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Seguindo os passos dos críticos e dos adversários da teoria radical da crise pouco se avança no que respeita ao seu conteúdo. As armas principais deles são outras: não é a refutação dos conteúdos que constitui o ponto forte da sua argumentação, mas sim a retórica denunciatória. Sendo óbvio que a polémica visa atingir os destinatários pessoalmente, e em muitos casos com golpes baixos, ela tem de ser bem apontada. O que exige uma observação penetrante. Este critério aplica-se inteiramente sobretudo quando se gostaria de inquirir a psique pretensamente debilitada do adversário, procedendo-se como que imaginando-se no lugar dele. Neste aspecto, os habituais críticos de esquerda da teoria radical da crise apresentam-se muito paternalistas: eles supõem subjacente a toda a abordagem, incluindo o seu conteúdo analítico, um trabalho de compensação psiquicamente condicionado.
Michael Heinrich é inultrapassável neste empreendimento de olhar bem no fundo do seu coração abatido os representantes desta teoria supostamente abalados por uma crise sobre o sentido da vida: “Encontramos em Kurz a variante modernizada de uma significativa filosofia da história sem a qual aparentemente não conseguem passar pelo menos em grande parte aqueles que exercem uma crítica fundamental da situação vigente: a própria impotência é relativizada pela certeza de que pelo menos também os adversários superiores não terão longa vida e ao menos isso é uma certeza segura” (Heinruch, 2000, 41). O que não passa de um truque engraçado para mudar o terreno da argumentação, de modo a ficar sempre por cima, independentemente da capacidade de fundamentação.
Vista mais de perto esta exposição do estado mental mergulha obviamente numa estranha penumbra. Pois ou Heinrich assume que “grande parte” daqueles que “exercem uma crítica fundamental da situação vigente” simplesmente tem de se assustar com irrefutável necessidade perante o superpoder do adversário, precisando por isso de muletas psíquicas — podendo ele, por sua vez, ter este ponto de vista apenas porque no fundo não pertence aos críticos fundamentais nem precisa por isso de quaisquer psicofármacos teóricos, mas pode, pelo contrário, estudar num objecto exterior como o nosso a necessidade viciante da “filosofia da história”(1). Ou então, e esta seria uma variante mais engraçada, Heinrich pertence de facto aos críticos fundamentais, mas àquela pequena minoria de uma espécie de elite oxfordiana desta crítica que está de tal modo cheia de saúde mental e de força do ego que consegue olhar nos olhos o adversário, apesar do seu superpoder, sem o auxílio de substância dopante.
Em qualquer dos casos Heinrich está a ser, pelo menos no seu mundo imaginário, um veterinário de almas que de vez em quando deita no divã os teóricos e teóricas do colapso. E os observadores deste teatro retórico, segundo os seus cálculos, naturalmente hão-de fazer que sim com a cabeça, quando o senhor da bata branca dirigir as perguntas ao paciente e (piscando o olho ao público) com grande caridade fizer como se levasse a sério as suas histórias; sendo que tanto ele como o público sabem que um limite interno absoluto do capitalismo existe tanto como o monstro de Loch Ness. A terceira possibilidade, nomeadamente que a interpretação psíquica “clínica” da teoria radical da crise é uma mera manobra de diversão e que toda essa atribuição não passa de psicologismo para pobres, isso é que Heinrich e os seus jeitosos pupilos não querem de modo nenhum admitir.
Naturalmente que os argumentistas da tertúlia de esquerda, que berram aos quatro ventos de modo meramente associativo, não em último lugar na blogosfera, para os quais a discussão do conceito de crise de Marx é um livro fechado a sete chaves, gostariam de se sentir adulados na sua pretensa firmeza pessoal de um “anticapitalismo” oco e de pertencer em todo o caso à elite oxfordiana da crítica; e assim a pichelaria de almas de Heinrich para a teoria radical da crise cai em terreno fértil, justamente porque essa gente não se quer envolver em questões de conteúdo com tal teoria. O que já significaria ser preciso assumir pessoalmente o esforço de uma leitura concentrada, e a questão não pode ser levada tão a sério. A interpretação psicologista serve justamente para se poder sentir por cima dos “teóricos do colapso” sem o esforço do conceito nem a fundamentação desagradavelmente obrigatória.
Consegue-se assim ignorar com à-vontade que o psicologismo da questão das motivações não adianta nada para saber se uma teoria é certa ou errada dentro da sua condicionalidade histórica. Já Marx teve de ser repetidamente “refutado” através da recondução da sua teoria a motivações pessoais nada limpas.(2) De resto, não admira que nos tempos pós-modernos tal apoio da opinião pejorativa sobre conteúdos teóricos tenha boa saída. O relativismo da ideologia da circulação dá-se bem com a revitalização do assédio psicologista; pois na economia neoclássica as preferências subjectivas dos participantes no mercado também são consideradas como decisivamente constitutivas da relação social e a economia possivelmente deve ser “até 90 por cento de psicologia”. Numa época de redução virtual do mercado à psicologia, que actualmente caminha para a ruína, este pensamento também tinge o discurso de esquerda, tornando-se meio de luta. Teríamos de ter uma nova “teoria do colapso”, simplesmente porque estamos psiquicamente perturbados e de algum modo doentes.
Notas de rodapé:
(1) Note-se de passagem que a atribuição de uma chamada “filosofia da história” passa completamente ao lado da argumentação da elaboração teórica da crítica da dissociação-valor. Esta não tem nada a ver com uma metafísica ideológica da história, segundo o padrão de Hegel ou, por outro lado, do existencialismo, o qual, pelo contrário, é fundamentalmente criticado, na linha da crítica da razão iluminista e dos seus derivados históricos. A teoria radical da crise, em sentido estrito, não se refere a uma “filosofia da história”, mas sim à dinâmica sobrejacente ao processo de acumulação capitalista, ou seja, à história interna deste modo de produção limitado. Todos os argumentos específicos da teoria da crise se referem apenas a isso. Se independentemente disso se levanta a questão de uma “história de relações de fetiche”, limitada ao plano da teoria da história, tão pouco se trata aqui de uma “filosofia da história” de cunho hegeliano, pois também neste sentido é rejeitada qualquer metafísica do progresso ontologicamente vinculada, sendo o fim de uma descontinuidade histórica de “relações de fetiche” determinado de modo puramente negativo (ver sobre isso Kurz 2004). (retornar ao texto)
(2) Toda uma corrente de matadores de Marx se entretém assim a interpretar a crítica da economia política como “racionalização teórica” da disposição psíquica e das falhas de carácter de Marx, situação em que por fim se terá tornado determinante uma “vontade de poder” demoníaca. O jurista e cientista social Konrad Löw apresenta uma versão particularmente tosca que procura explorar neste sentido a história familiar de Marx. Não apenas a conhecida empregada doméstica teria tido de sofrer a “lascívia do patrão” (Low, 1996, 107); Marx teria mostrado também uma “insuperável insensibilidade para com a mulher e os filhos” (ibidem, 144), pois “recusava-se obstinadamente a procurar um ganha-pão apesar da mais amarga pobreza” (ibidem). Marx simplesmente não era bom e por isso a sua teoria formulada “autocraticamente” tem de ser fundamentalmente falsa. Entretanto também Helmut Reichelt, como representante da Nova Leitura de Marx, assumiu incursões à psique de Marx, consistindo a sua mais recente pérola em que tudo o que é teoricamente desagradável em Marx deverá ser reconduzido à sua soberba neurótica. Já o jovem Marx falaria com os “gestos do saber absoluto” (Reichelt 2008, 344) e em geral: “por detrás do desprezo de Marx pelos jovens hegelianos, os eternos estudantes que não conseguiam soltar-se da autoridade de Hegel, esconde-se o ódio a si próprio” (ibidem, 351). O Marx perturbado teria escrito sempre contra as suas próprias fantasias de poder: “A aspiração à imortalidade, a ser como os deuses, confunde o sossego através da teoria com o próprio sossego. A teoria é em si mesma a expressão da tentativa infindável de fugir a uma ameaça” (ibidem, 357). O assustar-se perante o próprio estado de saúde psíquico teria então obrigado Marx, no que respeita aos conteúdos, a tudo aquilo que não agrada a Reichelt: “Esta defesa apresenta-se como — filosofia da história” (ibidem), nomeadamente como tentativa de “ligar o pensamento da emancipação radical com a ideia de um ponto culminante da história mundial” (ibidem, 411). Tivesse Marx encontrado em vida um analista tão bom e os seus lapsos não lhe teriam passado despercebidos. Provavelmente a mais tola variante de tal neurotização da reflexão de Marx é a que apresenta o jornalista “crítico” barato de Viena, Franz Schandl, que dissolveu a crítica do valor, por ele antes apresentada superficialmente, em frases de filosofia da vida e de reforma da vida, e que agora simplesmente toma como pretexto para uma “crítica do teórico” (“Kritik des Theoretikers”, Schandl 2008) as pretensas maleitas psicossomáticas ou mesmo doenças do “superpai”. Ninguém contesta que na elaboração teórica, como de resto em tudo, há motivações e propensões psíquicas. A inclusão desta dimensão, porém, tem de partir da crítica teórica estabelecida e uma defesa ou recalcamento psíquicos simplesmente supostos não podem ser transformados imediatamente em argumento de luta, antes de qualquer conteúdo ou de forma completamente independente dele. No caso coloca-se de imediato a questão inversa de saber quem investiga as motivações da motivação e o estado mental do investigador de estados mentais. Se quiséssemos colocar a psique do indivíduo burguês realmente em relação com as afirmações de conteúdo ou simplesmente com a teoria, então os representantes deste tipo de diagnóstico seriam os primeiros que deviam deitar-se no divã. Podemos pelo menos designar as suas motivações quando eles involuntariamente se tornam ingénuos. Dito com mais dureza: quem, por razões de ressentimento, concorrência de opiniões ou garantia da identidade ideológica, pensa em acender o grelhador psicológico deve ser ele próprio aí grelhado. (retornar ao texto)