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O Censo Agropecuário do IBGE informa, com dados precisos, que, apesar de tudo que se disse, a concentração da propriedade da terra, no Brasil, continuou aumentando, entre 1985 e 1995. Falou-se muito em reforma agrária, foram anunciadas medidas "ousadas" e, no entanto, os estabelecimentos com mais de mil hectares passaram, nesse período, de 44,1% para 45,1% do total das áreas rurais. E o número de propriedades caiu de 5.801 milhões para 4.859 milhões.
De onde vem a força dessa tendência à concentração da propriedade da terra entre nós? Como foi que o latifúndio conseguiu fazer prevalecerem seus interesses vitais?
A resposta a essas perguntas pode ser formulada com simplicidade no plano da luta política imediata, porém, para chegar às raízes mais profundas do fenômeno, precisa de investigações históricas ainda mais aprofundadas do que aquelas que já puderam ser feitas.
Num país tão vasto e complexo como o nosso, devemos desconfiar das explicações demasiado simples. As coisas se passam de maneiras diversas em lugares e tempos distintos. E às vezes os acontecimentos situados num mesmo momento e local apresentam um quadro mais contraditório do que se poderia supor.
Márcia Maria Menendes Motta, historiadora, professora da Universidade Federal Fluminense, de assumida inspiração gramsciana, mergulhou no estudo da história econômica da sociedade brasileira do século XIX, concentrou sua atenção na história de como as terras foram sendo apropriadas e se debruçou muito especialmente sobre o que aconteceu na região do vale do Paraíba, no Estado do Rio de Janeiro, no período que vai de 1822 a 1858.
Com o fim do sistema das sesmarias, em 1822, deixou de existir uma legislação específicamente agrária na ex-colônia portuguesa, recém-chegada à independência política. No dia-a-dia, as querelas eram judicialmente resolvidas, em geral, à luz das velhas Ordenações Filipinas. José Bonifácio de Andrada e Silva, o chamado Patriarca da Independência, e o padre Diogo Antonio Feijó, que foi regente durante parte da minoridade de Pedro II, tentaram modificar as normas legais no sentido de evitar, cada um a seu modo, que a política de doação de terras por parte da Coroa continuasse a beneficiar, quase que com absoluta exclusividade, um único grupo social.
Em todo caso, na região e nos anos analisados por Márcia Motta, prevaleciam, em última análise, os interesses dos fazendeiros, "senhores e possuidores". Os mecanismos e procedimentos do poder judicial proporcionavam grandes vantagens à classe dominante no meio rural. As "terras devolutas", que em princípio poderiam vir a ser ocupadas por pequenos lavradores, eram freqüentemente declaradas — com o apoio de testemunhas e funcionários de cartórios — parte de "domínios" já definidos, prolongamentos de terrenos pertencentes aos fazendeiros ricos e poderosos.
No entanto, os processos judiciais deixam entrever — como demonstra a autora de Nas Fronteiras do Poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX, Rio de Janeiro, Vício de Leitura e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, 256 p. — que o universo rural não se reduzia à certeza do poder incontestável dos grandes fazendeiros. As contradições apareciam nas lides e às vezes chegavam a sacudir (ou pareciam poder abalar) o frágil equilíbrio entre o fazendeiro e seus pares, ou mesmo entre o fazendeiro e seus subordinados, dentro e fora da família.
Márcia Motta examina os conflitos sintomáticos que se expressam através de vários processos judiciais e se detém com particular atenção no conflito que se desenvolve entre um grande fazendeiro — Hilário Joaquim de Andrade, o Barão do Piabanha — e alguns de seus agregados e arrendatários, destacando o papel desempenhado por Manoel Pedro, Joaquim Cabral e Francisco Rodrigues, nas tentativas que empreenderam no sentido de ocupar terras legalmente devolutas.
Não faltou resistência à tendência do fortalecimento da concentração. O que faltou, então, foi uma posição mais consequente na Lei de Terras de 1850, redigida por Bernardo Pereira de Vasconcelos e por José Cesário de Miranda Ribeiro. O que faltou foi a caracterização de um direito de propriedade da terra que não pudesse ser transformado, afinal, em preceito legitimador dos privilégios dos fazendeiros ricos.
Mas é possível que o autor desta resenha esteja formulando um juízo demasiado drástico, menos prudente e menos matizado que a cuidadosa (e não obstante valente) análise feita pela combativa autora de Nas Fronteiras do Poder.
Inclusão | 22/04/2015 |