Quem São os «Amigos do Povo» e Como Lutam Contra os Social-democratas?

Vladimir Ilitch Lênin

1894


Escrito: durante a primavera e o verão de 1894.

Primeira publicação: 1894.

Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, edição anterior a 1966, págs. 9 a 23.

Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado, publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954.

Capa e apresentação gráfica: Mauro Vinhas de Queiroz.

HTML: Fernando Araújo.

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Resposta aos artigos de Russkoie Bogatstvo(8) contra os marxistas

Capa

Naquela época, «na década de 60», a força dos latifundiários feudais se debilitara: haviam sofrido uma derrota que, de fato, não era definita, mas o bastante forte para obrigá-los a abandonar a cena. Os liberais, pelo contrário, levantaram a cabeça. Começaram a chover as frases liberais sobre o progresso, a ciência, o bem, sobre a luta contra a injustiça, sobre os interesses do povo, a consciência popular, as forças populares, etc., etc.; estas mesmas frases que também agora, nos momentos de singular depressão, nossos lamuriosos radicais vomitam em seus salões e nossos fraseólogos liberais em seus banquetes de aniversário e nas páginas de suas revistas e jornais. Os liberais tornaram-se tão fortes, que transformaram o «novo regime» a seu modo, ainda que, é claro, não o tenham feito completamente, longe disso, mas o fizeram em medida considerável. Embora tampouco naquela época houvesse na Rússia «a clara luz de uma luta de classes aberta», havia, entretanto, mais claridade do que agora, de modo que os ideólogos da classe trabalhadora que não tinham qualquer ideia desta luta de classes, que preferiam sonhar com um futuro melhor a explicar a abjeção presente, inclusive eles, não podiam deixar de ver que por trás do liberalismo se ocultava a plutocracia, que este novo regime era um regime burguês. É isto pôde ser advertido graças, precisamente, a que os latifundiários feudais, ao serem eliminados da cena, já não desviavam a atenção para questões ainda mais candentes, já não impediam que se examinasse o novo regime em seu aspecto puro (relativamente). Mas, nossos democratas de então, que sabiam condenar o liberalismo plutocrático, não souberam, entretanto, compreendê-lo e explicá-lo cientificamente; não souberam compreender sua necessidade, dada a organização capitalista de nossa economia social; não souberam compreender o caráter progressivo deste novo regime de vida em comparação com o velho regime da servidão; não souberam compreender o papel revolucionário do proletariado engendrado por ele, e se limitavam a fazer um gesto de desdém contra este regime de «liberdade» e de «humanitarismo»; consideravam o burguês como algo casual; esperavam que no «regime popular» se manifestassem ainda outras relações sociais, não se sabe quais.

Pois bem, a história lhes mostrou quais são essas outras relações sociais. Os latifundiários feudais, não liquidados de todo por essa reforma(9) tão escandalosamente mutilada em favor de seus interesses, reanimaram-se (por um instante) e mostraram de modo palpável quais são, além das relações burguesas, essas nossas, outras relações sociais e o fizeram sob a forma de uma reação tão desenfreada, tão incrivelmente absurda e feroz, que nossos democratas se acovardaram, encolheram-se, e, em vez de ir em frente, transformando em social-democratismo seu ingênuo democratismo, capaz de perceber o burguês, mas não de compreendê-lo, marcharam para trás, para os liberais, e agora se orgulham de que suas lamúrias ..., quero dizer suas teorias e seus programas, sejam compartilhadas por «toda a imprensa séria e decente». Poder-se-ia pensar que foi uma excelente lição, pois ficava demasiado patente a ilusão dos velhos socialistas sobre o regime especial da vida popular, sobre os instintos socialistas do povo, sobre o caráter acidental do capitalismo e da burguesia; poder-se-ia pensar que já era possível contemplar face a face a realidade e reconhecer abertamente que na Rússia não houve nem há senão relações econômico-sociais burguesas e as agonizantes da servidão, e que, por isso, não se pode chegar ao socialismo senão através do movimento operário. Mas estes democratas não aprenderam nada, e as ingênuas ilusões de um socialismo pequeno-burguês cederam seu lugar à moderação prática dos processas pequeno-burgueses.

Agora, as teorias destes ideólogos da pequena burguesia, quando intervêm na qualidade de representantes dos interesses dos trabalhadores, são francamente reacionárias. Eles ocultam o antagonismo das modernas relações econômico-sociais russas, raciocinando como se se pudesse ajudar a resolver a questão com medidas gerais, idealizadas para todos, com vistas ao «ascenso» e ao «melhoramento», etc., como se a conciliação e a unificação fossem possíveis. São reacionários ao apresentar nosso Estado como algo situado acima das classes, e, por isso, apto e capaz de prestar uma ajuda mais ou menos séria e honrada à população explorada.

São reacionários, finalmente, porque em absoluto não compreendem a necessidade da luta, de uma luta desesperada dos próprios trabalhadores por sua libertação. Pelo que dizem, por exemplo, «os amigos do povo» são capazes de tudo arranjar por si mesmos. Os operários podem ficar tranquilos. Assim, já se apresentou um técnico à redação de Russkoie Bogatstvo, e eles elaboraram quase totalmente uma dessas «combinações» destinadas a «introduzir o capitalismo na vida popular». Os socialistas devem romper RESOLUTA É DEFINITAMENTE com todas as ideias e teorias pequeno-burguesas: EIS AÍ O PRINCIPAL ENSINAMENTO ÚTIL que deve ser extraído desta campanha.

Quero advertir que falo da ruptura com as ideias pequeno-burguesas e não com os «amigos do povo» nem com suas ideias, porque não se pode romper com o que nunca se teve relação. Os «amigos do povo» são apenas representantes de uma das tendências destas ideias socialistas pequeno-burguesas. É se eu, por este motivo, chego à conclusão de que é necessário romper com as ideias socialistas pequeno-burguesas, com as ideias do velho socialismo camponês russo em geral, é porque a atual campanha empreendida contra os marxistas pelos representantes das velhas ideias, assustados ante o crescimento do marxismo, os induziu a apresentar com singular plenitude e relevo as ideias pequeno-burguesas. Comparando estas ideias com o socialismo moderno, com os dados modernos sobre a realidade russa, vemos com espantosa clareza até que ponto estas ideias perderam todo o seu vigor, todo o fundamento teórico coerente, degenerando num ecletismo lamentável e convertendo-se no mais vulgar programa culturalista-oportunista. Poder-se-á dizer que a culpa disto não cabe às velhas ideias do socialismo em geral, mas sim unicamente a esses senhores, os quais, por certo, ninguém inclui entre os socialistas; mas semelhante objeção me parece totalmente insustentável. Esforcei-me sempre em assinalar a inevitabilidade desta degeneração das velhas teorias, esforcei-me sempre em dedicar a menor quantidade possível de espaço à crítica destes senhores em particular e a maior quantidade possível de espaço às teses gerais e básicas do velho socialismo russo. É se os socialistas acharam que estas teses foram expostas por mim de uma maneira errônea, inexata ou incompleta, apenas posso contestar com este pedido: Por favor, senhores, exponham por si mesmos, exponham-nas como se deve e em toda a sua plenitude!

Certamente, ninguém se alegraria mais do que os social-democratas com a possibilidade de polemizar com os socialistas.

Pensais acaso que nos é agradável contestar a «polêmica» destes senhores e que nos teríamos empenhado nisso sem termos sido desafiados, por eles, direta, insistente e ardentemente?

Pensais acaso que não temos que nos violentar para ler, reler e concentrar nossa atenção nesta repugnante mistura de frases liberal-oficiais com uma moral pequeno-burguesa?

Mas não é por nossa culpa que agora sejam somente esses senhores os que se dediquem à tarefa de fundamentar e expor tais ideias. Quero advertir também que falo da necessidade de romper com as ideias pequeno-burguesas do socialismo. As teorias pequeno-burguesas que examinamos são INDUBITAVELMENTE reacionárias PORQUANTO se apresentam como teorias socialistas.

Mas se conseguimos compreender que na realidade não têm nada de socialistas, quer dizer, que todas estas teorias não explicam em absoluto a exploração do trabalhador e, por isso, são totalmente incapazes de servir para sua libertação, que na realidade todas estas teorias defendem e refletem os interesses da pequena burguesia, então deveremos ter para com elas uma atitude diferente, deveremos colocar esta pergunta: qual deve ser a atitude da classe operária em relação à pequena burguesia e seus programas? É a esta pergunta não se pode contestar sem levar em consideração o duplo caráter desta classe (na Rússia, este duplo caráter se manifesta com força singular por causa do menor desenvolvimento do antagonismo entre a pequena e a grande burguesia). Ela é progressista, porquanto apresenta reivindicações democráticas de caráter geral, quer dizer, luta contra os restos de toda classe da época medieval e do regime da servidão; é reacionária, porquanto luta pela manutenção de sua situação como pequena burguesia, procurando frear, fazer retroceder o desenvolvimento geral do país no sentido burguês. As reivindicações reacionárias, como, por exemplo, a famosa inalienabilidade dos lotes comunais e muitos outros projetos de tutela sobre os camponeses, são, de ordinário, encobertas pelo plausível pretexto de defender os trabalhadores; mas, na realidade, só pioram, naturalmente, sua situação, dificultando ao mesmo tempo a luta dos trabalhadores por sua libertação. Devem-se distinguir muito bem estes dois aspectos do programa pequeno-burguês, e, ao mesmo tempo que se nega todo caráter socialista a estas teorias e se combatem seus lados reacionários, não se deve esquecer seu lado democrático. Elucidarei com um exemplo de que forma a completa negação das teorias pequeno-burguesas pelos marxistas não só não exclui o caráter democrático de seu programa, mas que também, pelo contrário, exige que se insista nele com maior força. Assinalamos mais acima os três pontos fundamentais que os representantes do socialismo pequeno-burguês sempre exploraram em suas teorias: a escassez de terras, os tributos exorbitantes e o jugo da administração.

A reivindicação de eliminar todos estes males nada tem de socialista, uma vez que nada explica sobre a expropriação e a exploração, e a sua supressão em nada modificará o jugo e a trabalho, mas depurará este jugo dos velhos restos medievais que o reforçam, facilitará ao operário a luta direta contra o capital e, por isso mesmo, como reivindicação democrática, contará com o mais enérgico apoio dos operários. Os tributos e impostos são, falando em termos gerais, uma questão a que só os pequeno-burgueses podem dar uma importância especial, porém em nosso país os tributos dos camponeses representam em muitos aspectos uma simples reminiscência do regime da servidão: assim são, por exemplo, os pagamentos de resgate,(10) que devem ser abolidos imediata e incondicionalmente; assim são os impostos que pesam unicamente sobre os camponeses e a pequena burguesia das cidades e dos quais os «nobres» estão isentos. Os social-democratas sempre apoiaram a reivindicação do que sejam abolidos estes resíduos das relações medievais, que determinam o estancamento econômico e político. O mesmo cabe dizer da escassez de terras. Já me detive longamente mais acima na demonstração do caráter burguês dos clamores em torno desta escassez de terras. Entretanto, é indubitável que, por exemplo, a reforma agrária prejudicou sensivelmente os camponeses com o parcelamento(11) em benefício dos latifundiários, prestando um serviço a esta enorme força reacionária, tanto diretamente (arrebatando parte da terra dos camponeses) como indiretamente (limitando artificialmente as parcelas comunais). É os social-democratas insistirão do modo mais enérgico na imediata devolução aos camponeses da terra que lhes havia sido arrebatada, na completa expropriação do latifúndio, baluarte das instituições e tradições feudais. Este último ponto, que coincide com a nacionalização da terra, nada tem de socialista, porque, com isso, as relações de tipo farmer, que já se vão formando em nosso país, não teriam senão que florescer com maior rapidez e amplitude, mas tem extraordinária importância no sentido democrático, como única medida capaz de esfacelar definitivamente a nobreza latifundiária. Finalmente, só os Iuzhakov e os V.V. podem, naturalmente, falar da falta de direitos dos camponeses como causa da expropriação e exploração destes; mas o jugo da administração que pesa. sobre eles não só é um fato indubitável, mas, também, além disso, não é um simples jugo: é uma humilhação para os camponeses, aos quais se trata de «vil populaça», digna de estar submetida aos nobres latifundiários, à qual se concede o uso dos direitos civis gerais unicamente como uma graça especial (a colonização,(1) por exemplo) e da qual qualquer funcionário ignorante e despótico pode dispor como se se tratasse de seres encerrados numa colônia de trabalho forçado. É os social-democratas aderem sem reservas à exigência de conceder todos os direitos civis aos camponeses, de abolir plenamente todos os privilégios da nobreza, de destruir a tutela burocrática sobre os camponeses e de conceder-lhes a autonomia na administração de seus negócios locais.

Em geral, os comunistas russos, adeptos do marxismo, devem, mais do que quaisquer outros, chamar-se SOCIAL-DEMOCRATAS e não esquecer nunca em sua atividade a enorme importância de DEMOCRACIA.(2)

Na Rússia, os restos das instituições medievais, de tipo semifeudal, têm ainda uma força tão extraordinária (em comparação com a Europa ocidental), pesam de maneira tão opressora sobre o proletariado e sobre o povo em geral, entravando o desenvolvimento do pensamento político em todas as categorias e em todas as classes, que não se pode deixar de insistir na enorme importância que tem para os operários a luta contra as instituições feudais de toda espécie, contra o absolutismo, o regime de castas e a burocracia. É preciso mostrar minuciosamente aos operários que terrível força reacionária representam estas instituições, como aumentam o jugo do capital sobre o trabalho, com que força deprimente pesam sobre os trabalhadores, como mantêm o capital em suas formas medievais, que não cedem às formas mais modernas, às formas industriais da exploração do trabalho, mas acrescentam a esta exploração as terríveis dificuldades da luta pela libertação. Os operários devem saber que sem derrubar estes pilares da reação(3) não terão possibilidade alguma de lutar com êxito contra a burguesia, uma vez que enquanto existirem estes pilares, o proletário agrícola russo, cujo apoio é condição imprescindível para a vitória da classe operária, jamais poderá sair da situação de homem oprimido e esmagado, capaz tão-somente de um desespero cego, e não de protestar e lutar com sensatez e firmeza. É, por isso, a luta ao lado da democracia radical contra o absolutismo e as castas e instituições reacionárias é uma obrigação direta da classe operária, e esta obrigação lhe deve ser inculcada pelos social-democratas, sem deixar, nem um instante, de inculcar-lhe, ao mesmo tempo, que a luta contra todas estas instituições é necessária unicamente como meio para facilitar a luta contra a burguesia, que a satisfação das reivindicações democráticas de caráter geral é necessária para a classe operária somente como meio de desobstruir o caminho que conduz à vitória sobre o inimigo principal dos trabalhadores: o capital, instituição de natureza puramente democrática, que na Rússia tende de maneira especial a sacrificar seu democratismo e a aliar-se aos reacionários para reprimir os operários e frear com maior força o aparecimento do movimento operário.

O que foi dito basta, a meu ver, para precisar a atitude dos social-democratas frente ao absolutismo e frente à liberdade política, assim como também sua atitude frente à corrente, singularmente reforçada nos últimos tempos, que tende a «agrupar» e a «unir» todas as frações dos revolucionários para a conquista da liberdade política.

Esta é uma corrente bastante típica e original.

Original porque as propostas de «união» não partem de um grupo determinado ou de grupos determinados com programas concretos que coincidem em certos pontos. Sendo assim, o problema da união seria um problema em cada caso particular, um problema concreto, a ser decidido pelos representantes dos grupos que se unem. Não poderia existir então uma corrente «unificadora» especial. Mas semelhante corrente existe e parte simplesmente de pessoas que se separaram do velho, mas que não se incorporaram a nada de novo: a teoria em que se apoiavam até agora os lutadores contra o absolutismo se desmorona, pelo visto, destruindo por sua vez as condições de solidariedade e de organização necessárias para a luta. É eis que os senhores «unificadores» e «aliancistas» pensam, ao que parece, que a maneira mais fácil de criar essa teoria é reduzi-la exclusivamente a um protesto contra o absolutismo e à reivindicação da liberdade política, eludindo as demais questões de caráter socialista e não socialista. Compreende-se que esta ingênua ofuscação se dissipará indefectivelmente nas primeiras tentativas de levar a cabo tal unificação.

A característica desta corrente «unificadora» é a de que ela expressa uma das últimas fases desse processo de conversão do populismo combativo e revolucionário em democratismo político-radical que assinalei mais acima. A unificação sólida de todos os grupos revolucionários não social-democratas sob tal bandeira só será possível quando se elaborar um firme programa de reivindicações democráticas que termine com o preconceito da velha doutrina do particularismo russo. Os social-democratas consideram, naturalmente, que a criação de semelhante partido democrático é um passo positivo para a frente, e o trabalho dos social-democratas, orientado contra o populismo, deve contribuir para a extirpação de preconceitos e mitos de todo tipo, para o agrupamento dos socialistas sob a bandeira do marxismo e para a formação de um partido democrático integrado pelos grupos restantes.

É com este partido não poderiam, naturalmente, «unificar-se» os social-democratas, que consideram necessária a organização independente dos operários num partido operário à parte; mas os operários prestariam o mais enérgico apoio a toda luta dos democratas contra as instituições reacionárias.

A degeneração do populismo na teoria mais vulgar do radicalismo pequeno-burguês — degeneração de que são testemunho tão evidente os «amigos do povo» — nos mostra que enorme erro cometem os que infundem nos operários a ideia da luta contra o absolutismo sem lhes explicar, ao mesmo tempo, o caráter antagônico de nossas relações sociais, em virtude do que os ideólogos da burguesia também estão a favor da liberdade política, sem lhes explicar o papel histórico do operário russo como combatente pela libertação de toda a população trabalhadora.

Costuma-se reprovar aos social-democratas a vontade de tomar em usufruto exclusivo a teoria de Marx, quando, segundo os autores da censura, sua teoria econômica é admitida por todos os socialistas. Pergunto então: que adianta explicar aos operários a forma do valor, a essência do regime burguês e o papel revolucionário do proletariado, se na Rússia a exploração do trabalhador se explica, em geral e sempre, não pela organização burguesa da economia social, longe disso, mas, sim, digamos, pela escassez de terras, pelos tributos, pelo jugo da administração?

Que adianta explicar aos operários a teoria da luta de classes, se esta teoria é incapaz de sequer explicar suas relações com o fabricante (nosso capitalismo foi introduzido artificialmente pelo governo), sem falar da massa do «povo», que não pertence à classe já formada dos operários fabris?

Como é possível admitir a teoria econômica de Marx, com sua conclusão sobre o papel revolucionário do proletariado como organizador do comunismo mediante o capitalismo, quando em nosso país se quer buscar caminhos que conduzam ao comunismo à margem do capitalismo e do proletariado criado por ele?

É claro que, em semelhantes condições, chamar o operário para a luta pela liberdade política equivaleria a chamá-lo para tirar as castanhas do fogo para a burguesia avançada, porque não se pode negar (é significativo que nem sequer os populistas e os adeptos de A Vontade do Povo o tenham negado) que a liberdade política estará, antes de tudo, a serviço dos interesses da burguesia, sem melhorar a situação dos operários e facilitando unicamente as condições de sua luta... contra essa mesma burguesia. Digo isto em oposição aqueles socialistas que, sem admitir a teoria dos social-democratas, orientam entretanto sua agitação para os meios operários, persuadidos empiricamente de que apenas neles é possível encontrar elementos revolucionários. Estes socialistas colocam sua teoria em contradição com a prática e cometem um erro gravíssimo ao desviar os operários de sua tarefa direta: A ORGANIZAÇÃO DO PARTIDO SOCIALISTA OPERÁRIO.(4)

Este erro surgiu naturalmente quando os antagonismos de classe da sociedade burguesa ainda não estavam totalmente desenvolvidos, quando estavam esmagados pelo regime de servidão, quando este originava o protesto solidário e a luta de toda a intelectualidade, criando a ilusão de um democratismo especial de nossa intelectualidade, da inexistência de uma profunda dissenção entre as ideias dos liberais e as dos socialistas. Agora, quando o desenvolvimento econômico avançou tanto que mesmo aqueles que negavam anteriormente a existência de um terreno propício para o capitalismo na Rússia reconhecem que entramos precisamente no caminho capitalista do desenvolvimento, agora já não é mais possível qualquer ilusão a este respeito. A composição da «intelectualidade» delineia-se com toda a clareza como a composição da sociedade dedicada à produção de valores materiais: se nesta última reina e governa o capitalista, na primeira o tom é dado por uma caterva de arrivistas e mercenários da burguesia, cujo número aumenta com crescente rapidez, uma «intelectualidade» satisfeita e pacífica, alheia a quimeras de toda espécie e que sabe muito bem o que quer. Nossos radicais e liberais não só negam este fato, como, também, pelo contrário, o assinalam insistentemente, empenhando-se em demonstrar sua imoralidade, em condenar, fulminar, envergonhar... e aniquilar. Estas ingênuas pretensões de envergonhar a intelectualidade burguesa por seu caráter burguês são tão ridículas como o afã dos economistas pequeno-burgueses de assustar nossa burguesia (fazendo alusão à experiência «dos irmãos maiores») dizendo que se encaminha para a ruína do povo, para a miséria, o desemprego e a fome das massas; este juízo contra a burguesia e seus ideólogos recorda o caso do peixe, ao qual se condenou a ser lançado ao rio. Além destes limites, começa a «intelectualidade» liberal e radical, que derrama uma torrente incontível de frases sobre o progresso, a ciência, a justiça, o povo, etc., que gosta de chorar os anos 60, quando não havia discordâncias, decadências, depressão e apatia, e todos os corações estavam inflamados de democratismo.

Com a ingenuidade que lhes é própria, estes senhores não querem compreender de modo algum que a solidariedade de então se originava das condições materiais da época, que não podem renovar-se: o regime da servidão oprimia todos, o administrador que acumulara dinheiro e aspirava a uma boa vida, o mujique meeiro que odiava o senhor por todas as extorsões que este lhe impunha, pela intervenção deste em seus assuntos e pela corveia; o proletário servo doméstico e o mujique empobrecido que era vendido em vassalagem ao mercador. Eram vítimas de tal regime o mercador fabricante e o operário, o trabalhador da indústria rural e a domicílio e o pequeno artesão. Todos se uniam apenas na hostilidade ao regime da servidão: além dos limites desta solidariedade começava o mais agudo antagonismo econômico. Até que ponto deve deixar-se levar por doces sonhos para não ver que nem mesmo agora este antagonismo, que alcançou um tão grande desenvolvimento; para chorar o retorno aqueles tempos de solidariedade, enquanto que a realidade exige a luta, exige que todo aquele que não queira ser um auxiliar VOLUNTÁRIO ou INVOLUNTÁRIO da burguesia se coloque ao lado do proletariado.

Se não dais crédito a essas frases ribombantes sobre os «interesses populares» e tratais de penetrar mais fundo, encontrar-vos-eis face a face com uns ideólogos autênticos da pequena burguesia, a qual sonha com o melhoramento, o apoio e o restabelecimento de sua economia (da economia «popular», como dizem eles) mediante diferentes progressos medíocres e é absolutamente incapaz de compreender que, dadas as relações de produção existentes, o único resultado de todos estes progressos será a proletarização cada vez maior das massas. Não se pode deixar de agradecer aos «amigos do povo» por terem contribuído muito para esclarecer o caráter de classe de nossa intelectualidade e por terem fortalecido, dessa maneira, a teoria dos marxistas sobre a natureza pequeno-burguesa de nossos pequenos produtores. Estes progressos devem acelerar inevitavelmente a extinção das velhas ilusões e mitos, que durante tanto tempo vêm desorientando os socialistas russos. Os «amigos do povo» aviltaram, pisaram e emporcalharam de tal modo estas teorias, que um inelutável dilema se apresenta aos socialistas russos que as defendem: rever desde o início estas teorias, ou rechaçá-las completamente, deixando-as em usufruto exclusivo dos senhores, aqueles que com triunfal fanfarronada anunciam urbi et orbi a compra de instrumentos aperfeiçoados pelos ricaços do campo, e que com toda seriedade lhes asseguram que é necessário felicitar aos que já se fartaram de passar as horas em volta do pano verde. É neste sentido falam do «regime popular» e da «intelectualidade» não só com seriedade, mas também com colossais frases pretensiosas sobre os grandes ideais e sobre a colocação ideal das questões da vida!...

A intelectualidade socialista só poderá pensar num trabalho fecundo quando acabar com as ilusões e passar à busca de uma base no desenvolvimento efetivo da Rússia e não em seu desenvolvimento desejável, nas relações econômico-sociais efetivas e não nas prováveis. Seu trabalho TEÓRICO deverá orientar-se para o estudo concreto de todas as formas do antagonismo econômico existentes na Rússia, para o estudo de sua conexão e de seu desenvolvimento consequente; deverá descobrir tal antagonismo sempre que estiver encoberto pela história política, pelas particularidades do regime jurídico, pelos preconceitos teóricos estabelecidos. Deverá fornecer um quadro completo de, nossa realidade, como um sistema determinado de relações de produção, apontar a necessidade da exploração e da expropriação dos trabalhadores sob este sistema, apontar a saída desta ordem de coisas indicada pelo desenvolvimento econômico.

Esta teoria, baseada no estudo detalhado e minucioso da história e da realidade russas, deve dar resposta às exigências do proletariado, e, se satisfaz as exigências científicas, todo despertar do pensamento rebelde do proletariado conduzirá inevitavelmente este pensamento ao caminho da social-democracia. Quanto mais avançar a elaboração desta teoria, tanto mais rapidamente crescerá a social-democracia, já que os mais astutos defensores da ordem atual de coisas não podem impedir que o pensamento do proletariado desperte; e não podem impedi-lo porque esta mesma ordem de coisas contêm necessária e inevitavelmente uma expropriação crescente dos produtores, um crescimento cada vez maior do proletariado e de seu exército de reserva, e isto a par do aumento da riqueza social, do enorme desenvolvimento das forças produtivas e da socialização do trabalho pelo capitalismo. Por muito que ainda reste a ser feito para a elaboração desta teoria, a garantia de que os socialistas cumprirão este trabalho é a difusão entre eles do materialismo, único método científico que exige que todo programa seja uma formulação exata do processo real; a garantia é o êxito da social-democracia, que abraça estas ideias, e este êxito tem alarmado tanto nossos liberais e democratas, que suas volumosas revistas, como observou um marxista, deixaram de ser enfadonhas.

Ao assinalar a necessidade, a importância e a grandiosidade do trabalho teórico dos social-democratas, de modo algum quero dizer que este trabalho deva situar-se em primeiro plano, antes do trabalho PRÁTICO;(5) e muito menos que o segundo deve retardar-se até o término do primeiro. Apenas poderiam chegar a esta conclusão os entusiastas do «método subjetivo em sociologia» ou os partidários do socialismo utópico. Está claro que se se supõe que a tarefa dos socialistas reside em procurar «outros caminhos de desenvolvimento» (que não sejam os reais) do país, então, é natural que o trabalho prático só será possível quando alguns filósofos geniais descobrirem e mostrarem estes «outros caminhos»; e, pelo contrário, uma vez descobertos e mostrados estes caminhos, encerra-se o trabalho teórico e começa o trabalho daqueles que devem dirigir a «pátria» por esse «outro caminho» «recém-descoberto». De maneira muito diferente se coloca a questão quando a tarefa dos socialistas se reduz à de serem os dirigentes ideológicos do proletariado em sua luta efetiva contra os inimigos reais e verdadeiros que seguem o caminho efetivo do presente desenvolvimento econômico-social. Em tal situação, o trabalho teórico e o trabalho prático se fundem em um só trabalho, tão acertadamente definido pelo veterano da social-democracia alemã, Liebknecht, com estas palavras:

Studieren, Propagandieren, Organisieren.(6)

Não se pode ser dirigente ideológico sem levar a cabo tal trabalho teórico, como tampouco se pode sê-lo sem dirigir este trabalho de acordo com as exigências da causa, sem divulgar os resultados desta teoria entre os operários e ajudá-los em sua organização.

Esta colocação da tarefa a realizar preserva a social-democracia daquelas deficiências de que tão comumente padecem os grupos de socialistas: o dogmatismo e o sectarismo.

Não pode haver dogmatismo onde o critério supremo e único da doutrina é sua conformidade com o processo efetivo do desenvolvimento econômico-social; não pode haver sectarismo quando a tarefa se reduz a contribuir para a organização do proletariado, quando, por conseguinte, o papel da «intelectualidade» se reduz a tomar desnecessários dirigentes especiais, dirigentes intelectuais.

Por isso, apesar de existirem divergências entre os marxistas sobre diferentes questões teóricas, os métodos de sua atividade política têm sido, desde o aparecimento mesmo do grupo, e continuam sendo até agora os mesmos.

A atividade política dos social-democratas consiste em contribuir para o desenvolvimento e para a organização do movimento operário na Rússia, em fazê-lo sair do estado atual de simples tentativas de protesto, «motins» e greves, dispersos e privados de uma ideia diretriz, convertendo-o numa luta organizada DE TODA A CLASSE operária russa, dirigida contra o regime burguês e tendente à expropriação dos expropriadores, à destruição do regime social baseado na opressão do trabalhador. A base desta atividade é a convicção de todos os marxistas de que o operário russo é o único e natural representante de toda a população trabalhadora e explorada da Rússia.(7)

É o representante natural, porque a exploração do trabalhador na Rússia é, em toda parte, capitalista por essência, se se deixam de lado os restos agonizantes da economia própria do regime da servidão; ocorre, entretanto, que a exploração da massa de produtores é reduzida, dispersa, não está desenvolvida, enquanto que a exploração do proletariado fabril se realiza amplamente, tem um caráter social e está concentrada. No primeiro caso, esta exploração aparece ainda envolta em formas medievais, carregada de diferentes apêndices, artifícios e subterfúgios políticos, jurídicos e consuetudinários, que impedem que o trabalhador e seu ideólogo vejam a essência desta ordem de coisas que oprime o trabalhador, vejam os meios e os caminhos que permitam sair dela. No último caso, pelo contrário, a exploração já está completamente desenvolvida e aparece em seu aspecto puro sem qualquer dos detalhes particulares que obscurecem a questão. O operário já não pode deixar de ver que o quo o oprime é o capital, que é contra a classe burguesa que ele deve lutar. É esta sua luta, encaminhada para a satisfação das necessidades econômicas mais imediatas, para a melhoria de sua situação material, exige inevitavelmente dos operários organização, converte-se inevitavelmente numa guerra, não contra pessoas isoladas, e sim contra a classe, contra essa mesma classe que não só nas fábricas, mas também em toda a parte, oprime e submete o trabalhador. Eis aí a razão pela qual o operário é o representante avançado de toda a população explorada; e para que leve a cabo sua representação numa luta organizada e consequente, é preciso algo muito diferente do que atraí-lo com algumas «perspectivas»; para isto, basta esclarecer-lhe simplesmente sua situação, esclarecer o regime político-econômico desse sistema que o oprime, esclarecer a necessidade e a inevitabilidade do antagonismo de classe sob esse sistema. Semelhante situação do operário de fábrica no sistema geral de relações capitalistas converte-o no único combatente pela libertação da classe operária, porque apenas a fase superior de desenvolvimento do capitalismo, a grande indústria mecânica, cria as condições materiais e as forças sociais necessárias para essa luta. Em todos os demais lugares, dadas as formas inferiores de desenvolvimento do capitalismo, não existem essas condições materiais, pois a produção está dispersa em milhares de minúsculas explorações agrícolas (que não deixam de ser explorações agrícolas dispersas sob as formas mais igualitárias da posse comunal da terra), o espoliado, na maioria das vezes, ainda possui uma minúscula exploração agrícola, e desse modo se acha preso a esse mesmo sistema burguês contra o qual deve lutar, e isto detém e dificulta o desenvolvimento das forças sociais que são capazes de derrotar o capitalismo. A pequena exploração dispersa e isolada obriga os trabalhadores a uma residência fixa, dissocia-os, não lhes permite adquirir consciência de sua solidariedade de classe, não lhes permite unir-se, depois de haver compreendido que a causa de sua opressão não é esta ou aquela pessoa, e sim todo o sistema econômico. Ao contrário, o grande capitalismo rompe inevitavelmente toda ligação dos operários com a velha sociedade, com um determinado lugar e com um determinado explorador; une-os, obriga-os a pensar e os coloca em condições tais que permitem dar início à luta organizada. Os social-democratas dirigem precisamente toda sua atenção e toda sua atividade à classe operária. Quando os representantes avançados desta classe assimilarem as ideias do socialismo científico, a ideia do papel histórico do operário russo, quando estas ideias alcançarem ampla difusão e entre os operários se criarem sólidas organizações, que transformem a atual guerra econômica dispersa dos operários numa luta consciente de classes, então O OPERÁRIO russo, colocando-se à frente de todos os elementos democráticos, derrubará o absolutismo e conduzirá O PROLETARIADO RUSSO (ao lado do proletariado DE TODOS OS PAÍSES) pelo caminho direto da luta política aberta para A REVOLUÇÃO COMUNISTA VITORIOSA.

Fim
1894