Intelectuais Brasileiros & Marxismo:
Antonio Candido
(N. em 1918)

Leandro Konder

10 de Março de 1990


Fonte: http://www.espacoacademico.com.br - © Copyleft 2001-2008 É livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída. Intelectuais Brasileiros e Marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, p.79-85. Publicado também em O Estado de S. Paulo, 29-12-90.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Aos 72 anos de idade, Antonio Candido alcançou uma situação muito rara na história da nossa cultura. É um crítico literário unanimemente respeitado pelos escritores. É um teórico que inspira a todos – amigos ou inimigos – admiração e reverência. Ninguém lhe contesta a competência. Ninguém põe em dúvida sua integridade.

Em sua obra se reflete o amplo conhecimento que tem do Brasil. De certo modo, sua própria experiência de vida o empurrava na direção de uma absorção da diversidade da nossa sociedade: ele é carioca-mineiro-paulista. Nasceu no Rio (em 1918), foi criado em Minas (fez o ginásio em Poços de Caldas) e se radicou em São Paulo (onde vive desde 1937).

Mas em Antonio Candido o movimento de ampliação do campo de visão, de alargamento dos horizontes, não decorre de fatores externos, da pressão das circunstâncias: resulta, antes, de uma certa vocação dialética para a universalidade. Só quem consegue ter uma certa percepção do conjunto é que pode avaliar a dimensão e a exata significação de cada uma das partes. É preciso evitar que a atenção dada a cada uma das árvores nos impeça de enxergar a floresta.

Antonio Candido cultiva um quadro de referências rico e diferenciado, que leva em conta o que se criou de bom na literatura de todos os países. Ele sabe que o Brasil não existe isolado do mundo e o que se passa na cultura brasileira tem a ver, inevitavelmente, com o que acontece em outras culturas nacionais. É absurdo pretender eliminar as “influências estrangeiras”.

Isso não significa, obviamente, que nós devamos ser indulgentes com a “cópia servil” dos modelos importados. Se não houver espírito crítico, não há efetiva assimilação. Empobrecemo-nos, espiritualmente, quando nos limitamos a macaquear o que se faz lá fora. Feita essa ressalva, contudo, não há como aceitarmos a ingenuidade do “nativismo”, que se baseia na valorização artificial de uma essência mítica da brasilidade. O material de que os brasileiros se servem na representação da sua realidade não nasceu com eles, tem uma longa história e depende do intercâmbio ativo que a nossa cultura mantém com as outras.

Antonio Candido é implacável na crítica que faz às ilusões alimentadas pelos brios patrióticos do “nativismo”. Em Formação da literatura brasileira, ele lembra que “a nossa literatura é galho secundário da portuguesa” e que esta, por sua vez, é “arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”.

Dessa perspectiva poderia resultar um pessimismo desanimado, uma autodepreciação paralisadora. Mas o nosso crítico adverte que nós, afinal, precisamos da nossa literatura, que só ela nos pode dar uma certa percepção de nós mesmos, daquilo que nós efetivamente somos e das nossas potencialidades. “Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime.”

Toda literatura inclusive a nossa, é uma “síntese de tendências universalistas e particularistas”. Em toda literatura está presente a fantasia, a imaginação, a “fuga do real”; e, ao mesmo tempo, está presente a realidade histórica determinada em que a criação literária se desenvolve. Daí a riqueza de significações que o texto literário chega a ter.

Um sociólogo pode ler um romance e interpretá-lo como um documento sociológico. Um médico pode analisar os problemas médicos dos personagens. Um psicólogo pode discutir a respeito da natureza das motivações subterrâneas e dos bloqueios que se manifestam no comportamento dos personagens. Todos têm contribuições a trazer para uma compreensão mais completa do texto, porém nenhum deles, de seu ângulo particular, deve tentar “reduzir” a riqueza das significações do texto à sua “leitura”. Por quê? Porque no texto se encontra o resultado de uma invenção, de um movimento criativo que se serve da linguagem, não só para “retratar” a realidade social existente, mas também – e decisivamente – para acrescentar à realidade histórica algo que não existia antes.

Não se pode “reduzir” uma obra de arte às condições da sua gênese, à situação da qual partiu a sua criação; é necessário considerá-la naquilo em que ela mudou o quadro existente. A compreensão da obra não prescinde da consideração dos elementos inicialmente não literários, já que o texto – ao contrário do que pensam os formalistas –, não os anula. Mas os “transfigura”. E o desafio do crítico consiste em tentar ir além dos horizontes do sociólogo, do psicólogo ou do médico, para compreender essa “transfiguração” de que a obra é um “resultado”.

Essas constatações não foram feitas de uma hora para outra pelo jovem Antonio Candido. O moço que, desde 1941, passou a fazer crítica literária na revista Clima (e em seguida na Folha da Manhã) era – segundo avaliação feita por ele mesmo na maturidade – “meio sectário”. Isto é: se concentrava um pouco demais no exame da dimensão político-social da literatura e sublinhava com uma ênfase talvez excessiva sua inserção nas lutas históricas mais imediatas dos homens.

Lendo a coletânea de ensaios de 1945 (Brigada ligeira) e a tese de livre docência O método crítico de Sílvio Romero (publicada em livro também em 1945), tive a impressão de que essa autocrítica é, possivelmente, exagerada: não enxerguei sectarismo algum.

Em todo caso, os escritos do período que vai de 1942 a 1945 trazem certamente a marca das circunstâncias daquele momento. Antonio Candido, ainda em Poços de Caldas, tinha entrado em contato com anarquistas e socialistas; e simpatizara com os ideais deles. Em São Paulo, em 1942, sofreu a influência de um amigo muito especial – Paulo Emílio Salles Gomes – que lhe revelou toda a gravidade das monstruosidades do stalinismo, a profundidade das deformações burocráticas no modelo soviético, mas simultaneamente lhe fez ver como eram instigantes algumas observações de Trotsky e como era estimulante o pensamento do jovem Marx.

Antonio Candido passa, então, a se mover entre dois fogos, sob a pressão tanto de uma ideologia liberal “moderada”, eventualmente “social-democrática”, como de uma ideologia comprometida com a manipulação criada pelo sistema do comunismo leninista. O stalinismo falava grosso: a cúpula dos partidos comunistas se permitia fazer todos os acordos e conchavos que lhe parecessem convenientes, mas se apresentava como detentora do monopólio do genuíno espírito revolucionário e caracterizava como “reformistas” ou “vacilantes” aqueles que não se compunham com a sua liderança. Por outro lado, os liberais e os reformistas aproveitavam o endurecimento da linguagem dos comunistas, o “doutrinarismo” deles, para sabotar os esforços daqueles que buscavam uma “terceira via”, um caminho revolucionário independente. Diziam-lhes, com pragmático descaramento: “se vocês não ficarem conosco, estarão levando água para o moinho dos fanáticos, dos agentes de Moscou. Se não nos apoiarem, estarão agindo como teleguiados do Kremlin; estarão sendo usados por Stálin como inocentes úteis”.

Como alguém poderia caminhar sem vacilações por uma estrada tão nova, por uma trilha tão despovoada? Como poderia avançar com firmeza se sentindo posto sob tanta suspeita?

Antonio Candido conseguiu preservar sua inteireza, sua lucidez e – o que era especialmente difícil – sua posição democrática e socialista. E o socialismo, tal como ele o concebia, não devia impor critérios estreitamente utilitários à arte e à cultura.

A procura de uma combinação de socialismo e qualidade literária leva o nosso crítico à obra de um excelente romancista brasileiro de notórias convicções socialistas: Graciliano Ramos. Em Ficção e confissão, livro de 1956, ele se debruçou sobre os romances de Graciliano, seus contos e sua memorialística (as recordações da infância e da cadeia). E mostrou que o intenso desejo de “testemunhar sobre o homem” levou o escritor a passar da ficção para o depoimento direto. Mostrou mais: que a caracterização áspera do mundo como uma prisão, que se encontra nos romances, cedeu lugar à descoberta de um mundo (rico de humanidade) dentro da prisão.

Mas Antonio Candido jamais poderia se interessar exclusivamente por autores socialistas. Seu interesse pela literatura sempre foi muito vasto, sempre se mostrou disposto a abranger uma gama extremamente diversificada de expressões literárias, desde a poesia popular do mundo caipira (como se percebe em Os parceiros do Rio Bonito, de 1964) até a sofisticação de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, “essa navegação no mar alto, esse jorro de imaginação criadora na linguagem, na composição, no enredo, na psicologia” (como se lê num dos ensaios de Tese e antítese, 1964).

A literatura brasileira deve muito a Antonio Candido. Depois de ter lhe dito as duras verdades da introdução de Formação da literatura brasileira, ele lhe dedicou uma atenção carinhosa que ela, se não sofrer de amnésia, jamais poderá esquecer. Os olhos do crítico se detiveram, pacientemente, nos “doutores versejantes”, nos “maus poetas e letrados pedantes” da sociedade colonial, fazendo observações capazes de nos ajudar a lê-los. Detiveram-se, com maior animação, nos autores da época romântica, no “honrado e fecundo Joaquim Manuel de Macedo”, na “notável possibilidade artística” esboçada na obra de Álvares de Azevedo, no “romance em moto contínuo” de Manuel Antônio de Almeida, em Gonçalves Dias e Castro Alves; e se detiveram com entusiasmo nas perspectivas abertas de Machado de Assis, quando esse autor de gênio tornou clara “a fragilidade do descritivismo e da cor local”.

Os autores do século XX, entre nós, puderam começar a escrever com maior desenvoltura. Depois de 1930, sobretudo, as condições passaram a proporcionar maiores chances para a aventura da criação literária. “Depois de 1930 se esboçou uma mentalidade mais democrática a respeito da cultura, que começou a ser vista, pelo menos em tese, como direito de todos, contrastando com a visão de tipo aristocrático que sempre havia predominado no Brasil, com uma tranqüilidade de consciência que não perturbava a paz de espírito de quase ninguém. Para esta visão tradicional, as formas elevadas de cultura erudita eram destinadas apenas às elites, como equipamento (que se transformava em direito) para a ‘missão’ que lhes competia, em lugar do povo e em seu nome”. Esse trecho se encontra num dos ensaios do livro A educação pela noite (lançado em 1987 pela Editora Ática).

A análise da literatura se entrosa com a observação crítica das transformações da sociedade. O crítico “sente a pulsação da obra” (como diz um verso do poema que Drummond dedicou a Antonio Candido) e, ao mesmo tempo, escrutina o contexto, se desdobra num historiador para melhor compreender a situação da qual a obra emerge.

O crítico se insurge contras as condições sociais humanas. Ele não é neutro, nem pretende sê-lo: tem um compromisso natural contra os exploradores e com os explorados. Outro verso de Carlos Drummond de Andrade descreve a opção de Antonio Candido, “fugindo ao séqüito dos poderosos do mundo, / acusa a transfiguração do homem em servil objeto do homem”.

A própria atividade da crítica literária, assim, remete à política. Antonio Candido declara, com sua habitual franqueza, com sua estupenda sinceridade: “Não tenho vocação política. Para mim, a participação foi sempre um dever moral” (entrevista concedida a Eder Sader e Eugênio Bucci, publicada na revista Teoria e Debate, nº 2).

Um dever moral que, assumido com desassombro, levou o crítico a ingressar no Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação. Numa entrevista concedida à Folha de S. Paulo, ele justificou, com perfeita coerência, sua opção: “Acho que o PT corresponde a uma tentativa de socialismo democrático, desta vez partindo dos próprios operários, o que é uma coisa totalmente nova no Brasil. Acho que no PT existe a possibilidade de um socialismo democrático combativo, não de um mero reformismo, por causa da sua base operária e da sua alta consciência sindical” (10-8-1980).

O engajamento político e a militância no PT correspondem às exigências de “dever moral” e “completam” o sentido das posições assumidas no plano da crítica literária. Mas não dispensam o crítico de nenhum das suas obrigações nascidas da dedicação à literatura. A literatura continua cobrando dele um constante respeito por seus matizes, por suas fascinantes complicações. O amor à literatura, transformado em destino, exclui simplificações utilitárias e imediatismos pragmáticos (mesmo em nome de uma boa causa).

Há dez anos, numa homenagem feita a Antonio Candido, o historiador mineiro Francisco Iglesias lembrava uma idéia que se acha no romance L’espoir, de André Malraux, segundo a qual existiria uma incompatibilidade entre o intelectual (homem dos matizes, da complexidade e do antimaniqueísmo) e o político, especialmente o político revolucionário (inevitavelmente maniqueísta, em função das premências da ação). Pois eu gostaria de concluir estas linhas com a expressão da minha convicção de que Antonio Candido é um desmentido à tese de Malraux.

Na medida em que se sentia eticamente obrigado a fazer política porém ao mesmo tempo permanecia fiel à sua vocação de crítico literário (“não tenho vocação política”), Antonio Candido foi capaz de mergulhar na ação sem ser levado pelo rio da militância. Foi capaz de participar da luta sem ceder à pressão dos esquematismos maniqueístas e sem abrir mão da sua preocupação pessoal com os matizes e a complexidade. E essas características fazem dele, realmente, um caso muito raro, não só na vida cultural brasileira, mas na história da cultura do século XX, em geral.

Em Antonio Candido se combinam, de um lado, a coerência do engajamento, a firmeza da posição assumida pelo combatente, e, de outro, a prudência da reflexão, a abertura espiritual do crítico literário, acostumado a conviver com as infinitas possibilidades de expressão dos seres humanos (diante das quais a verdadeira sabedoria se torna necessariamente humilde e assume a forma – preconizada por Nicolau de Cusa – da “douta ignorância”).


Inclusão 14/07/2019