Anarquismo e marxismo na Revolução Russa

Arthur Lehning


Os antecedentes históricos de 1917


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Fazer um estudo da Revolução Russa, seu caráter e seu quadro histórico, quer dizer, entre outras coisas, expor as ideias e correntes revolucionárias e socialistas de um século de história da Rússia e, mais particularmente, o desenvolvimento do socialismo russo durantes os cinquenta últimos anos: até o presente, esta história não foi escrita e apenas poderia sê-lo com verossimilhança depois de serem publicados os arquivos do Departamento de Polícia secreta dos governos czaristas e de ser examinada de maneira mais completa a massa de documentos que apenas se começou a reunir. Tal história talvez seja possível agora, no momento em que o desenvolvimento da Revolução russo chegou a seu termo e assumiu seu verdadeiro caráter e em que, pelo curso da Revolução, podemos precisamente apreender a significação real desse passado cuja interpretação nos é assim facilitada. Tal história constituiria também, por sua vez, um precioso elemento no conjunto das questões levantadas por todo o problema da civilização, que nos propõe um quadro geral da maior transformação conhecida no mundo.

Ainda que na verdade não se trate a seguir da gênese da Revolução, mas de tendências e princípios bem determinados desta Revolução, é indispensável sem dúvida oferecer de sua evolução histórica e suas raízes no passado uma percepção rápida, mesmo que seja apenas esquemática.

Pode-se, em primeiro lugar, assinalar um traço característico da evolução da Rússia: sempre estiveram ligadas às ideias de uma reforma política as ideias de uma reforma econômica(1); é possível dizer que esta concepção de uma revolução econômica, em detrimento de uma revolução política constituiu o princípio diretor, o caráter essencial, das ideias socialistas revolucionárias que se desenvolveram na Rússia na segunda metade do século XIX. Já no tempo da revolta — puramente política — dos Dezembristas em 1825, Pestel sublinhou a necessidade de somar uma transformação social à transformação política: certamente seria possível proclamar a república, mas isto seria apenas mudar de nome. Era preciso se ater à propriedade fundiária, pois o essencial é dar a terra ao camponês: apenas então a Revolução seria total.(2) Esse sentimento de que toda Revolução que não é social envolve somente uma mudança de nome, que toda reforma e tudo que se pode empreender para modificar a vida da sociedade é na realidade apenas a consequência de uma transformação na economia, tal sentimento foi verdadeiramente o traço característico da corrente socialista que, durante os anos 1870, se desenvolveu sob influência de Bakunin e Lavrov. Ela encontrou na organização Zemlia i Volia(3) (Terra e Liberdade) sua expressão socialista consciente. Assim como outros grupos socialistas ulteriores, o Terra e Liberdade surge do movimento nascido por volta de 1870 que ficou conhecido como movimento dos Narodnik (é de Bakunin que vem a expressão “Idti v narod(4): ir ao povo). Todos os Narodnik acreditavam em uma evolução particular da Rússia e pensavam que, contrariamente à Europa ocidental, ela poderia evitar a fase capitalista, na marcha rumo ao socialismo. Notava-se que não havia na Rússia uma burguesia como classe e que os artéis e os mir russos exerceriam papel importante para o desenvolvimento do socialismo. Os artéis existiram por séculos, tendo sua presença atestada já no século XIII: eram associações de solidariedade muito difundidas na Rússia que agrupavam trabalhadores sobre as bases de um acordo voluntário e da igualdade de direitos, e eram fundadas com vistas ao trabalho em comum. Quanto ao mir, ele representava para os Narodnik a própria base do socialismo. O mir era uma forma de posse da terra peculiar à Rússia, nos termos da qual o conjunto dos membros da comunidade se encontra com a posse do solo e o reparte de acordo com um modo particular. O sistema de divisão não era sempre o mesmo e a periodicidade das trocas era variável. Elas dependiam ora do número de fazendas e de habitantes, ora apenas do número de homens, ou ainda das necessidades da família ou da capacidade de trabalho. O mir tinha por fundamento psicológico o direito costumeiro profundamente enraizado no camponês: direito ao trabalho e direito ao produto do trabalho. O direito ao trabalho significava direito à terra, a qual não pertencia a ninguém ou, o que dá no mesmo, pertencia a todos, a Deus e ao czar. O termo “propriedade” no sentido que lhe damos de propriedade privada era estranho ao camponês. Apenas aquele que trabalhava a terra — e somente enquanto a trabalhava — é quepossuía a terra. Segundo um velho provérbio eslavo, a posse da terra se estende até onde chegarem a foice e o arado. Indico apenas por ora que não se pode identificar o mir nem com o sistema de partilha das terras nem mesmo com um tipo bem definido de agricultura. Assim, os Narodnik e mais tarde os socialistas estavam em seu perfeito direito ao pretender que a manutenção do mir tornaria possível uma agricultura comunitária e socialista.

Em seus escritos, Tchernichevski(5)o mais penetrante lógico que a Rússia já teve, chamou atenção mais que qualquer outro à questão agrária, e sem que possamos chamá-lo um socialista revolucionário, ele exerceu sobre os Narodnik no entanto uma influência decisiva. O que ele escreveu sobre a libertação dos camponeses e suas pesquisas sobre a questão agrária, nas quais afirmou a possibilidade da socialização da Rússia nas bases do mir, tiveram importância capital. Ele foi um dos primeiros a perceber que a liberdade política não era suficiente em si mesma. Não queria apenas a abolição da servidão, mas uma emancipação total. A liberdade tal qual era definida pelo liberalismo da Europa ocidental não garantia de modo algum a independência do indivíduo; aquele que depende de outros para assegurar sua subsistência não é livre, a despeito de quaisquer leis; e é por isso que a liberdade política deve ser completada com a liberdade econômica. Tchernichevski compreendia que a questão da emancipação era um problema econômico, e em sua obra Que fazer?, publicada em 1863, ele escreveu o evangelho do movimento que então nascia, para o qual trouxe grande progresso, e ao qual Turgueniev batizou com o nome niilismo, expondo-lhe as características no célebre romance Pais e filhos. Foi um movimento de revolta da juventude russa contra as convenções e mentiras da sociedade, contra toda autoridade; um movimento revolucionário e cultural, ateu e socialista, por uma nova concepção do mundo e da vida, para o qual as ideias dos Narodnik formaram a base social.(6) Milhares de jovens foram ao povo, como médicos, professores ou simples operários, para participar de sua vida e difundir em seu meio as ideias socialistas. Em toda parte, formaram-se sociedades secretas, grupos dentre os quais um dos mais conhecidos foi o Círculo Tchaikovski, que teve grande influência na evolução das ideias revolucionárias e do qual fizeram parte, entre outros, Stepniak e Piotr Kropotkin. Kropotkin aderiu ao círculo depois de sua viagem à Europa, da qual retornou alinhado ao anarquismo, sob influência das ideias de Bakunin, as quais os operários da Federação do Jura lhe haviam revelado na Suíça. Na Rússia, ele difundiu tais ideias e os princípios da Internacional: “não há dúvida”, escreveu em suas Memórias, “que nossa juventude escutou a voz potente de Bakunin e que a propaganda da Associação Internacional dos trabalhadores exerceu sobre nós seu efeito estimulante.”

O objetivo de tal propaganda era a revolução social iminente. E a revolução social significava o seguinte: uma revolução agrária que não correspondesse apenas à conquista da terra, mas conduzisse ainda a uma posse coletiva, destinada a abolir toda propriedade privada dos domínios e das terras. Sabe-se que mesmo Marx e Engles acreditavam em 1882 que, em certas condições favoráveis, tais como o prolongamento da Revolução Russa em uma Revolução europeia, o mirpoderia servir de base ao desenvolvimento do socialismo(7); concepção esta que Marx já havia expressado em 1877, ao falar da mais magnífica possibilidade aberta a um povo para escapar dasfunestas vicissitudes do sistema capitalista.(8) Engels reconhecia nomir um fator particular de socialização até mesmo em 1894, uma época portanto em que não era mais possível à Rússia escapar da fase capitalista, em que ao contrário o desenvolvimento do capitalismo industrial recebia um potente impulso e a proletarização dos camponeses estava em pleno andamento. “Se esta comunidade se manteve suficientemente intacta para, como Marx e eu esperávamos em 1882, poder, em combinação com uma potente revolução na Europa ocidental, servir de ponto de partida à evolução para o comunismo, é uma questão à qual não pretendo responder. Mas uma coisa é certa: se ainda existe o menor resquício de tal comunidade, está nele a primeira condição para a queda do despotismo czarista e para a Revolução na Rússia”.(9) Tal era também, como vimos, a concepção dos Narodnik. Bakunin em particular — que não depositava nenhuma fé cega no mir e que, em uma polêmica com Herzen (carta de 19 de julho de 1866), se mostrou longe de esperar deste “Santíssimo Lugar místico” a salvação — lançou luz impiedosamente sobre o lado ruim do mir, mostrando brilhantemente que a revolução era a condição indispensável para o seu desenvolvimento. Por que — pergunta Bakunin — o mir, cujos benefícios existem há tanto tempo, não se desenvolveu? Por que, após dez séculos, ele conduziu tão somente à mais abominável escravidão? A causa da improdutividade das comunidades camponesas russas vem talvez da ausência de liberdade em seu seio; e sem liberdade não se pode conceber qualquer movimento coletivo. Na Rússia, é o Estado que impede o despertar da liberdade: o Estado moscovita exterminou da Rússia todo germe de vida que poderia permitir ao povo se instruir e evoluir, ele repousa sobre a negação radical da independência e da vida do povo, não tem nada em comum com este último, a não ser aquela relação exterior e mecânica que há entre o opressor, o explorador, e sua vítima, de modo que lhe é impossível se tornar um organismo popular. Bakunin não crê que se possa conciliar o desenvolvimento possível dos germes adormecidos das comunidades camponesas russas com a manutenção, por menor que seja, do Estado russo, o qual pode mudar de forma ou melhor de etiqueta, mas cuja natureza profunda é imutável. Não se pode servir à causa do povo por meios burocráticos, com ajuda do Estado, segundo a via do socialismo de Estado, à qual devemos denunciar como a mais perigosa ilusão, que só pode prejudicar esta causa. Entre o Estado e o povo, com efeito, não pode haver nada em comum, e com esta união antinatural é sempre o povo e jamais o Estado que sofrerá. Seria você — pergunta Bakunin a Herzen — um socialista de Estado, pronto a se reconciliar com a “mentira mais vil e mais temível que o nosso século engendrou: o democratismo oficial e a burocracia vermelha”? O primeiro e mais importante ponto do programa socialista deve ser proclamar a necessidade de destruir o abominável Império dos Czares.(10)

Esta ideia de Bakunin de que a rota da liberação social passa forçosamente pela destruição do Estado, ideia que ele sempre desenvolveu e expôs, constituía e ainda constitui o fundamento da teoria anarquista de uma Revolução social destruidora do Estado. Tais ideias de Bakunin exerceram grande influência sobre o movimento socialista revolucionário dos anos 1870, do qual foram um traço característico. Também Lavrov combateu o princípio de Estado e particularmente a centralização estatal: o socialismo tem que combater o Estado antes de tudo, e é contra ele que a Revolução social se volta.(11) A diferença essencial entre as duas tendências tão características que se formaram sob a influência de Lavrov e Bakunin era que os bakuninstas não rejeitavam a insurreição como meio revolucionário. “O caminho da libertação do povo pela ciência nos é vedado”, escreveu Bakunin. As tradições do passado, os lendários heróis revolucionários do séculos XVII e XVIII, Stenka, Ranzine e Pougatcheve, eram vivos na memória popular: seria fácil provocar cada vilarejo a se insurgir. Ao contrário, a tendência de Lavrov queria preparar a Revolução unicamente pela propaganda socialista e a educação. Todos os Narodnik de fato pensavam que o principal obstáculo ao socialismo era a mentalidade política ingênua do camponês, consequência da opressão secular da autocracia, que o fazia esperar do czar a melhora de sua condição!

No entanto, a propaganda não deu grandes resultados. As perseguições massivas, as detenções, as condenações impiedosas à prisão e aos trabalhos forçados, e também o enfraquecimento da ligação existente entre círculos e grupos, foram os fatores do insucesso. Para tornar possível um trabalho mais sistemático e para reunir as forças revolucionárias, fundou-se em 1876, depois das experiências dos anos precedentes, a organização Terra e Liberdade, da qual já falei acima. O traço mais marcante deste movimento no início é seu caráter social e econômico, socialista, de forma nenhuma político e liberal. Condena-se mesmo a ação política, pois ela se desvia do objetivo principal. Posto que a conjuntura política e as leis repousam sobre as relações de força existentes na economia, é preciso transformar estas últimas pela Revolução. Então o Estado centralizado desaparecerá, em favor das coletividades e federações autônomas, fundadas sobre a solidariedade econômica. É preciso suplantar os problemas nacionais pelos sociais e antes de tudo abandonar este princípio jacobino, segundo o qual os revolucionários, após a queda do antigo governo, vêm se instalar em seu lugar, querendo impor suas próprias leis ao povo. A Revolução não deve ser feita para o povo, mas sim pelo povo.(12) Axelrod resumiu assim o princípio desse movimento: cria-se em uma revolução iminente, que implicaria uma transformação total das instituições políticas e econômicas da Rússia, na abolição completa do Estado, na tomada de todas as terras e todas as fábricas pelas coletividades camponesas e associações operárias de produtores, que a seguir se agrupariam, segundo o princípio federativo, em Uniões diversificadas.(13) O programa do Terra e Liberdade era, como vemos, o de Bakunin.

Quando, alguns anos mais tarde, surgiu uma oposição contra essa tática puramente econômica e se sustentou a necessidade, ao lado da ação econômica, da ação política, as ideias do socialismo federalista exerceram ainda uma grande influência. Em 1878, por proposição dos operários de Petersburgo, sobretudo os das fiações de algodão, foi fundada a União dos Operários Russos do Norte, e, ao lado das reivindicações de princípio do programa, outras foram formuladas, imediatas, relativas às liberdades políticas: liberdade de expressão, de imprensa, direito de associação e reunião, ensino gratuito para todos em todas as escolas e estabelecimentos de instrução, abolição do sistema de passaportes, abolição dos impostos diretos e substituição por um imposto sobre a renda e a herança, limitação do tempo de trabalho, proibição do trabalho infantil etc. Quanto aos pontos principais do programa, eles eram os seguintes:

  1. destruição da ordem social econômica e política existente;
  2. criação de uma federação das comunas, baseada na completa igualdade de direitos e em uma gestão interior totalmente autônoma;
  3. supressão da propriedade fundiária privada e sua transformação em posse comunal;
  4. organização do trabalho segundo o princípio de associação e condução às mãos dos produtores de todos os meios de produção.

Estipulou-se expressamente que a organização do mir não era desejável em si, mas que a posse comum da terra e a supressão da propriedade privada deveriam levar à exploração coletiva da terra, em nome de uma reorganização completa da sociedade sobre bases socialistas. Seria indispensável, ademais, fazer agitação entre os trabalhadores da indústria e organizá-los ativamente. De uma revolução efetuada com toda independência, se poderia esperar algo; mas de nada de uma maioria parlamentar, nada se poderia esperar. O programa era concluído por estes termos: “Na nossa bandeira, vêm inscrita a palavra de ordem: “Te apropria da máquina, operário! Toma a terra, camponês!”(14)

Em virtude do pouco sucesso da propaganda e da violência da repressão governamental, foram numerosos aqueles que desistiram de organizar o povo metodicamente para a Revolução e pensaram ser preciso combater primeiramente o próprio governo e a autocracia. Ao mesmo tempo, manifestou-se certa oposição entre cidade e campo, e aqueles que então se engajaram na ação política concentraram nas cidades o essencial de sua atividade: estas tendências opostas conduziram em 1879 a uma cisão. O novo partido que se formou assumiu o nome de Naródnaia Vólia, isto é, “Vontade do Povo”; já aqueles que permaneceram fiéis ao programa do Terra Liberdade organizaram o antigo partido sob o nome de Chërnyi Peredel (Repartição Negra).(15)

A Vontade do Povo se propunha como objetivo principal a luta contra o poder central. Ela queria promover uma Revolução política, à qual se seguiria a instauração de uma Constituinte. O que queria não eram reformas políticas, mas a liberdade política, para poder realizar seu programa social. Ela acreditava de fato que em uma Constituinte a imensa maioria seria de delegados dos camponeses, que não hesitariam em reorganizar o sistema agrário. Pode-se definir a Vontade do Povo como um partido político centralista de caráter terrorista, que ainda aceitava os princípios fundamentais do Terra e Liberdade no domínio social: federalismo, autonomia das comunas, fábricas nas mãos dos operários, a manutenção do mir como unidade econômica. O terrorismo era visto como meio prático para a luta política. Já no período anterior, o terrorismo feroz do governo havia trazido à tona o terrorismo heroico dos revolucionários. No início de 1878, Vera Zasulitch abateu o chefe de polícia de Petersburgo, general Trepov, e em 1879 Stepniak esfaqueou em plena rua o general Mesentsov. Tais foram, contudo, apenas atos isolados. Doravante, o terrorismo seria organizado pelo “Comitê Executivo” e empregado como meio de luta política. Os atos de terrorismo e de destruição tinham como objetivo tanto minar a autoridade do Estado quanto se livrar dos governantes perigosos e dos espiões. O atentado contra Alexandre II, em 1881, marcou ao mesmo tempo o auge e o fim do terrorismo. No período que se estende de 1876 a 1882, houve catorze assassinatos políticos e treze atentados falharam, dos quais quatro dirigidos contra Alexandre II.

A Repartição Negra, ao contrário, continuou a assumir como seu o programa do Terra e Liberdade, querendo se apoiar sobretudo nos camponeses, e pretendo conquistar a liberdade política tão somente pela ação revolucionária do povo. Bakunin também se opunha aos atentados. Em uma carta a Herzen, reprovando a maneira como ele condena o atentado executado por Karakazov e acusando-o de usar a mesma linguagem que os nobres e os liberais da Rússia oficial, ele se exprime nestes termos:

Como você, não espero nenhum benefício do assassinato do czar da Rússia; estou mesmo pronto a reconhecer que ele nos causaria um dano certo, suscitando uma reação imediata em favor do czar, mas não me espanta de forma nenhuma que nem todos partilhem desta opinião […] Nós não podemos, em todo caso, recusar a ele [Karakazov] nossa estima, e devemos reconhecê-lo como um dos “nossos”.

Na medida em que o terrorismo prepara um movimento revolucionário, reforça a consciência, das massas e é um meio de defesa contra os informantes, ele não não é rejeitado pela Repartição Negra, mas não se deve, segundo ela, concentrar exclusivamente o essencial da ação na luta contra o governo. Para dar à Revolução um conteúdo econômico e social e para assegurar assim os frutos da vitória ao povo, é importante antes de tudo organizá-lo, do contrário a revolução política passará pelo país como uma tempestade, sem trazer ao povo vantagens econômicas. Seriam os grandes negociantes e os proprietários que seriam eleitos em uma Constituinte, pois o povo é dependente deles. “O povo não se apaixonará por tal representação nacional nem por tal constituição.” O partido da Repartição Negra não era de modo algum adversário da liberdade política; via nela o resultado de uma evolução progressiva, mas colocava no primeiro plano questões econômicas e sociais. Sem uma revolução econômica, toda ação política permanece um trabalho de Sísifo: é a economia que determina em última análise a moral e o direito. Na célebre “carta aos antigos camaradas” (dezembro de 1879), a Repartição Negra opõe seus princípios aos da Vontade do Povo: os revolucionários partidários somente da ação política sempre acreditaram que a liberdade política seria suficiente para construir um Estado ideal. Eles defendiam princípios teóricos, como os direitos do povo ou os direitos do homem, e ignoravam as relações econômicas. Eles queriam fazer tudo para o povo, mas nada pelo povo. Os Jacobinos, em nome dos direitos do homem e da Salvação Pública, tinham feito reinar o terror e a opressão, mas, no essencial, os regimes de Luís XIV, Robespierre e Napoleão I eram idênticos: centralização, autoridade e iniciativa de apenas um, e, para todos os outros, subordinação e silêncio. Se o partido da Vontade do Povo adotar tais princípios, ele se tornará o partido da reação e da estagnação e perderá o apoio das massas. Reconheceu-se isto após 1848 na Europa Ocidental: as questões políticas são postas em segundo plano, e se reclama ao contrário a reorganização do sistema econômico e social com a participação do próprio povo.(16)

Os objetivos da Repartição Negra, como observa Thun com razão, são aqueles do socialismo anarquista. Estas eram as ideias do socialismo libertário, que, em oposição ao socialismo de Estado de inspiração marxista, foram difundidas na primeira Internacional, principalmente sob a influência de Bakunin, e defendidas pelas Federações “anti-autoritárias”. À concepção marxista da tomada do poder político, elas opunham, como condição prévia à libertação dos trabalhadores, a destruição de todo poder político e a abolição do Estado. Diante da utopia marxista de uma evolução automática das relações econômicas conduzindo necessariamente ao socialismo, elas punham o acento sobre a ação revolucionária espontânea e criadora e sobre a iniciativa. Diante da centralização dos poderes político e econômico nas mãos do Estado — e é bem isto que aconteceu! — os anarquistas insistiam sobre a necessidade de lutar no terreno econômico e sobre o dever dos trabalhadores de garantir o andamento da produção sob a direção de federações de indústrias. Para eles, nada se fazia em favor da libertação dos trabalhadores, se estes, de assalariados dos capitalistas, se tornassem assalariados do Estado. Diante do princípio da ditadura, eles erguiam a bandeira da liberdade. Diante da ação política exclusivamente parlamentar que caracterizava a luta marxista pela “Revolução social”, eles guardavam como princípio diretor a grande máxima da Internacional: a libertação dos trabalhadores só pode ser obra dos próprios trabalhadores.

Durante esses anos e mais tarde, e ainda por muito tempo, não seria questão naturalmente de um “movimento” socialista, tal qual a Europa ocidental entende: era somente a Rússia “subterrânea”, que após meio século — ou, caso se prefira, depois de tantos séculos — irrompia bruscamente. As ideias das quais acabei de falar encontraram audiência e estenderam sua ação. Um daqueles que conheceram melhor esta Rússia revolucionária, Sergey Kravchinski, cujos escritos sobre este período, assinados com o nome de Stepniak, gozaram de grande reputação, e que produziu ele próprio agitação entre operários e camponeses, pôde escrever, não sem razão: “De fato, não há país no mundo onde os camponeses estejam mais preparados para aceitar as ideias do socialismo federalista que a Rússia”.(17)

Muito tempo antes dos “marxistas”, já existia uma tendência que, contrariamente aos Narodnik, considerava o mir como instituição obsoleta e decadente, à qual a propriedade privada substituiria, como mostrou a história europeia. Era inútil portanto se ocupar dos interesses do campesinato; era preciso transferir o centro da propaganda para o meio dos trabalhadores das fábricas. Os membros desta tendência se intitulavam “lavristas”, mas equivocadamente, pois Lavrov, como vimos, pensava bem diferente. O grupo, no entanto, não teve a menor influência: os trabalhadores da indústria eram demasiado ligados ao campo para ter simpatia por tal propaganda. Esta tendência deixou de existir em 1877. Sob influência da teoria de Marx-Engels, essas ideias ganharam vida novamente no início dos anos 1880. Foram membros da Repartição Negra que, em 1883, se reuniram no estrangeiro sob o nome de “Grupo de Emancipação do Trabalho” (Plekhanov, Akselrod, Deitch, Vera Zasulitch). Eles se tornaram os mais ardentes representantes das ideias marxistas na Rússia. Ironicamente, pouco antes, em 1880, Marx retratou em uma carta a Sorge seus futuros discípulos e entusiastas nestes termos pouco amigáveis:

Eles constituem, em oposição aos terroristas que arriscam a vida, o suposto partido da Propaganda (para fazer propaganda na Rússia, eles vão para Genebra! Que quid pro quo!). Esses senhores são contra toda ação política revolucionária. A Rússia deve dar uma cambalhota para um milênio anarco-comunista-ateu! No meio-tempo, eles preparam tal cambalhota com um maçante doutrinarismo, cujos supostos princípios “courent la rue depuis feu Bakounine” [“vagam pelas ruas desde o finado Bakunin”, em francês no original].(18)

Em 1898, é fundado em Minsk, o partido social-democrata, depois do nascimento, em 1897, do Bund, partido russo-judaico de ideologia federalista, que viria exercer um papel muito importante.(19)

O programa dos social-democratas não era de forma alguma um programa socialista, e continha unicamente reivindicações de natureza democrática burguesa. A revolução iminente só poderia ser uma revolução burguesa. Um movimento socialista em meio aos milhões de camponeses seria algo impossível. Apenas a revolução burguesa, com a instauração definitiva da propriedade privada e a abolição da posse comum do solo, a expropriação dos pequenos camponeses e a aceleração do nascimento do proletariado rural, permitiria criar um terreno favorável à propaganda socialista. Em uma primeira fase, era preciso lutar pelo livre desenvolvimento do capitalismo, contra o absolutismo e pelas liberdades democráticas. Então o próprio capitalismo criaria novamente um proletariado, vanguarda da Revolução social, e as condições prévias para o movimento político da classe trabalhadora. Não poderia ser portanto uma questão da conquista do poder político para e pelo proletariado, e menos ainda questão de destruir a sociedade burguesa pela via de uma revolução sob a bandeira do socialismo. As aspirações do proletariado revolucionário russo visariam na prática esta etapa do desenvolvimento que é a do liberalismo radical-democrata. A burguesia em ascensão seria revolucionária em quase todas as manifestações da sua existência.(20) — Os bolcheviques executaram precisamente o programa marxista até suas mais extremas consequências; eles não apenas lutaram para realizar as condições favoráveis a um capitalismo burguês, como também assumiram a tarefa da própria burguesia! Em vez de um número grande de capitalistas, aparece um capitalista gigante: o Estado bolchevista. “O socialismo — declarou Lenin — não é outra coisa que um monopólio capitalista de Estado”. A partir de 1896, ano das primeiras grandes greves, o movimento operário vai tomar um grande impulso, que encontrará uma conclusão provisória na Revolução de 1905.

Os grupos dispersos que continuaram a defender as ideias da Vontade do Povo conheceram uma retomada das atividades e, em 1901, se organizaram como Partido Socialista Revolucionário. Um novo período de terrorismo vai começar, sob direção de um “comitê de luta” especial. O PSR se considerava um herdeiro da Vontade do Povo. Seu programa não tinha nada de “provisoriamente” burguês. Não pretendia começar ajudando os exploradores a tomar o poder, mas reclamava, ao contrário, a Revolução imediata. Decerto que o partido exigia também liberdades políticas, e era precisamente o seu dever lutar por uma democratização do regime político. Sob o ponto de vista econômico, seu programa era profundamente federalista. A revolução agrária não deveria trazer a nacionalização, mas sim a socialização de todas as terras, ou seja, os direitos à propriedade e à administração se atribuiriam aos organismos centrais locais de autogestão popular. A despeito de seu aspecto sobretudo camponês, o partido, ao contrário da social-democracia, reconhecia a importância dos sindicatos e insistia em seu papel no sistema de produção da nova sociedade. Além disso, o partido denunciava o socialismo de Estado: por um lado, como um sistema de meias reformas que serve ao adormecimento da classe trabalhadora; por outro, como um tipo particular de capitalismo de Estado, uma vez que concentra os diversos ramos da produção e do comércio nas mãos da burocracia no poder, para favorecer os interesses financeiros e políticos desta. (Em 1905, os socialistas revolucionários de tendência anarquista mais marcada se separaram e assumiram o nome de Maximalistas; em 1917, quando o partido se divide em direita e esquerda, eles se unem a esta última, o que, todavia, ocasiona uma nova cisão entre os Maximalistas.)

No início do século, o movimento anarquista ligado à Repartição Negra reaparece com mais força. Um grande número de grupos e centros de propaganda existe tanto nas cidades como no campo. Editam-se obras de Bakunin e Kropotkin, brochuras e folhetos. O estado de espírito que caracteriza este último período do movimento revolucionário russo é, como observa Masaryk, incontestavelmente anarquista. Kropotkin exerce a maior influência. Após 1905, a reação se instala e força todos os revolucionários que querem escapar da prisão ou da deportação a fugirem para o exterior. Na Suíça, em Paris e em Londres, são constituídos grupos anarquistas e surgem publicações teóricas. Um importante movimento anarquista russo nasce nos Estados Unidos da América: a “Federação das uniões de trabalhadores russos”, cujo jornal é o Golos Truda(21) (A voz do trabalho); trata-se de um movimento anarcossindicalista. Quando eclodiu a Revolução de fevereiro, uma grande quantidade desses anarquistas retornou à Rússia, ao mesmo tempo que os emigrados de Paris e Londres, para participar da Revolução. Eles fundaram a casa editorial e de impressão Golos Truda e publicaram um jornal com o mesmo nome. Kropotkin, em 1905, resumiu nestes termos a missão dos anarquistas na Revolução Russa:

Devemos tentar agir para salvaguardar a autonomia comunal e a iniciativa pessoal, tanto mais quanto todos os outros partidos intervêm para criar um Estado forte, para instituir um socialismo de Estado, o que equivale a sufocar toda autonomia comunal e destruir toda iniciativa pessoal […] A Revolução do povo na Rússia sempre será de tendência anarquista; ela não se interromperá a meio caminho como desejam os teóricos que se apressam em ordenar: “até ali, e não mais além!” Este “não mais além” sempre significa para eles o momento em que o poder do Estado passará às mãos do seu partido […] Pregar o ódio contra o Estado sempre foi a tarefa histórica dos anarquistas, e tal será ainda o seu papel na Revolução Russa e durante esta Revolução.(22)


Notas de rodapé:

(1) Cf. HURWICZ, Elias. “Geschichte der jüngsten russischen Revolution”. [“História da recente Revolução Russa.”] Berlim: Der Firn, 1922, p. 14. (retornar ao texto)

(2) HERZEN, Aleksndr. “La conspiration russe de 1825, suivie d’une lettre sur l’émancipation des paysans en Russie.” Londres: S. Tchorzewski, 1858, p. 12. (retornar ao texto)

(3) NT: Transliteração do russo “Земля и воля”. (retornar ao texto)

(4) NT: Transliteração de “Идти в народ”. A expressão narodista normalmente citada é “khozhdeniye v narod” (хождение в народ), com o mesmo significado referido por Lehning. (retornar ao texto)

(5) NT: É a ele que Marx se refere como “grande sábio e crítico russo”, no posfácio à segunda edição alemã do primeiro volume d’O Capital. (retornar ao texto)

(6) Sobre Tchernichevski e o niilismo, cf. MASARYK, Tomáš. Russland und Europa. ”[“A Rússia e a Europa.”] Jena: Diederichs, 1913, Tomo II, capítulo XV. Ver a apresentação do niilismo nas Memoiren eines revolutionärs [“Memórias de um revolucionário”], de Kropotkin, Tomo 2, capítulo VI. (retornar ao texto)

(7) NT: O texto em questão é o prefácio de Marx e Engels (janeiro de 1882) à segunda edição russa do Manifesto do partido comunista.] (retornar ao texto)

(8) NT: Lehning remete à carta endereçada por Marx ao editor da revista russa Otechestvennye Zapiski (Отечественные записки — “Anais da pátria”), em novembro de 1877. (retornar ao texto)

(9) Posfácio de Engels, de 1894, ao seu artigo “Do social na Rússia”, publicado em 1875 no jornal Volksstaat. (ENGELS. “Nachwort [zu ‘Soziales aus Russland’]”. In. Internationales aus dem Volksstaat(1871‐1875) (Berlim, 1894), p. 47.) O artigo dirigido contra o socialista “blanquista” russo Tkachev, traz o selo de autenticidade das polêmicas à moda de Marx-Engels, uma vez que se propõe combater um dito bakuninista… Às calúnias grosseiras e às falsificações deliberadas que caracterizam o combate de Marx aos detestáveis bakuninistas, este artigo traz sem dúvida alguma a mais cômica das contribuições. O tal “Sr. Tkachev” na verdade não era um partidário de Bakunin e de suas ideias, mas sim seu adversário declarado (para mais detalhes sobre as relações entre blanquismo, marxismo e bakuninismo, vide o capítulo a seguir). Em seu posfácio de 1894, Engels “se corrige” assim: Tkachev não era um bakuninista em sentido estrito [sic!], mas um blanquista. (retornar ao texto)

(10) (NT: Carta de Bakunin a Herzen e Ogarev, de 19 de julho de 1866.) Cf. BAKUNIN, M. Sozial-politischer Briefwechsel mit Alexander Iw. Herzen und Ogarjow. [“Correspondência sócio-política com Alexander Herzen e Ogarjow.”] Stuttgart: Cotta, 1895. Vide também a biografia escrita por Max NETTLAU, Michael Bakunin. Eine Biographie. (The life of Michael Bakounine.) Londres, 1896-1900, Tomo II, capítulo XXX, e NETTLAU. “Bakunin und die russische revolutionäre Bewegung in den Jahren 1868-1873”. [“Bakunin e o movimento revolucionário russo nos anos 1863-1873”] In: Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung. [Arquivos Grünberg] Leipzig: Hirschfeld, 1915, vol. 5, p. 357-422. (retornar ao texto)

(11) MASARYK, op. cit., p. 144. Cf. LAVROV, Piotr. Historischen Briefe. [“Cartas históricas.”] Berlin/Berna: Akademischer Verlag für sociale Wissenschaften, 1901. (retornar ao texto)

(12) Cf. ALPHONS THUNS, P. Geschichte der revolutionären Bewegung in Russland. [“História do movimento revolucionário na Rússia.”] Leipzig: Duncker & Humblot, 1883, p. 71. (retornar ao texto)

(13) AKSELROD, Pavel. Die Entwicklung der sozialrevolutionären Bewegung in Russland. [“O desenvolvimento do movimento social-revolucionário na Rússia.”] Zurich, 1881, p. 12. (Separata extraída dos Anais Richter.) (retornar ao texto)

(14) Cf. AKSELROD, op. cit., p. 27-9 e P. Lavrov, nos Anais de ciência e política sociais, editados por Ritcher (Zurich, 1879), I, p. 297-8. (retornar ao texto)

(15) NT: Transliterações, respectivamente, de Народная воля e Чёрный передел. (retornar ao texto)

(16) Cf. THUN, op. cit., p. 225-32 (“Carta a amigos de outrora”) e AKSERLOD, op. cit., p. 23-4. (retornar ao texto)

(17) STEPNIAK, Das unterirdische Russland. Revolutionäre Porträts und Skizzen aus der Wirklichkeit[“A Rússia subterrânea. Perfis e esboços revolucionários reais”] Berna: Jenni, 1884, p. 18. (retornar ao texto)

(18) Briefe und Auszüge aus Briefen von Joh. Phil. Becker, Jos. Dietzgen, Friedrich Engels, Karl Marx u. A. an F.A. Sorge und Andere [“Cartas e extratos de Becker, Dietzgen, Engels, Marx e outros, para Sorge e outros”] Frankfurt: J. H. W. Dietz Nachf, 1921, p. 172. (NT: Correspondência de Marx a Friedrich Adolph Sorge, de 05 de novembro de 1880. Disponível em inglês em https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/letters/80_11_05.htm https://www.marxists.org/archive/marx/works/1880/letters/80_11_05.htm.) (retornar ao texto)

(19) V. Archiv der Sozialwissenschaft und Sozialpolitik. [“Arquivos de ciência e política sociais”] Tomo 36, p. 823 e Tomo 37, p. 215. (retornar ao texto)

(20) AKSELROD. Die historische Berechtigung der Russischen Sozialdemokratie. [“A justificação histórica da social-democracia russa.”] In: Neue Zeit. Stuttgart, Ano XVI (1897–1898), II, p. 107. (retornar ao texto)

(21) NT: Голос Труда. Voz do Trabalho (retornar ao texto)

(22) KROPOTKIN, P. Der Anarchismus in Russland. [“O anarquismo na Rússia.”] Berlim: Freier Arbeiter-Verlag, 1906, p. 5, 6 e 14. (retornar ao texto)

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Inclusão: 27/05/2020