parcialmente e apenas sob a pressão do proletariado revolucionário e, em parte, da pequena burguesia;
«4) que as forças da contra-revolução burguesa e latifundiária, que se organizam, iniciaram já, encobrindo-se com a bandeira do Governo Provisório e com evidente tolerância da parte deste último, o ataque contra a democracia revolucionária;
«5) que o Governo Provisório adia a fixação de eleições para a Assembleia Constituinte, põe obstáculos ao armamento geral do povo, se opõe à passagem de toda a terra para as mãos do povo, lhe impõe o método latifundiário de solução da questão agrária, entrava a implantação da jornada de oito horas, dá provas de conivência com a agitação contra-revolucionária (de Gutchov e C.a) no exército, organiza o corpo de comando superior do exército contra os soldados, etc ...»

Li a primeira parte da resolução, que contém a caracterização de classe do Governo Provisório. As divergências com a resolução dos moscovitas, tanto quanto se pode julgar apenas pelo texto da resolução, não são muito substanciais, mas considero que caracterizar em geral o governo como contra-revolucionário seria inexacto. Se se fala em geral, é preciso esclarecer de que revolução falamos. Do ponto de vista da revolução burguesa, não se pode dizer isso, visto que ela já terminou. Do ponto de vista da proletária-camponesa — dizer isto é prematuro, pois não podemos estar certos de que os camponeses irão necessariamente mais longe do que a burguesia, e, no meu modo de ver, é infundado exprimir a nossa confiança no campesinato, sobretudo agora, quando ele se voltou para o imperialismo e o defensismo, isto é, para o apoio à guerra. E agora entrou em toda uma série de acordos com os democratas-constitucionalistas. Por isso considero politicamente incorrecto este ponto da resolução dos camaradas moscovitas. Queremos que o campesinato vá além da burguesia, que tome a terra dos latifundiários, mas agora não se pode dizer nada de determinado sobre a sua conduta futura.

Nós evitamos cuidadosamente as palavras «democracia revolucionária». Quando se trata de uma agressão do governo pode falar-se assim, mas agora essa frase encobre o maior dos enganos, porque é dificílimo diferenciar as classes confundidas neste caos. A nossa tarefa consiste em libertar aqueles que se arrastam na cauda. Para nós os Sovietes são importantes não como forma, para nós o importante é que classes estes Sovietes representam. Por isso é necessário um grande trabalho de esclarecimento da consciência proletária ...

(Continua a leitura da resolução.)

«... 6) que, ao mesmo tempo, este governo se apoia actualmente na confiança e, até certo grau, num acordo directo com o Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado, o qual agrupa agora a evidente maioria dos operários e soldados, isto é, do campesinato;
«7) que cada passo do Governo Provisório, tanto no domínio externo como na política interna, abrirá os olhos não só dos proletários da cidade e do campo e dos semiproletários, mas também de largas camadas da pequena burguesia, para o verdadeiro carácter deste governo;

«A conferencia delibera que:

« 1) para que todo o poder de Estado passe para as mãos dos Sovietes de deputados operários e soldados ou de outros órgãos que exprimam directamente a vontade do povo é necessário um prolongado trabalho para esclarecer a consciência de classe proletária e para unir os proletários da cidade e do campo contra as vacilações da pequena burguesia, pois só esse trabalho constitui uma verdadeira garantia do avanço bem sucedido de todo o povo revolucionário;
«2) para tal actividade é necessário um trabalho múltiplo dentro dos Sovietes de deputados operários e soldados, o aumento do seu número, a consolidação das suas forças, a união dentro deles dos grupos proletários internacionalistas do nosso partido;
«3) o reforço da organização das nossas forças sociais-democratas, para que a nova onda do movimento revolucionário se desenvolva sob a bandeira da social-democracia revolucionária.»

Aqui está a essência de toda a nossa política. Actualmente, toda a pequena burguesia vacila e encobre as suas vacilações com frases sobre a democracia revolucionária, e nós devemos opor a essas vacilações a linha proletária. Os contra-revolucionários desejam fazê-la fracassar com acções prematuras. As nossas tarefas são o aumento do número de Sovietes, a consolidação das suas forças, a união dentro do nosso partido.

No ponto terceiro, os moscovitas acrescentam o controlo. Apresentam este controlo Tchkheídze, Steklov, Tsereteli e outros dirigentes do bloco pequeno-burguês. O controlo sem o poder e uma frase oca. Como vou eu controlar a Inglaterra? Para a controlar seria preciso apoderar-se da sua armada. Compreendo que a massa não desenvolvida de operários e soldados possa acreditar cândida e inconscientemente no controlo, mas basta reflectir sobre os elementos fundamentais do controlo para compreender que esta crença é um desvio dos princípios fundamentais da luta de classes. Que é o controlo? Se eu escrever um papelinho ou uma resolução, eles escreverão uma contra-resolução. Para controlar é preciso ter o poder. Se isto é incompreensível para a grande massa do bloco pequeno-burguês, é preciso ter a paciência de explicar-lhe isto, mas em caso algum dizer-lhe o que não seja verdade. Mas se eu escondo esta condição fundamental com o controlo, não falo verdade e faço o jogo dos capitalistas e imperialistas. — «Por favor, controla-me, mas eu terei os canhões. Farta-te de controlo» — dizem eles. Sabem que actualmente não se pode negar nada ao povo. Sem o poder, o controlo é uma frase pequeno-burguesa que entrava a marcha e o desenvolvimento da revolução russa. Eis porque sou contra o ponto terceiro dos camaradas de Moscovo.

No que se refere a este original entrelaçamento de dois poderes, em que o Governo Provisório, não tendo nas suas mãos o poder, os canhões, os soldados, a massa de homens armados, se apoia nos Sovietes, os quais, fiando-se de momento em promessas, seguem uma política de apoio a essas promessas, diremos que se quereis participar neste jogo ireis à bancarrota. A nossa tarefa é não tomar parte neste jogo, continuaremos o trabalho de explicar ao proletariado toda a inconsistência desta política, e cada passo da vida real se encarregará de demonstrar como temos razão. Actualmente estamos em minoria, as massas não acreditam ainda em nós. Saberemos esperar: elas passarão para o nosso lado quando o governo se revelar a elas. As vacilações do governo podem afasta-las dele, e elas voltar-se-ão para o nosso lado, e então, pesando a correlação de forças, diremos: a nossa hora chegou.

Passo agora à questão da guerra, que na prática nos uniu quando nos declarámos contra o empréstimo, a atitude em relação ao qual logo mostrou de forma evidente como se dividiam as forças políticas. Como o Retch escreveu, todos vacilam, com excepção do Edinstvo, toda a massa pequeno-burguesa está a favor do empréstimo com reservas. Os capitalistas fazem má cara, guardam a resolução no bolso com um sorriso e dizem: «podeis falar, pois, apesar de tudo, seremos nós que actuaremos.» No mundo inteiro chama-se sociais-chauvinistas a todos aqueles que votam actualmente pelo empréstimo.

Passo directamente à leitura da resolução sobre a guerra. Divide-se em três partes:

  1. caracterização da guerra do ponto de vista do seu significado de classe
  2. defensismo revolucionário das massas, que não existe em nenhum país, e
  3. como acabar com a guerra.

Muitos de nós, incluindo eu, tivemos ocasião de falar, sobretudo perante soldados, e penso que quando se lhes explica tudo do ponto de vista de classe, para eles o que há de menos claro na nossa posição é precisamente como queremos acabar com a guerra e como consideramos possível terminá-la. Entre as grandes massas existe um sem-número de confusões, uma incompreensão total da nossa posição, e por isso devemos ser aqui o mais populares possível.

(Lê o projecto de resolução sobre a guerra.)

«A guerra actual é, por parte de ambos os grupos de potências beligerantes, uma guerra imperialista, isto é, conduzida pelos capitalistas pelo domínio do mundo, pela partilha do saque dos capitalistas, por mercados vantajosos para o capital financeiro, bancário, pelo estrangulamento dos povos fracos.

«A passagem do poder de Estado na Rússia de Nicolau II para o governo de Gutchkov, Lvov, etc, para o governo dos latifundiários e capitalistas, não mudou nem podia mudar esse carácter de classe e o significado da guerra por parte da Rússia.

«O facto de que o novo governo prossegue a mesma guerra, igualmente imperialista, isto é, de rapina, de conquista, manifestou-se com particular evidência na seguinte circunstância: o novo governo não só não publicou os tratados secretos concluídos pelo ex-tsar Nicolau II com os governos capitalistas da Inglaterra, da França, etc, como confirmou formalmente estes tratados. Isto foi feito sem consultar a vontade do povo e com a manifesta intenção de o enganar, pois é do domínio público que estes tratados secretos do ex-tsar são tratados inteiramente banditescos, que prometem aos capitalistas russos a pilhagem da China, da Pérsia, da Turquia, da Áustria, etc.

«Por isso o partido proletário não pode apoiar de modo algum nem a guerra actual, nem o governo actual, nem os seus empréstimos, sejam quais forem as pomposas palavras com que se denominem esses empréstimos, sem romper por completo com o internacionalismo, isto é, com a solidariedade fraterna dos operários de todos os países na luta contra o jugo do capital.

«Não merece tão-pouco nenhum crédito a promessa do governo actual de renunciar às anexações, isto é, à conquista de países estrangeiros ou à retenção pela força, nos limites da Rússia, de qualquer povo. Porque em primeiro lugar os capitalistas, entrelaçados por milhares de fios com o capital bancário russo e anglo-francês e que defendem os interesses do capital, não podem renunciar às anexações nesta guerra sem deixar de ser capitalistas, sem renunciar aos lucros dos milhares de milhões investidos em empréstimos, em concessões, em empresas de guerra, etc. Em segundo lugar, o novo governo, que renunciou às anexações para iludir o povo, declarou pela boca de Miliukov em 9 de Abril de 1917 em Moscovo que não renuncia às anexações. Em terceiro lugar, como denunciou o Delo Naroda, jornal no qual colabora o ministro Kérenski, Miliukov não enviou sequer para o estrangeiro a sua declaração sobre a renúncia às anexações.

«Ao prevenir o povo contra as promessas ocas dos capitalistas, a conferência declara por isso que é necessário distinguir rigorosamente entre a renúncia às anexações em palavras e a renúncia às anexações de facto, isto é, a publicação imediata de todos os tratados secretos, banditescos, de todos os documentos de política externa, e proceder imediatamente à libertação mais completa de todos os povos que a classe dos capitalistas oprime ou prende pela força à Rússia ou mantém numa situação de falta de plenos direitos, seguindo a política, vergonhosa para o nosso povo, do ex-tsar Nicolau II

A segunda metade desta parte da resolução fala das promessas que o governo faz. Para um marxista esta parte talvez seja supérflua, mas para o povo é importante. Por isso é necessário acrescentar por que não damos crédito a estas promessas, por que não devemos confiar no governo. As promessas do actual governo de renunciar à política imperialista não merecem nenhuma confiança. Aqui a nossa linha não deve consistir em indicar que exigimos do governo a publicação dos tratados. Isto seria uma ilusão. Exigir isto de um governo de capitalistas seria a mesma coisa que exigir que se revelem as fraudes comerciais. Se dizemos que é preciso renunciar às anexações e contribuições, devemos indicar como fazê-lo; e se nos perguntarem quem o fará, diremos que se trata, no fundo, de um passo revolucionário, e que esse passo só pode ser dado pelo proletariado revolucionário. De outro modo, serão apenas ocas promessas e votos com que os capitalistas levam o povo à rédea.

(Continua a leitura do projecto de resolução.)

«O chamado 'defensismo revolucionário', que hoje se apoderou na Rússia de quase todos os partidos populistas (socialistas populares, trudoviques, socialistas-revolucionários), e do partido oportunista dos sociais-democratas mencheviques (Comité de Organização, Tchkheídze, Tseretéli e outros) e também da maioria dos revolucionários sem partido, representa, quanto ao seu significado de classe, por um lado, os interesses e o ponto de vista da pequena burguesia, dos pequenos patrões, dos camponeses abastados, os quais, do mesmo modo que os capitalistas, tiram proveito da violência contra os povos fracos, e, por outro lado, é resultado do engano das massas do povo pelos capitalistas, que não tornam públicos os tratados secretos e se limitam a promessas e palavreado.

«Devemos reconhecer que massas muito amplas de 'defensistas revolucionários' estão de boa fé, isto é, não desejam efectivamente anexações, conquistas, violências sobre povos fracos, aspiram efectivamente a uma paz democrática e não imposta pela força entre todos os países beligerantes. E preciso reconhecer isto, porque a situação de classe dos proletários e semi-proletários da cidade e do campo (isto é, dos homens que vivem total ou parcialmente da venda da sua força de trabalho aos capitalistas) faz com que essas classes não estejam interessadas nos lucros dos capitalistas.

«Por isso, considerando absolutamente inadmissível e equivalente de facto à ruptura completa com o internacionalismo e o socialismo qualquer concessão ao 'defensismo revolucionário', a conferência declara ao mesmo tempo que, enquanto os capitalistas russos e o seu Governo Provisório se limitarem a ameaças de violência contra o povo (por exemplo, o tristemente célebre decreto de Gutchkov ameaçando com represálias os soldados que destituíam por iniciativa própria os seus superiores), enquanto os capitalistas não passarem à violência contra os Sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, assalariados agrícolas e outros, livremente organizados e que destituem e elegem livremente todas e quaisquer autoridades, até lá o nosso partido defenderá a renuncia à violência em geral, combaterá o grave e funesto erro dos partidários do 'defensismo revolucionário' exclusivamente com métodos de persuasão num espírito de camaradagem, explicando a verdade de que a atitude de confiança inconsciente das vastas massas para com o governo dos capitalistas, os piores inimigos da paz e do socialismo, é no momento actual na Rússia o obstáculo principal ao rápido fim da guerra.

Uma parte da pequena burguesia está interessada nesta política dos capitalistas, quanto a isto não pode haver dúvidas, e por isso é inadmissível para o partido proletário depositar agora esperanças na comunidade de interesses com o campesinato. Lutamos para conseguir que o campesinato passe para o nosso lado, mas agora está, até certo ponto, conscientemente do lado dos capitalistas.

Não há nenhuma dúvida de que o proletariado e o semiproletariado, como classe, não estão interessados na guerra. Estão sob a influência das tradições e do engano. Carecem ainda de experiência política. Por isso a nossa tarefa é realizar um prolongado esclarecimento. Não lhes fazemos a menor concessão de princípio, mas não podemos tratá-los do mesmo modo que aos sociais-chauvinistas. Estes elementos da população nunca foram socialistas, nem têm a menor ideia do que seja o socialismo, estão apenas a despertar para a vida política. Mas a sua consciência cresce e amplia-se com uma rapidez extraordinária. É preciso saber chegar até eles com o nosso esclarecimento, e esta é a tarefa mais difícil, sobretudo para um partido que ainda ontem se encontrava na clandestinidade.

Haverá quem pense se nós não nos renegamos: pois antes fazíamos propaganda da transformação da guerra imperialista em guerra civil, e agora falamos contra nós próprios. Mas na Rússia terminou a primeira guerra civil, passamos agora à segunda guerra — entre o imperialismo e o povo em armas, e neste período de transição, enquanto a força armada se encontrar nas mãos dos soldados, enquanto Miliukov e Gutchkov não empregarem a violência, esta guerra civil converte-se para nós em propaganda de classe, pacífica, prolongada e paciente. Se falarmos da guerra civil antes que as pessoas tenham compreendido a sua necessidade, cairemos indubitavelmente no blanquismo. Somos pela guerra civil, mas só quando é conduzida por uma classe consciente. Pode derrubar-se aquele que o povo considera um opressor. Mas, na actualidade, não há nenhum opressor, os canhões e as espingardas eneontram-se nas mãos dos soldados e não nas dos capitalistas, os capitalistas não dominam agora pela violência mas pelo engano, e gritar agora sobre a violência é um absurdo. É preciso saber situar-se no ponto de vista do marxismo, o qual diz que esta transformação da guerra imperialista em guerra civil se baseia em condições objectivas e não subjectivas. Renunciamos, por enquanto, a esta palavra de ordem, mas só por enquanto. As armas estão agora nas mãos dos soldados e dos operários, e não nas mãos dos capitalistas. Enquanto o governo não iniciar a guerra fazemos a nossa propaganda pacificamente.

Teria sido vantajoso para o governo que o primeiro passo irreflectido para a acção tivesse sido dado por nós, isto teria sido vantajoso para ele. Sente-se exasperado porque o nosso partido deu a palavra de ordem de uma manifestação pacífica. Não devemos ceder nem um iota nos nossos princípios à pequena burguesia, que está agora na expectativa. Para um partido proletário não há erro mais perigoso do que fundar a sua táctica em desejos subjectivos, onde o que é preciso é organização. Não podemos dizer que a maioria está connosco; neste caso e necessário desconfiar, desconfiar e desconfiar. Basear nisto a táctica proletária significa matá-la.

O terceiro ponto refere-se ao problema de como terminar a guerra. O ponto de vista dos marxistas a este respeito é conhecido, mas a dificuldade está em como leva-lo às massas da forma mais clara possível. Não somos pacifistas e não podemos renunciar à guerra revolucionária. Em que se distingue de uma guerra capitalista? Em primeiro lugar, pela classe que está interessada nela e pela política que aplica nessa guerra a classe interessada... Quando se fala às massas, é preciso dar-lhes respostas concretas. A primeira questão é, pois: como distinguir uma guerra revolucionária de uma guerra capitalista? O homem da massa não compreende em que consiste a diferença, não cornpreende que se trata aqui de uma diferença de classes. Não devemos falar só teoricamente, mas devemos mostrar praticamente que só travaremos uma guerra verdadeiramente revolucionária quando o poder estiver nas mãos do proletariado. Parece-me que tal maneira de pôr a questão dá uma resposta mais clara à pergunta sobre qual é esta guerra e quem a faz.

No Pravda foi publicado um projecto de apelo aos soldados de todos os países beligerantes. Temos notícias de que na frente se verifica a confraternização, mas ela é ainda semiespontânea. O que falta a esta confraternização é um pensamento político claro. Os soldados sentiram instintivamente que era preciso agir a partir de baixo. O seu instinto de classe, de homens imbuídos de espírito revolucionário, sugeriu-lhes que só este é o verdadeiro caminho. Mas isso não basta para a revolução. Queremos dar uma resposta política clara. Para que a guerra possa acabar o poder deve passar para as mãos da classe revolucionária. Eu proporia que, em nome da conferência, fosse dirigido um apelo aos soldados de todos os países beligerantes e que esse apelo fosse publicado em todas as línguas. Se em lugar de todas estas frases correntes sobre conferências de paz, nas quais metade dos participantes são agentes secretos ou declarados dos governos imperialistas, distribuirmos este apelo, avançaremos mil vezes mais depressa para o nosso objectivo do que com todas as conferências de paz. Não queremos lidar com os Plekhánov alemães. Quando atravessámos a Alemanha de comboio esses senhores sociais-chauvinistas, os Plekhánov alemães, tentaram subir para junto de nós na carruagem, mas respondemos-lhes que nem um só socialista dentre eles entraria para junto de nós, e que se entrassem, não os deixaríamos sair sem um grande escândalo. Se tivessem deixado entrar para junto de nós por exemplo Karl Liebknecht, teríamos falado com ele. Quando publicarmos esse apelo aos trabalhadores de todos os países e dermos nele a nossa resposta à pergunta de como terminar a guerra, e quando os soldados lerem a nossa resposta, que aponta a saída política da guerra, então a confraternização dará um gigantesco passo em frente. Isto é necessário para que a confraternização suba do nível do horror instintivo pela guerra para uma clara consciência política de como sair desta guerra.

Passo à terceira questão, a saber: à apreciação do momento actual do ponto de vista da situação do movimento operário internacional e do estado do capitalismo internacional. Do ponto de vista do marxismo é absurdo examinar a situação de um único país ao falar de imperialismo, já que os países capitalistas estão ligados entre si do modo mais estreito. E hoje, em tempo de guerra, esta ligação é incomensuravelmente maior. Toda a humanidade se enleou num novelo sanguinolento, do qual é impossível sair individualmente. Se há países mais e menos desenvolvidos, a guerra actual ligou-os com tais fios entre si que é impossível e absurdo imaginar que algum país possa sair dela sozinho.

Todos estamos de acordo em que o poder deve estar nas mãos dos Sovietes de deputados operários e soldados. Mas que podem e devem eles fazer se o poder passar para eles; isto é, se se vier a encontrar nas mãos dos proletários e semiproletários? É uma situação complicada e difícil. E se falamos da tomada do poder, surge um perigo que já em revoluções anteriores desempenhou um grande papel, a saber: a classe revolucionária toma nas suas mãos o poder de Estado e não sabe o que fazer com ele. Na história das revoluções existem exemplos de revoluções que fracassaram justamente por isso. Os Sovietes de deputados operários e soldados, que hoje cobrem com a sua rede toda a Rússia, estão agora no centro de toda a revolução; entretanto, parece-me que não os temos compreendido e estudado suficientemente. Se eles tomarem nas suas mãos o poder, não se tratará já de um Estado no sentido usual da palavra. No mundo nunca existiu, mantendo-se por muito tempo, tal poder de Estado, mas todo o movimento operário mundial se aproximava dele. Será precisamente um Estado do tipo da Comuna de Paris. Este poder é uma ditadura, isto é, apoia-se não na lei, não na vontade formal da maioria, mas de modo directo e imediato na violência. A violência é o instrumento do poder. Mas sob que forma usarão os Sovietes este poder? Voltarão à antiga administração através da polícia, administrarão o país por meio dos velhos órgãos de poder? No meu modo de ver não o poderão fazer e, em todo o caso, apresenta-se diante deles a tarefa imediata de organizar um Estado não burguês. Empreguei entre bolcheviques a comparação deste Estado com a Comuna de Paris no sentido de que esta destruiu os antigos órgãos administrativos e os substituiu por órgãos completamente novos, por órgãos directos, imediatos, dos operários. Acusam-me de que utilizei neste momento a palavra que mais assusta os capitalistas, já que começaram a comentá-la como o desejo de introduzir imediatamente o socialismo. Mas empreguei-a unicamente no sentido de substituição dos velhos órgãos por outros novos, proletários. Marx disse que isto era o mais importante passo em frente de todo o movimento proletário mundial[N66]. A questão das tarefas sociais do proletariado tem para nós uma enorme importância prática, por um lado porque agora estamos ligados a todos os outros países cnão podemos sair deste novelo: ou o proletariado sai na sua totalidade, ou estrangulá-lo-ão; por outro lado, os Sovietes de deputados operários e soldados são um facto. Não há dúvida para ninguém de que cobrem toda a Rússia, são um poder, e não pode haver outro poder. Se é assim, devemos ver claramente como podem usar este poder. Dizem que este poder é o mesmo que na França e na América, mas ali não há nada semelhante, não existe aí um poder directo como este.

A resolução sobre o momento actual divide-se em três partes. Na primeira caracteriza-se a situação objectiva criada pela guerra imperialista, a situação em que se viu o capitalismo mundial; na segunda, as condições do movimento proletário internacional, e, na terceira, as tarefas da classe operária russa com a passagem do poder para as suas mãos. Na primeira parte formulo a conclusão de que o capitalismo se desenvolveu durante a guerra mais ainda do que antes da guerra. Já tomou nas suas mãos ramos inteiros da produção. Já em 1891, há 27 anos, quando os alemães adoptaram o seu Programa de Erfurt, Engels disse que não podia interpretar-se como antes o capitalismo como a ausência de planificação[N68]. Isto está já antiquado: se há trusts já não há ausência de planificação. Particularmente no século XX, o desenvolvimento do capitalismo avançou a passos gigantescos, e a guerra fez aquilo que não foi feito em 25 anos. A estatização da indústria avançou não só na Alemanha mas também na Inglaterra. Dos monopólios em geral passou-se para os monopólios de Estado. A situação objectiva das coisas demonstrou que a guerra acelerou o desenvolvimento do capitalismo, e este desenvolvimento passou do capitalismo para o imperialismo, do monopólio para a estatização. Tudo isto aproximou a revolução socialista e criou as condições objectivas para ela. Deste modo, o curso da guerra aproximou a revolução socialista.

A Inglaterra era, antes da guerra, o país da máxima liberdade, como assinalam sempre os políticos do tipo do partido democrata-constitucionalista. Havia aí liberdade porque não existia movimento revolucionário. A guerra modificou tudo de repente. Um país no qual há dezenas de anos não se recordava um exemplo de atentado contra a liberdade da imprensa socialista implantou de repente uma censura puramente tsarista e todas as prisões se encheram de socialistas. Os capitalistas aprenderam ali durante séculos a governar o povo sem violências, e se agora recorreram à violência isso significa que se aperceberam de que o movimento revolucionário cresce, de que não podem agir de outra maneira. Quando assinalávamos que Liebknecht representava a massa, apesar de estar só e de ter contra ele cem Plekhánov alemães, diziam-nos que isso era uma utopia, uma ilusão. Entretanto, quem assistiu uma só vez no estrangeiro a uma assembleia de operários viu que a simpatia das massas por Liebknecht é um facto indubitável. Os seus mais furiosos adversários tiveram de usar de astúcia para com as massas, e se não fingiram ser adeptos seus, pelo menos ninguém se atreveu a falar contra ele. Hoje as coisas foram ainda mais longe. Agora estamos em presença de greves de massas e da confraternização na frente. Lançar-se em profecias a este respeito seria o maior dos erros, mas que a simpatia para com a Internacional vai aumentando e que no exercito alemão começa a efervescência revolucionária, isto é efectivamente um facto que mostra que ali a revolução amadurece.

Quais são as tarefas do proletariado revolucionário? O defeito principal e o erro principal de todos os raciocínios dos socialistas consiste em que a questão é formulada em termos demasiado gerais — transição para o socialismo. Entretanto, é necessário falar dos passos e medidas concretas. Alguns deles amadureceram, outros ainda não. Vivemos um momento de transição. É evidente que avançámos formas que não se parecem com as dos Estados burgueses: os Sovietes de deputados operários e soldados, forma de Estado que não existe nem jamais existiu em nenhum país. São uma forma que representa os primeiros passos para o socialismo e que é inevitável nos começos da sociedade socialista. Este é um facto decisivo. A revolução russa criou os Sovietes. Em nenhum país burguês do mundo existem nem podem existir instituições estatais semelhantes, e nenhuma revolução socialista pode operar com outro poder que não seja este. Os Sovietes de deputados operários e soldados devem tomar o poder, mas não para implantar uma república burguesa corrente, nem para passar directamente ao socialismo. Isso é impossível. Para quê, então? Devem tomar o poder para dar os primeiros passos concretos, que podem e devem ser dados, para essa transição. O medo é, neste sentido, o inimigo principal. Devemos pregar às massas que é necessário dar esses passos imediatamente, pois de outro modo o poder dos Sovietes de deputados operários e soldados não terá sentido e não dará nada ao povo.

Tentarei responder à pergunta sobre quais são os passos concretos que podemos propor ao,povo, sem cair em contradição com as nossas convicções marxistas.

Para que queremos que o poder passe para as mãos dos Sovietes de deputados operários e soldados?

A primeira medida que eles devem aplicar é a nacionalização da terra. Todos os povos falam dela. Diz-se que esta medida é das mais utópicas e, entretanto, todos chegam a ela, precisamente porque a posse da terra na Rússia é tão emaranhada que não resta outra saída senão eliminar todas as divisões da terra e transformá-la em propriedade do Estado. E preciso abolir a propriedade privada da terra. Esta é a tarefa que se nos coloca, pois a maioria do povo é a favor dela. Para isso necessitamos dos Sovietes. Esta medida não pode ser levada a cabo com o velho funcionalismo estatal.

Segunda medida. Não podemos ser a favor de que o socialismo seja «introduzido», pois isso seria o maior dos disparates. Nós devemos preconizar o socialismo. A maioria da população da Rússia é constituída por camponeses, por pequenos proprietários, que nem sequer podem pensar no socialismo. Mas que podem dizer contra o facto de que em cada aldeia exista um banco que lhes dê a possibilidade de melhorar a sua exploração? Contra isto nada podem dizer. Devemos propagandear estas medidas práticas entre os camponeses e reforçar neles a consciência da sua necessidade.

Outra coisa é o consórcio dos fabricantes de açúcar, isto é um facto. Aqui a nossa proposta deve ser directamente prática: é preciso que esses consórcios, já amadurecidos para isso, se convertam em propriedade do Estado. Se os Sovietes querem tomar o poder é unicamente para esses fins. Se não for para isso, não há motivo para o tomar. A questão coloca-se assim: ou os Sovietes continuam a desenvolver-se, ou morrerão sem glória, como aconteceu com a Comuna de Paris. Se é necessária uma república burguesa, podem fazê-la também os democratas-constitucionalistas.

Vou terminar referindo-me a um discurso que me causou a maior impressão. Um mineiro pronunciou um notável discurso, no qual, sem empregar um só termo livresco, relatou como eles tinham feito a revolução. A questão que se colocaram não foi a de se teriam um presidente. Mas a questão que lhes interessou foi: quando tomaram as minas foi necessário proteger os cabos para que a produção não parasse. Depois colocou-se a questão do pão, que não tinham, e eles puseram-se também de acordo em relação à sua obtenção. Esse é o verdadeiro programa da revolução, não tirado dos livros. Essa é a verdadeira conquista do poder à escala local.

A burguesia não adquiriu em parte alguma uma forma tão definitiva como em Petrogrado, e os capitalistas têm aqui o poder nas suas mãos, mas, à escala local, os camponeses, não se propondo quaisquer planos socialistas, adoptam medidas puramente práticas. Penso que este programa do movimento revolucionário é o único que indica acertadamente a verdadeira via da revolução. Somos partidários de que estas medidas sejam abordadas com a maior prudência e precaução, mas só elas devem ser levadas a cabo, só nesta direcção se deve olhar em frente, não há outra saída. De outro modo, os Sovietes de deputados operários e soldados serão dissolvidos e morrerão sem glória; mas se o poder passar efectivamente para as mãos do proletariado revolucionário, será unicamente para ir em frente. E ir em frente significa dar passos concretos, e não garantir só com palavras a saída da guerra. Esses passos só poderão triunfar por completo com a revolução mundial, se a revolução esmagar a guerra e se for apoiada pelos operários de todos os países, por isso, a tomada do poder é a única medida concreta, a única saída.


Notas de fim de tomo:

[N66] Ver a carta de K. Marx a L. Kugelmann de 17 de Abril de 1871, (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 33, S. 209.) (retornar ao texto)

[N68] F. Engels, Para a Crítica do Projecto de Programa Social-Democrata de 1891 (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 22, S. 232.) (retornar ao texto)

Inclusão 25/02/2011