Materialismo e Empiro-Criticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin

Capítulo VI - O Empirocriticismo e o Materialismo Histórico


35. A Excursão dos Empiro-Criticistas Alemães no Domínio das Ciências Sociais


Os discípulos russos de Mach se dividem, como já vimos em duas partes: O sr. V. Tchernov e os colaboradores da Russkoie Bogatstvo, (A Riqueza Russa), são, tanto em filosofia como em história, adversários consequentes do materialismo dialético; a outra confraria de discípulos de Mach, que mais nos interessa neste momento, queria ser marxista e esforça-se por persuadir seus leitores da compatibilidade da doutrina de Mach e do materialismo histórico de Marx e Engels. Na verdade, suas asserções, na maioria das vezes, não têm passado de asserções. Nenhum discípulo de Mach desejoso de ser marxista fez a menor tentativa de expor, por menos sistematicamente que fosse, as verdadeiras tendências dos fundadores do empiro-criticismo no domínio das ciências sociais. Trataremos disso sumariamente; em primeiro lugar, examinaremos as declarações feitas a esse respeito pelos empiro-criticistas alemães e, depois, as de seus discípulos russos.

A Excursão dos Empiro-Criticistas Alemães no Domínio das Ciências Sociais

A revista de filosofia editada por Avenarius publicava em 1895, ainda em vida do mestre, um artigo de seu discípulo F. Blei, intitulado A metafísica na economia política(1). Os mestres do empiro-criticismo são unanimes em combater a "metafísica", não somente a do materialismo filosófico consciente e declarado, como a das ciências naturais que se colocam, espontaneamente, do ponto de vista da teoria materialista do conhecimento. O discípulo entra em guerra contra a metafísica na economia política. Sua ofensiva visa as mais diversas escolas da economia política; interessa-nos apenas a natureza da argumentação empiro-criticista empregada contra a escola de Marx e Engels.

"O objetivo deste estudo — escreve F. Blei — é o de mostrar que toda a economia política contemporânea, para explicar os fenômenos da vida econômica, opera com auxilio de premissas metafísicas; ela "deduz" as "leis" da economia da própria "natureza" dessa última, e o homem, em relação a essas "leis", apenas aparece como elemento acidental... Por todas as suas teorias contemporâneos, a economia política se fundamenta numa base metafísica; todas as suas teorias são estranhas à biologia e, portanto, não cientificas, sem nenhum valor para o conhecimento... Os teóricos ignoram sobre que constroem, sobre qual terreno suas teorias estão assentadas. Acreditam-se realistas, operando sem premissas de qualquer especie, simplesmente porque se baseiam em "simples" (nüchterne) fenômenos econômicos, "práticos", "evidentes" (sinn-fällige)... E têm todos, com numerosas correntes da fisiologia, essa semelhança familiar conferida aos filhos no caso, os fisiólogos e os economistas por uma mesma ascendência paternal e maternal: descendem, para precisar, da metafísica e da especulação. Uma escola de economistas analisa os "fenômenos" da "economia" (Avenarius e os autores pertencentes à sua escola colocam entre aspas os termos mais comuns, com o fim de acentuar que, como filósofos autênticos que são, conhecem muito bem o caráter "metafisico" do uso vulgar de termos não depurados pela "análise gnoseológica"), sem ligar à conduta dos indivíduos o que encontra (das Gefundene) nesse roteiro: os fisiólogos banem de suas pesquisas a conduta do individuo como relacionada com as "ações da alma" (Wirkungen der Seele), e, os economistas dessa escola consideram desprezível (eine Negligible) a conduta dos indivíduos perante as "leis imanentes da economia’ (pp. 378 e 379).

"Em Marx — continua Blei —, a teoria constata as "leis econômicas" tiradas de processos preparados; essas "leis' encontram-se na parte inicial (Initialabschnitt) da série vital dependente, figurando os processos econômicos na parte final (Finalabschnitt)... A "economia" tornou-se, para os economistas, uma categoria transcendente em que sabem encontrar as "leis" desejadas: "leis do "capital" e do "trabalho", da "renda" e do "salário", a lei do "lucro". Para os economistas, o homem reduziu-se às noções platônicas de "capitalista", "operário", etc. O socialismo atribuiu ao "capitalista" a "desigualdade de ganho" e o liberalismo declarou o operário "exigente", sendo aplicadas essas duas leis pela "ação necessária do capital" (pp. 381 e 382 ).

"Marx abordou o estudo do socialismo francês e da economia política com uma concepção geral socialista, afim de proporcionar a essa última uma "base teórica" no domínio do conhecimento, afim de "assegurar-lhe" um valor original. Marx havia encontrado em Ricardo a lei do valor, mas... as deduções tiradas de Ricardo pelos socialistas franceses não puderam satisfazê-lo de maneira a "confirmar ’ seu valor. E, levado à variedade vital, isto é, à "concepção geral do mundo", porque já eram parte integrante do seu valor inicial, sob a forma da "indignação causada pela espoliação dos operários", etc. Tais deduções foram repelidas como "econômica e formalmente falsas'’, uma vez que se reduziam a uma simples aplicação da moral à economia política... Mas o que é falso do ponto de vista econômico formal pode ser verdadeiro do ponto de vista da história universal. Se a consciência moral das massas proclama que determinado fato econômico é injusto, isso demonstra que esse fato não tem mais razão de ser, que surgiram outros fatos econômicos que o tornam intolerável e incapaz de subsistir. Uma inexatidão econômica formal pode, por conseguinte, ter um conteúdo econômico justo" (Engels, Prefácio à Miséria da filosofia).

Depois de ter feito essa citação de Engels, F. Blei continua:

"Nesse trecho, a porção mediana Medialabschnitt da série dependente que nos interessa está liberada (Abgehoben: termo técnico empregado por Avenarius e significando elevado à consciência, liberado). O "conhecimento" de que um "fato econômico" deva ser encoberto pela "consciência moral da injustiça" é seguido da parte final (Finalabschnitt, a teoria de Marx é uma conclusão, isto é, um valor ou uma variedade vital que passa por três estágios ou partes: começo, meio e fim, Initialabschnitt, Medialabschnitt e Finalabschnitt)... em suma, do "conhecimento" desse "fato econômico". Ou, noutros termos: o problema consiste, agora, em "encontrar" o "valor inicial", isto é, a " concepção do mundo" nos "fatos econômicos", para "assegurar" esse valor inicial. Essa variação definida da série dependente já contem a metafísica de Marx, qualquer que seja o "conhecido" na parte final Finalabschnitt. A concepção socialista, como valor E, "verdade absoluta", é edificada, "posteriormente", sobre uma teoria especial do conhecimento. isto é, sobre o sistema econômico de Marx e sobre a teoria materialista da história... Pela concepção da mais-valia, o que há de "subjetivamente verdadeiro" no pensamento de Marx torna- se "verdade objetiva" na teoria do conhecimento das "categorias econômicos"; o valor inicial está doravante assegurado, e a metafísica recebeu, posteriormente, uma critica do conhecimento" (pp. 384 e 386).

O leitor, provavelmente, está nos querendo mal pela tão longa citação dessa embrulhada de incrível banalidade, dessa bobagem pretensiosa embandeirada com a terminologia sabia de Avenarius. Mas... wer den Feind will verstehen, muss in Feindes Lande gehen ("Se queres conhecer teu inimigo vai a seu país"). E a revista filosófica de R. Avenarius constitui, verdadeiramente, um país inimigo para os marxistas. Convidando o leitor a dominar, por um momento, a legitima aversão que causam os clowns da ciência burguesa e a analisar a argumentação do discípulo e colaborador de Avenarius.

Primeiro argumento: Marx é um "metafísico" que não compreendeu a "critica" gnoseológica das "noções" e, sem elaborar uma teoria geral do conhecimento, introduziu brutalmente o materialismo em sua "teoria especial do conhecimento".

Nesse argumento, nada há que pertença pessoal ou unicamente a Blei. Já vimos, dezenas e centenas de vezes, todos os fundadores do empiro-criticismo, todos, os discípulos russos de Mach taxarem o materialismo de "metafísico", ou, mais exatamente, repetirem os surrados argumentos dos kantistas, discípulos de Hume e idealistas contra a "metafísica" materialista.

Segundo argumento: o marxismo é tão metafísico quanto as ciências naturais (a fisiologia). Ainda aqui, os errados são Mach e Avenarius e não Blei, uma vez que aqueles é que declararam guerra à "metafísica das ciências naturais", nome que deram à teoria materialista do conhecimento professada pela grande maioria dos naturalistas (segundo sua própria confissão e de acordo com todos os que conhecem o assunto por pouco que seja).

Terceiro argumento: o marxismo declara o "indivíduo" quantidade desprezível, considera o homem como elemento acidental, sujeito a "leis econômicas imanentes", abstém-se de analisar o que encontramos (das Gefundene), o que nos é dado, etc.. Esse argumento repete integralmente o ciclo de ideias da "coordenação de princípio" empiro-criticista, isto é, o subterfúgio idealista da teoria de Avenarius. Blei tem inteiramente razão ao dizer que não se pode encontrar, em Marx e Engels, nem a sombra de uma admissão desses embustes idealistas e que, uma vez admitidos tais embustes, cumpre, necessariamente, rejeitar o Marxismo em bloco, a começar por suas origens e por suas premissas filosóficas fundamentais.

Quarto argumento: a teoria de Marx é "estranha à biologia", nada quer saber das "variedades vitais" e nem de outros jogos semelhantes de termos biológicos que fazem a "ciência*’ do professor reacionário Avenarius. O argumento de Blei é justo, do ponto de vista da doutrina de Mach; o abismo que separa a teoria de Marx das futilidades "biológicas" de Avenarius é coisa que salta aos olhos. Logo veremos como os discípulos russos de Mach, que desejam ser marxistas, seguiram, na realidade, as pegadas de Blei.

Quinto argumento: a adesão de Marx a um partido, a parcialidade da sua teoria, o caráter preconcebido das suas soluções. Blei não é o único a pretender imparcialidade: todo o empiro-criticismo a pretende em filosofia e em ciências sociais. Nem socialismo e nem liberalismo. Não a diferenciação das correntes profundas, irreconciliáveis, da filosofia materialismo e idealismo, mas a aspiração a elevar-se acima delas. Acompanhamos esse esforço da doutrina de Mach através de longa série de problemas relacionados com a gnoseologia e não nos surpreendemos ao encontrá-la em sociologia.

Sexto "argumento": a ridicularização da verdade "objetiva". Blei logo verificou, com razão, que o materialismo histórico e toda a doutrina econômica de Marx estão profundamente peneirados da admissão da verdade objetiva. Ele exprimiu muito bem as tendências da doutrina de Mach e Avenarius, repudiando, "em primeiro lugar", o marxismo, por sua admissão da verdade objetiva, e proclamando, logo em seguida, que a doutrina marxista apenas abrange as ideias "subjetivas" de Marx.

Se nossos discípulos de Mach renegam Blei (o que farão, sem nenhuma dúvida), nós lhes diremos: Não é o espelho que se deve culpar, quando se é feio... Blei é um espelho em que se refletem, traço por traço, as tendências do empiro-criticismo; a desaprovação dos nossos discípulos de Mach apenas testemunha suas boas intenções e sua aspiração eclética, aliás absurda, à conciliação de Marx e Avenarius.

Passemos de Blei a Petzoldt. Se o primeiro não é senão um discípulo, o segundo é considerado como um mestre por ilustres empiro-criticistas como Lessevitch. Blei levanta, sem rodeios, a questão do marxismo; Petzoldt, sem se rebaixar a contar com os Marx e os Engels, expõe, sob uma forma positiva, as ideias sociológicas do empiro-criticismo, permitindo, desse modo, um confronto com as do marxismo. O tomo II da Introdução à Filosofia da experiência pura, de Petzoldt, intitula-se Rumo ao estável, (Aufdem Weg zum Dauernden). O autor baseia suas pesquisas na tendência à estabilidade.

"A estabilidade final (endgültig) da humanidade pode ser prevista, do ponto de vista formal, em suas grandes linhas. Adquirimos, desse modo, as bases de uma ética, de uma estética e de uma teoria formal do conhecimento" (p. III).

"A evolução humana tem seu fim em si mesma, tende a uma condição de estabilidade perfeita (vollkommenen)" (p. 62).

Inúmeros e diversos índices demonstram que assim o é. Não há, por exemplo, muitos radicais entusiastas que não "se emendam", que não se aquietam com a idade? É verdade, essa ‘‘estabilidade antecipada" (p. 162) é própria dos filisteus, Mas não são os filisteus que formam a "compacta maioria" (p. 62)?

A conclusão da nossa filosofia aqui está, impressa em itálico:

"A estabilidade é o traço essencial de todos os objetivos do nosso pensamento e da nossa obra criadora" (p. 72).

Um esclarecimento: muitas pessoas "não podem ver" um quadro torto numa parede ou um objeto mal colocado sobre a mesa. Tais pessoas "não são necessariamente pedantes" (p. 72). Têm o "sentimento revelando uma confusão" (p. 72; grifado por Petzoldt). Numa palavra, "a aspiração à estabilidade é uma aspiração ao estado final mais definitivo por sua própria natureza" (p. 73). Todos esses trechos são tirados do capítulo V do tomo II, capítulo intitulado A tendência psíquica à estabilidade. As provas dessa tendência são das mais convincentes. Um exemplo:

"Os homens que gostam de galgar as montanhas deixam-se levar pelo desejo de atingir os mais elevados cumes, no sentido legitimo, amplo, da expressão. O desejo de contemplar vastos horizontes, de dedicar-se a exercidos físicos, de respirar um ar puro no seio da grande natureza nem sempre é o único motivo; existe, igualmente, a profunda tendência inata de todo ser vivo de perseverar, mesmo para atingir um objetivo natural, no sentido que imprimiu, uma vez por todas, à sua atividade" (p. 73).

Outro exemplo: que somas não se gastam para se organizar uma coleção completa de selos postais!

"A cabeça põe-se a rodar, quando se percorre o catálogo de uma casa filatélica... Portanto, nada é mais natural e mais inteligível do que essa tendência à estabilidade." (p. 74).

As pessoas sem cultura filosófica não compreendem todo o alcance dos princípios da estabilidade ou da economia do pensamento. Petzoldt desenvolve minuciosamente sua "teoria", em consideração aos profanos.

"A compaixão é a expressão de uma necessidade direta de estabilidade — podemos ler no § 28 — ... A compaixão não é uma repetição, um desdobramento do sofrimento observado; é um sofrimento motivado por esse sofrimento... O caráter imediato da compaixão deve ser vigorosamente frisado. Desde que o admitamos, reconhecemos que o bem de outrem pode interessar o homem de um modo tão imediato e tão direto quanto seu próprio bem. Renunciamos, desse modo, a toda justificação utilitarista ou eudemônica da moralidade. A natureza humana, em virtude de sua tendência à estabilidade e ao repouso, é justamente destituída de toda maldade calculada e penetrada de um espírito caritativo.

O caráter imediato da compaixão manifesta-se, frequentemente, pela ajuda imediata. Sem a menor reflexão, a gente se atira à água para salvar um afogado. A visão de um homem em luta com a morte é intolerável/ faz esquecer ao salvador todos os seus outros deveres, ela o faz arriscar a própria vida e a do próximo para salvar a de algum, lamentável infeliz; isto é, a compaixão pode, em certas circunstancias, acarretar atos injustificáveis do ponto de vista moral".

Esses inefáveis truísmos enchem dezenas e centenas de páginas de filosofia empiro-criticista!

A moral é deduzida da noção de uma "estabilidade moral" (2.ª parte do tomo II — Estados estáveis da alma: cap. I — Da estabilidade moral).

"A estabilidade não implica, por definição, nenhuma condição de transformação. Dai decorre, sem outras reflexões, que esse estado não deixa subsistir nenhuma possibilidade de guerra" (página 202).

"A igualdade econômica e social deriva da noção de estabilidade definitiva (endültig)" (p. 213).

Essa "estabilidade" deriva da ciência e não da religião. Mas não será realizada pela maioria, como supõem os socialistas, cujo poder "não virá em auxilio da humanidade" (p. 207); mas o "livre desenvolvimento" nos conduzirá ao ideal. Os lucros do capital não diminuem e os salários não aumentam incessantemente (p. 233). Todas as asserções relativas à "escravidão assalariada" são falsas (p. 229). Outrora, quebravam-se impunemente as pernas dos escravos, e agora? Não; o "progresso moral" é inegável; olhai, mesmo rapidamente, as colonias universitárias na Inglaterra, o Exército da Salvação (p. 230), as "associações éticas" da Alemanha. O "romantismo" está condenado em nome da estabilidade em estética" (2.ª parte, cap. II), Ao romantismo estão relacionadas todas as variedades de extensão desmesurada do eu: o idealismo, a metafísica, o ocultismo, o solipsismo, o egoísmo, a "majoração forçada do pequeno" "o ideal social-democrático da organização do trabalho pelo Estado" (pp. 240 e 241).(2)

No fundo das excursões sociológicas de Blei, Petzoldt e Mach, encontramos somente a insondável estupidez do pequeno burguês feliz por ostentar, sob uma "nova" terminologia e uma nova sistematização "empiro-criticista", as mais velhas bugigangas. Subterfúgios verbais pretensiosamente exornados, trabalhosas sutilezas lógicas, escolásticas requintada: uma palavra, é-nos oferecido, sob a mesma tabuleta fantasiada, o mesmo conteúdo reacionário, tanto em sociologia como em gnoseologia.


Notas de rodapé:

(1) Vierteljahrsschrift für wissenschaftliche Philosophie, 1895, t. XIX; F. Blei, Die Metaphysik in der Nationalökonomie, págs. 378-390. — N L. (retornar ao texto)

(2) Imbuído do mesmo espírito, Mach pronuncia-se pelo socialismo burocrático de Popper e Menger, que garante a "liberdade individual", enquanto a doutrina dos social-democratas, que dele ‘'difere para pior", ameaça conduzir-nos a "uma servidão mais geral e mais árdua ainda do que a do Estado monárquico ou oligárquico". Ver Conhecimento e erro, 2ª edição alemã, págs. 80 e 81 — N. L. (retornar ao texto)

Inclusão 30/01/2015