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2 - Abaixo da Linha de Miséria
Sendo tão grande o atraso da agricultura portuguesa, como se acaba de ver, existindo um tão grande défice de produtos agrícolas e subsidiários da agricultura, sendo tão baixos os rendimentos unitários, diminuindo as capitações da produção e do consumo, o nível de vida dos trabalhadores do campo não pode deixar de ser extremamente baixo e tender a baixar mais.
Entretanto, manifestando-se, claramente, um aperfeiçoamento da técnica agrícola, onde sobressai a utilização de máquinas e processos mais eficientes e rendosos de cultivo e de tratamento industrial dos produtos agrícolas, não contribuirá esta evolução para melhorar a situação dos trabalhadores do campo?
Não, isso não acontece. As dificuldades da vida dos trabalhadores do campo devem-se tanto ao atraso como ao progresso da agricultura. Elas estão ligadas de modo geral ao atraso da agricultura, mas estão ligadas de modo particular e directo ao seu progresso.
"Somos atormentados - escreveu Marx - não só pelo desenvolvimento da produção capitalista, como também pela falta desse desenvolvimento; ao lado dos males modernos, oprimem-nos muitos males herdados, provenientes da sobrevivência de métodos de produção antigos e antiquados, com o seu cortejo de condições políticas e sociais anacrónicas. Sofremos não só o que vive, mas também o que morreu."(1)
Só compreendendo assim a evolução do capitalismo podemos compreender as causas da miséria nos campos, o seu significado e as suas reais soluções. E só assim também compreendemos porque se acusa o capitalismo quando não desenvolve as forças produtivas e se acusa igualmente quando as desenvolve. Não se trata da história do velho, do rapaz e do burro. As contradições existem no próprio capitalismo, e não nesta apreciação que dele fazemos.
O processo de desenvolvimento capitalista, com "a apropriação por particulares do produto de trabalho social", com a correspondente polarização dos estratos sociais (detendo uns os meios de produção, dispondo outros da força de trabalho), com a decomposição da classe camponesa e a liquidação da produção individual, na qual o produtor é o proprietário dos meios de produção - provoca um agravamento da situação dos trabalhadores da terra. Esse agravamento é um produto do desenvolvimento do capitalismo, um produto do progresso das forças produtivas materiais na agricultura, na sociedade burguesa.
As relações pré-capitalistas, nos campos, defendem tenazmente as suas posições. Sucede, assim, que, em países já dominados pelo capital, ainda nos campos os trabalhadores sofrem mais a insuficiência que os progressos do desenvolvimento do capitalismo. Mas numa fase mais adiantada do desenvolvimento do capitalismo, o contrário sucede. Hoje em dia, em Portugal, se o povo laborioso dos campos ainda sofre largamente as sobrevivencias do passado ("os males herdados"), sofre principalmente o desenvolvimento do capitalismo ("os males modernos").
A acumulação e o aumento da composição orgânica do capital determinam, por um lado, a maior produtividade do trabalho nas grandes empresas, o seu consequente sucesso na concorrência com os pequenos produtores e as dificuldades acrescidas e apressamento da ruína e da expropriação destes últimos; determinam, por outro lado, a criação de uma população assalariada excessiva em relação às necessidades da produção, uma superpopulação relativa, tomando na agricultura uma forma latente dada a crescente produtividade, a limitação e o monopólio da terra e o constante afluxo ao assalariado dos camponeses arruinados. A superpopulação relativa, além das misérias vividas pelos desempregados, provoca a piora da situação dos que trabalham, pois permite se pague a mão-de-obra a mais baixo preço e se exerçam pressões com a ameaça do desemprego. As dificuldades dos trabalhadores da terra (assalariados e pequenos produtores) aumentam, assim, na medida em que é vencido o atraso na agricultura, na medida em que se acentuam os progressos do capitalismo, na medida em que é maior a produtividade do trabalho e se produz mais riqueza.
É, pois, completamente falso que o progresso técnico e o aumento da produtividade e da produção provoquem, na economia capitalista, um melhoramento da situação dos trabalhadores rurais. A história de que cada qual recebe uma mais grossa fatia quanto maior é o "bolo comum" a partilhar, apesar de toda a sua lógica superficial, não tem o mínimo fundamento de verdade. Quando os reaccionários afirmam que, "aumentando a riqueza geral, prosseguimos simultaneamente uma obra de melhoria e elevação individual e colectiva"(2), e quando insistem na necessidade de aumentar a riqueza "para que a todos caiba maior quinhão"(3), e quando dizem deverem as energias ser "consagradas acima de tudo a aumentar as dimensões do bolo que há-de ser dividido em vez de serem dissipadas em questiúnculas sobre que porção do presente bolo cada qual há-de receber"(4), oculta-se o aspecto fundamental do problema: que a repartição está dependente das relações de produção. Porque, nesta história da repartição do bolo, quando o bolo aumenta a espessura das grossas fatias, mais se agrava a estreiteza das finas.
Contra a opinião reformista, segundo a qual o progresso do capitalismo conduz à progressiva atenuação das desigualdades, à "crescente aproximação das condições dos homens" com a distribuição "mais por igual" da riqueza(5), é precisamente o invés que, com toda a evidência, as realidades dos nossos dias nos revelam. A pauperização relativa (assim como a absoluta) é lei do capitalismo, conforme esclareceu Lénine(6). O mesmo nos ensina a História. O aumento da produção pelo capitalismo foi possível através da concentração dos "dispersos e mesquinhos meios de produção", que tais eram os produtores individuais da economia feudal. A história dessa concentração é, porém, uma longa e terrível história. Em Portugal, encontramos as suas primeiras fases nos séculos XII a XIV, em plena sociedade feudal, quando os proprietários vilãos, ao mesmo tempo que acolhem e libertam os servos, reduzem camponeses livres ao trabalho assalariado. E, ainda hoje, um século passado sobre a instauração do Estado burguês, essa história vive a sua última fase com a derrota dos pequenos produtores pela grande produção capitalista. A dissociação do produtor e dos meios de produção é um processo específico do capitalismo e a ele se deve a instituição da grande empresa moderna, equipada com alta técnica e possuidora de maior produtividade. Essa dissociação foi historicamente necessária como via para o novo e gigantesco impulso às forças produtivas. Mas, desde o alvorecer do processo até aos dias de hoje, cada novo passo no desenvolvimento da produção - acumulação primitiva, cooperação simples, manufactura, maquinismo, etc. - exigiu novos sacrifícios dos trabalhadores: cada impulso para o aumento da riqueza foi acompanhado pelo aumento da pobreza. Conforme ensinaram Marx e Engels, tanto no capitalismo como era qualquer dos sistemas que o antecederam, "cada progresso na produção significou ao mesmo tempo um retrocesso [...] para a maioria da população".
Não é tanto ao atraso como aos progressos técnicos da agricultura que se deve atribuir o cada, vez mais baixo nível de vida dos assalariados rurais e pequenos agricultores. As máquinas, os mais rendosos processos de cultura, a industrialização de actividades que eram especificamente agrícolas antes do capitalismo, aumentam a produtividade do trabalho e a produção. Mas, na economia capitalista, provocando directamente a superpopulação relativa e a ruína dos pequenos produtores, empobrecem necessariamente os trabalhadores da terra.
Marx ensinou que a:
"transformação capitalista da produção parece ser apenas o martirológio do produtor, o meio de trabalho apenas o meio de dominar, de explorar e de empobrecer o trabalhador", e insistiu em que "na agricultura moderna tal como na indústria, o aumento da produtividade e o superior rendimento do trabalho compram-se ao preço da destruição e do esgotamento da força de trabalho"(7).
Especialmente no que se refere à introdução das máquinas, Marx sublinhou como, em consequência dela, "o operário, como uma nota fora de circulação, deixa de ter curso". Que a introdução das máquinas seja lenta ou súbita não evita tal consequência.
"Onde a marcha conquistadora da máquina progride lentamente - escreveu Marx - aflige com a miséria crónica as filas operárias forçadas a fazer-lhe concorrência; onde é rápida, a miséria torna-se aguda e faz terríveis estragos"(8).
Do progresso técnico na agricultura e do aumento da produtividade não resulta a melhoria da situação das classes laboriosas dos campos, mas, sim, o aumento das dificuldades e miséria.
Era relação aos assalariados, que vemos como resultado do desenvolvimento técnico e do aumento da produtividade? Um "maior quinhão" para cada qual? A "melhoria e elevação" dos trabalhadores? Não, isso não se verifica. O que se verifica é a progressiva baixa de preço da força de trabalho.
Sendo o valor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção, ele é afinal o tempo de trabalho socialmente necessário à produção dos meios de subsistência do trabalhador. Se a força de trabalho fosse comprada pelo valor, então o seu preço, o salário, deveria permitir a restauração e reprodução da força de trabalho, deveria bastar para "produzir, desenvolver, conservar e perpetuar a força de trabalho"(9), ou seja: assegurar o alimento necessário ao trabalhador e sua família e as demais condições de vida essenciais para a manutenção da capacidade de trabalho durante o tempo de vida média normal e sua reprodução. Mas isso não se dá. A evolução do capitalismo determina a tendência para que a força de trabalho seja paga abaixo, cada vez mais abaixo, do seu valor, isto é, a tendência para a descida dos salários reais.
De 1914 para 1927, os salários reais baixaram 12%, pois que sendo em 1927 os salários médios nominais 21,8 vezes superiores aos de 1914, os preços de retalho eram 24,5 vezes superiores(10). A baixa continuou e atingiu mais 13% de 1927 a 1934, pois, sendo os salários médios dos operários agrícolas 9$43 em 1927, baixaram para 7$70 em 1934(11), ou seja, uma quebra de 18% nos salários nominais, ao mesmo tempo que o índice dos preços dos produtos alimentares tinha, no mesmo período, apenas uma baixa de 6%(12). De 1939 para 1946, nova e importante baixa de 8% se verificou, pois que o custo de vida aumentou 99%, enquanto os salários nominais médios aumentaram apenas 86%(13). Vê-se que, de 1914 a 1946, não têm cessado de diminuir os salários reais, podendo estimar-se a diminuição total em cerca de 30%. Em 1946, os assalariados ganhavam em média apenas um pouco mais de dois terços do que ganhavam em 1914. A criação de riqueza e o aumento da produtividade do trabalho, nestes trinta e dois anos, têm sido acompanhados por constante agravamento da situação dos trabalhadores.
A força de trabalho é uma mercadoria com a característica particular de criar valor ao ser consumida no processo de produção. O valor da força de trabalho é, porém, inferior ao valor por ela criado. Numa parte da jornada de trabalho, ela cria o seu próprio valor; noutra parte, a mais-valia.
Em resultado do aumento da produtividade, diminui cada vez mais, na jornada de trabalho, o tempo de trabalho necessário para produzir o que assegure a reprodução da força de trabalho e aumenta cada vez mais o tempo de trabalho suplementar, isto é, aquele que, na jornada de trabalho, excede o tempo necessário. Como o tempo necessário corresponde às fatias finas e o suplementar às fatias grossas, novamente se mostra o infundado da historieta da partilha do bolo e novamente se mostra como se estreitam cada vez mais as fatias finas, enquanto engrossam as grossas fatias.
Os números que se acabam de indicar, como todos os números usualmente apresentados acerca de salários e custo de vida, estão, todavia, muito longe de traduzir a real evolução dos salários reais dada a forma viciada do cálculo. Além da mais que discutível base estatística em que se apoiam e da forma defeituosa na estimativa do custo de vida, os economistas burgueses não consideram o tempo de desemprego no cálculo dos salários médios. Se tal fosse considerado, verificar-se-ia que a diminuição registada dos salários reais nos trinta e dois anos referidos teria sido incomparavelmente mais importante.
O desemprego não é fenómeno ocasional. O desemprego latente nos campos é produto directo e inevitável do desenvolvimento do capitalismo e atinge tanto os pequenos produtores arruinados, os semiproletários, como os assalariados rurais.
O aumento da produtividade, em geral, e o emprego de máquinas, em particular, determinam necessariamente a dispensa de mão-de-obra assalariada. "A tendência para deslocar o trabalhador - escreveu Marx - mostra-se na agricultura com muito mais intensidade do que na indústria." Só nas regiões de pequena propriedade e temporariamente o emprego de máquinas pode provocar a procura de assalariados. No prosseguimento da evolução do capitalismo, tanto nas regiões de grande, como nas de pequena propriedade, as máquinas e o progresso técnico provocam o desemprego. Como, por outro lado, ano a ano e dia a dia, os pequenos agricultores arruinados engrossam as fileiras do proletariado rural, a superpopulação relativa aumenta incessantemente nos campos.
Quando se atribui a superpopulação nos campos a razões técnicas, removíveis no plano técnico, como a monocultura, por exemplo; ou a circunstâncias acidentais ou temporárias, como "a crise e a diminuição da emigração", além da ... "falta de utilização de toda a mão-de-obra disponível"(14) - pasmai desta inteligentíssima descoberta! - nada de fundamental se explica. E quando, com declarados fins humanitários, se reclama a fixação do máximo de dias de trabalho dos assalariados rurais, que prefeririam lhes fosse assegurado um mínimo; ou quando, na sociedade burguesa, se introduz, na Constituição, "o direito ao trabalho", em vez da assistência ao desemprego; esconde-se a realidade por detrás de reclamações e garantias irrisórias, espectaculares e demagógicas. Esta é a verdade: existe uma superpopulação latente nos campos e a sua causa reside no próprio capitalismo e no seu desenvolvimento.
A importância e o carácter latente da superpopulação nos campos são, apesar de todos os preconceitos de classe, comummente reconhecidos pelos observadores: reconhecem eles "as crises periódicas de desemprego" ou falando de "três ou quatro meses de desemprego rural que nenhuma estatística revelou ainda"(15); ou referindo que "a maior parte dos trabalhadores não tem garantidos mais do que seis meses de trabalho e são numerosos os que nem este tempo conseguem"(16); ou citando casos em que é normal haver 10 meses de desemprego(17); ou monografando famílias de assalariados com apenas 70, 80 e 90 dias de trabalho num ano inteiro(18). Razão tinha um especialista para sintetizar inquéritos, estudos directos e monografias, dizendo que o assalariado rural, "na maioria dos casos, é um desempregado temporário"(19).
Calcular os salários reais sem ter em conta a superpopulação relativa conduz, pois, necessariamente a resultados incorrectos. Se, por exemplo, em fins de 1933, havia 35.000 desempregados registados e, em fins de 1938, 108.000(20), embora os salários nominais e os preços se tenham mantido sem sensível afectação, é evidente ter havido uma quebra nos salários reais.
Mas outros aspectos têm de ser levados em conta para se formar uma ideia exacta da efectiva evolução dos salários reais e da efectiva pauperização dos trabalhadores do campo. Se a jornada de trabalho sobe a uma média superior a 9 horas, atingindo em metade do ano mais de 10 horas e sendo vulgares os casos em que atinge 12 e mais horas; se não se cumprem horas de ferra e desferra; se se força a intensidade do trabalho; se, nas empreitadas, particularmente nas ceifas e surribas, os trabalhadores cansam o organismo em esforços brutais e abreviam, assim, o tempo de vida; se a mulher, mãe de família e assalariada, é obrigada, além da estafante jornada de trabalho, a cuidar das refeições, da roupa, da casa, dos filhos; se grassam as doenças por insuficiência alimentar e más condições sanitárias; se dada a escassa e má alimentação, a falta de agasalho e calçado, a falta de conforto e higiene, a mortalidade infantil em Portugal é a mais alta da Europa, não alcançando os 5 anos numa criança em cada seis que nascem; se, pela falta de protecção, sobe a dezenas de milhares o número de trabalhadores atacados de malária observados nos postos anti-sezonáticos; se os trabalhadores rurais, ao chegar à velhice, têm de recorrer à mendicidade - é forçoso reconhecer-se que todos estes aspectos devem ser atendidos ao calcular-se o preço da força de trabalho e a real pauperização.
E, apesar de haver quem insinue que a diferença de instrução e de cultura, entre as várias classes sociais, provém de diferenças natas, uma vez que a capacidade craniana de homens cultos sobe a 1.600 e mais centímetros cúbicos, enquanto a dos camponeses fica apenas ern 1.570 (?!)(21), deve ver-se nos 70%, 80% e 90% de analfabetos, que é frequente encontrarem-se nas populações rurais, não um resultado do acanhamento da caixa craniana que inventam os "teóricos" burgueses, mas um aspecto mais e um índice mais do baixíssimo nível da sua vida.
Ninguém, que tenha olhado com um mínimo de atenção e seriedade a situação dos trabalhadores do campo, pode negar a miséria, o desemprego, as doenças, a alta mortalidade infantil, o analfabetismo. "O trabalhador rural e o pequeno proprietário - escreve pessoa insuspeita de má vontade contra o capitalismo - passam vida abaixo de má."(22) Os assalariados - escreve outro - "só têm para atenuar um pouco a grandeza da sua miséria os melhores salários que auferem em épocas de aperto de trabalho, como a das ceifas, à custa de um esforço extenuante"(23). Famílias de assalariados - escreve outro - "com facilidade degeneram em casos de extrema miséria", "tendo como efeito a desagregação familiar, a transformação de trabalhadores em mendigos válidos"(24).
Sendo tão profundamente trágica a situação dos trabalhadores do campo, como se acaba de ver e melhor se verá nas páginas seguintes, pode, com segurança, desmentir-se que o aumento da riqueza e da produtividade do trabalho, levado a cabo pelo capitalismo, tenha provocado ou possa provocar o aumento do bem-estar dos trabalhadores rurais. Mais de um século de desenvolvimento das forças produtivas no Estado burguês, oferece-nos, na própria situação dos trabalhadores do campo, a clara prova de que o empobrecimento absoluto dos trabalhadores é lei do capitalismo, de que, na sociedade burguesa, o aumento da riqueza e da produtividade do trabalho é acompanhado pelo aumento da miséria.
Quando levada a um grau extremo, a pauperização, diminuindo a capacidade de trabalho e pondo em perigo a reprodução da força de trabalho, compromete a continuidade da produção. Daí preocupações e investigações da burguesia e dos seus estadistas, economistas, higienistas e técnicos. Daí estudarem a situação alimentar, fixarem as despesas mínimas que podem permitir às famílias de trabalhadores "manterem as suas condições de saúde e de capacidade de trabalho", organizarem "dietas satisfatórias" - ou seja, em resumo, estabelecerem as rações adequadas à conservação e reprodução de uma mercadoria indispensável no processo de produção. Apesar de ser claro o fim dessas investigações e estudos, isto não impede que se forneçam elementos de valioso interesse. Além do mais, entre os investigadores e estudiosos não faltam homens honrados, desejando para as classes laboriosas uma situação mais desafogada.
Quando os recursos são escassos, a alimentação absorve a maior parte. A correspondência entre o baixo nível de vida e as altas percentagens dos recursos absorvidos pela alimentação, embora não se possa reduzir a uma "lei" de rigor matemático (como já se tem pretendido), é de toda a evidência, seja em que país for. Por isso se fazem comparações entre as percentagens respeitantes à alimentação nos orçamentos familiares dos trabalhadores de vários países e se considera existir um mais baixo nível de vida onde essas percentagens são mais elevadas.
No confronto com outros países, Portugal ocupa posição ao fundo da escala. O Prof. Lima Basto verificou que a percentagem das despesas anuais de uma família operária, feitas com a alimentação, subia, em Portugal, a 70%, enquanto em 9 de 16 países estudados não chegava a 50%, em 4 ficava compreendida entre 50% e 60% e em 2 entre 60% e 70%. Apenas na antiga China subia a 72%, percentagem esta que o Bureau Internacional do Trabalho considerava "extraordinária"(25). A percentagem das despesas com a alimentação dos operários portugueses era então a mais alta da Europa(26).
Além disso, o regime alimentar, com o baixo consumo de carne, peixe e lacticínios, é um regime caracteristicamente pobre. "Em Portugal - escrevia ainda o mesmo autor -, a maior parte dos rendimentos é absorvida pela alimentação e esta é constituída por um número reduzido de produtos e baseada essencialmente nos cereais."(27) "O equilíbrio orçamental do nosso trabalhador - escreveu dez anos mais tarde outro autor, que confessa, aliás, fa-zê-lo para "se pôr à vontade" no "cometimento de fazer quase o elogio dos ricos" - só pode conseguir--se à custa de uma alimentação deficiente (escassa e pouco variada) e da supressão quase completa das restantes despesas."(28)
Segundo os mais categorizados higienistas, sempre que a cota das despesas com a alimentação passa de 52%, está-se abaixo da "linha de miséria", linha esta "abaixo da qual nenhuma classe de trabalhadores deveria ser forçada a viver"(29). Vê-se a que enorme distância do mínimo essencial à vida estão os operários portugueses.
Se a situação dos operários assim se caracteriza, a situação dos trabalhadores do campo é particularmente angustiosa. Socorrendo-nos das monografias de 45 famílias de assalariados rurais e pequenos agricultores dispersas em vários trabalhos(30) e respeitantes a várias regiões do País, encontramos as seguintes percentagens de despesas com a alimentação: num total de 12 famílias de assalariados, em 6 as percentagens ficam compreendidas entre 60% e 70%; em 5, entre 70% e 80% e, em 1, ultrapassam 80%; num total de 16 famílias de semiproletários (pequenos agricultores vendendo a força de trabalho), em 3 ficam compreendidas entre 60% e 70%; em 5, entre 70% e 80% e, em 8, entre 80% e 90%; e num total de 17 famílias de pequenos produtores (proprietários e rendeiros) em 4 ficam compreendidas entre 60% e 70% ; em 10, entre 70% e 80% (das quais 7 com mais de 75%) e, em 3, entre 80% e 90%.
É de notar que, com frequência, o cálculo das percentagens é feito de forma incorrecta, aparecendo a situação extremamente favorecida. No "Inquérito à Habitação Rural" incluem-se (em alguns casos pelo menos), nas despesas de família... as despesas da exploração agrícola. Assim, por exemplo, as despesas com a alimentação de um pequeno proprietário monografado, que subiam realmente a 78%, são apresentadas no "Inquérito" como sendo apenas de 57%(31). Não utilizámos cálculos desta natureza sempre que os pudemos conferir. Mas, como nem para todas as monografias dispusemos de dados igualmente minuciosos, é de supor que muitas das percentagens careciam de rectificação.
Apesar das possíveis inexactidões no cálculo, as apontadas elevadíssimas percentagens das despesas com a alimentação mostram já por si a situação aflitiva dos trabalhadores do campo. Na verdade, quando um chefe de família luta "para manter todos os seus sem os deixar morrer de fome", "esta preocupação não o deixa gastar a menor quantia em produtos não alimentares, a não ser em casos de absoluta necessidade"(32). Estas palavras são ditas em referência a um assalariado com o raro privilégio de ter trabalho assegurado durante todo o ano. Com mais forte razão, elas são válidas em relação ao comum dos assalariados e pequenos agricultores.
Está-se abaixo, muito abaixo, da "linha de miséria", "abaixo da qual nenhuma classe de trabalhadores deveria ser forçada a viver".
Se, em vez das percentagens de despesas com alimentação, se considerar o mínimo alimentar necessário (o chamado "cabaz de compras") e o número de "cabazes" que as famílias de trabalhadores conseguiriam comprar, se a isso aplicassem todos os seus recursos, a conclusão é idêntica. Calculado em 8$19 para 1946 o preço da alimentação diária (segundo o "cabaz das compras" internacional), em 112 famílias de assalariados rurais e pequenos agricultores monografadas pelos finalistas do curso superior de Agronomia nenhuma atingia tal despesa. A média dos pequenos proprietários nortenhos era de 4$92; a dos assalariados, 3$00; muitos havia que não chegaram aos 2$00(33). Segundo tais cálculos, os mais favorecidos comiam pouco mais de metade do considerado mínimo indispensável; e os últimos citados, nem sequer um quarto desse mínimo. Se se considerar o número de calorias tido como mínimo indispensável à vida e o número obtido nas refeições usuais dos trabalhadores do campo, ainda a mesma conclusão se impõe. Sendo 3.200 calorias o bastante para um homem normal com um trabalho muscular moderado, a média num país tem de ser muito superior para significar que os trabalhadores alcançam tal número de calorias. Entretanto, a média em Portugal, por "unidade de consumo", foi, segundo opiniões optimistas, de 3.300 no decénio 1927-1936 e 3.127 no decénio 1937-1946(34). Se repararmos que, não só a média geral é inferior ao mínimo no último decénio citado, como há muito quem se guie pela ideia de que um almoço com filetes de pescada e arroz de marisco, mais bife com batatas fritas, mais fruta, pudim e café "não exerce qualquer atracção sobre o apetite",(35) fácil é de supor a insuficiência das calorias contidas nas refeições dos trabalhadores.
De facto, na sua generalidade, os trabalhadores rurais não têm as 3.200 calorias, nem nada que disso se aproxime. Estudos regionais têm mostrado ser comum a alimentação não alcançar metade do mínimo bastante. No Douro, por exemplo, reconhecesse que os trabalhadores vivem com 1.300 e 1.500 calorias(36). E, quando sobretudo à base de pão de milho, é obtido o número de calorias considerado mínimo indispensável, a alimentação é tão desequilibrada que as perturbações na saúde atingem excepcional gravidade. Com tal regime alimentar, não só o trabalho se torna mais penoso como se abrevia o tempo de vida.
A situação é má e tende a piorar. Acabamos de ver como, segundo voz autorizada, a média de calorias em Portugal por "unidade de consumo", teria baixado das já insuficientes 3.300 em 1927-1936 para 3.127 em 1937-1946, apesar de, nestes números, estar incluído o vinho e a este terem cabido respectivamente 201 e 254 calorias. Tudo confirma este agravamento da situação alimentar. O pão "é o principal alimento com que é enganada a fome da família"(37), as famílias de trabalhadores rurais gastam geralmente mais em pão do que em todos os outros alimentos; casos se registam em que as despesas com o pão são cinco vezes superiores às despesas com toda a restante alimentação somadas às de combustível(38), e entretanto o consumo de cereais panificáveis (trigo, centeio e milho) passou (conforme já foi indicado) da capitação de 152 quilos anuais em 1926-1935 para 132 quilos em 1945-1949. E, embora altos funcionários expliquem, sem prova alguma, que tal decréscimo não significa, "por qualquer forma, diminuição do nível alimentar", mas, pelo contrário, "revela... mais equilibrada a alimentação da população"(39), é impossível acreditar que assim seja, quando diminuíram as capitações do consumo de peixe fresco, de bacalhau, de carne de vaca.
A capitação de consumo de carne bovina, conforme também já se mostrou, passou de 3,8 quilos em 1.926-1935 para 3,5 em 1946-1949, sendo muito discutível o aumento de capitação de outras carnes. A diminuição da capitação de consumo de peixe fresco é acusada pela diminuição da capitação da pesca desembarcada no País, que passou de 23,4 quilos em 1940 para 21,7 em 1950(40). Quanto ao bacalhau, cujo consumo atingiu a média de 48.732 toneladas nos últimos cinco anos antes da guerra(41), desceu para 33.000 toneladas no quinquénio 1940-1944 e "não parece ter aumentado depois da guerra", sendo legítimo atribuir esta diminuição do consumo à "elevação gradual do preço, que o torna cada vez menos acessível às classes mais pobres"(42).
O único produto alimentar de consumo popular em que subiu o consumo foi a batata, com a capitação de 70 quilos em 1926-1935, 83 quilos em 1936-1945 e 105 quilos em 1945-1949. É, porém, sabido como a batata é fraco alimento, sendo ousadia falar numa "mais equilibrada alimentação", quando se come menos pão, menos carne, menos peixe, menos lacticínios, quando se come menos no total, mas se comem mais batatas.
Os economistas e higienistas, que respeitam a verdade, apresentam um quadro bem sombrio da situação alimentar do povo. Têm, então, de reconhecer que os trabalhadores "mal ganham para a ilusão de que comem"(43). Têm de alargar as vistas a outros aspectos da situação e reconhecer nessa miséria a causa de outros e profundos males.
"Ao passo que as classes abastadas - escreveu o Prof. Loureiro - fazem um consumo de carne, peixe, ovos e gorduras, que não só excede as exigências fisiológicas, mas atinge um nível certamente prejudicial ao equilíbrio orgânico, nas classes pobres de certas regiões do País o consumo desses alimentos atinge níveis inverosimilmente baixos." "A grande maioria dos portugueses nunca prova desses alimentos." "A grandíssima maioria das crianças portuguesas nunca bebe leite. Nem o próprio leite desnatado se lhes destina, pois é quase todo gasto em alimentar porcos."
"O higienista não pode dar o seu assentimento a um regime alimentar em grande parte responsável pela elevada mortalidade por certas doenças, em particular a diarreia infantil e as disenterias, que, no ano passado, ceifaram 20.000 portugueses e pela difusão e gravidade da tuberculose, de que morrem, por ano, 15.000 portugueses e de que estão a cada momento sofrendo de formas activas, mais ou menos graves, cerca de 100.000 dentre eles"(44).
Percentagens, calorias, "cabazes de compras", dizeres de especialistas, tudo aqui se cita para não se apresentar apenas o nosso próprio testemunho, directo, parcial e apaixonado (o que poderia provocar incredulidade nos supostos imparciais), antes o testemunho daqueles que estudam a situação portuguesa com parcialidade bem oposta à nossa, mas com um mínimo de respeito pela verdade. Percentagens, calorias, "cabazes de compras", tudo se traduz numa palavra única, que não é metáfora, nem símbolo, mas a realidade diária sofrida pelos trabalhadores do campo: a fome - "a chamada verdadeira fome" conforme dizia o relatório duma Câmara Municipal, falando do seu concelho.
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Notas:
(1) Marx, O Capital, Prefácio à 1.ª edição. (retornar ao texto)
(2) Salazar em 2 de Abril de 1950. (retornar ao texto)
(3) Discurso do ministro das Corporações, Diário de Notícias, 2 de Setembro de 1950. (retornar ao texto)
(4) Paul Hoffman, discurso no XIII Congresso da Câmara de Comércio Internacional, realizado em Lisboa, Diário de Noticias, 13 de Junho de 1951. (retornar ao texto)
(5) Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, 1." ed. Advertência. (retornar ao texto)
(6) Lénine, A Pauperisação na Sociedade Capitalista. (retornar ao texto)
(7) Marx, O Capital, 1. I, cap. XIII, 10. (retornar ao texto)
(8) Idem, ibiclem, 1. I, cap. XIII, 5. (retornar ao texto)
(9) Marx, Salário, Preço e Lucro, 7. (retornar ao texto)
(10) Jorge Alarcão, "Subsídios para o Estudo dos Termos Fundamentais da Economia Portuguesa", Revista ãe Economia, III, 2, Junho de 1950, p. 85. (retornar ao texto)
(11) Lima Basto Níveis ãe Vida e Custo de Vida, anexo VII. (retornar ao texto)
(12) Na base de elementos dos relatórios do Conselho de Administração do Banco de Portugal. (retornar ao texto)
(13) Relatório do Conselho de Administração do Banco <le Portugal, gerência de 1946, p. 23. (retornar ao texto)
(14) Vitória Pires e Paiva Caldeira, Inquérito à Freguesia tíe Sto. Ildefonso, p. 66. (retornar ao texto)
(15) R. Vaz Pinto, A Colonização do Pliocénico, Campo Aberto ã Iniciativa. Particular, J. C. L, Problemas de Colonização, I, p. 76. (retornar ao texto)
(16) Henrique de Barros, Inquérito â Freguesia de Cuba, p. 115. (retornar ao texto)
(17) Idem, Economia Agrária, I, p. 190. (retornar ao texto)
(18) Inquérito à Habitação Rural, exemplos n.OÍ 6 e 23, pp. 122-123 e 327. (retornar ao texto)
(19) Lima Basto, Alguns Aspectos, p. 305. (retornar ao texto)
(20) Boletim do Comissariado do Desemprego, cit. Relat. do Banco de Portugal, gerência de 1939, p. 42. (retornar ao texto)
(21) Bento Carqueja, O Povo Português, p. 57. (retornar ao texto)
(22) Ferreira Dias, Lmfva de Rumo, p. 162. (retornar ao texto)
(23) Lima Basto, Alguns Aspectos, p. 317. (retornar ao texto)
(24) E. Castro Caldas, no InquérUo à Habitação Rural, p. 404. (retornar ao texto)
(25) Lima Basto, Níveis de Vida e Custo de Vida, p. 18 e anexo 6. (retornar ao texto)
(26) Idem, Ibidem, p. 43. (retornar ao texto)
(27) Idem, Ibidem, p, 31. (retornar ao texto)
(28) Ferreira Dias, XAnha de Rwmo, pp. 139, 144. (retornar ao texto)
(29) Cit. por Jorge Alarcão, "Estimativa do Nível de Vida da População Operária Portuguesa", Revista de Economia, I, I, p. 12. (retornar ao texto)
(30) Carlos Silva, Habitação Rural, Províncias do Alto Alentejo e Baixo Alentejo, I. S. A. 1947; Maria Porfina das Neves, Mão-de-obra na Orizicultura, I. S. A. 1947; Inquérito à Freguesia de Santo Tirso; Inquérito à Freguesia de Cuba; Inquérito à Habitação Rural. (retornar ao texto)
(31) Exemplo n.° 7. (retornar ao texto)
(32) Inquérito à Habitação Rural, p. 308. (retornar ao texto)
(33) Carlos Silva, Habitação Rural, p. 39 e segs. (retornar ao texto)
(34) Rocha Faria, médico nutricionista da D. G. dos Serviços Agrícolas e membro da Comissão de Estudos da Nutrição Rural e da Comissão Nacional da Organização da Alimentação e Agricultura da ONU. Conferência. Diário de Notícias, 20 de Dezembro de 1950. (retornar ao texto)
(35) Diário de Noticiais, 15 de Novembro de 1951. (retornar ao texto)
(36) Carlos Amorim, comunicação nas Jornadas Agrícocolas realizadas no Porto em Outubro de 1951. (retornar ao texto)
(37) Lima Basto, no Inquérito ã Habitação Rural, p, 9. (retornar ao texto)
(38) Henrique de Barros, Inquérito à Freguesia de Cuba, p. 128. (retornar ao texto)
(39) António da Cunha Monteiro, director do Instituto Nacional do Pão, Revista do CEE do INE n.° 2, p. 61. (retornar ao texto)
(40) Calculado na base de elementos do Anuário Estatístico e Relatórios do Banco de Portugal. (retornar ao texto)
(41) Calculado na base de elementos de E. Castro Caldas, O Comércio Externo de Portugal durante a Guerra. (retornar ao texto)
(42) Revista do CEE n.° 2. (retornar ao texto)
(43) Lima Basto, Alguns Aspectos, p. 381. (retornar ao texto)
(44) Cit. por J. Alarcão, "Estimativa do Nível de Vida", Revista de Economia, I, I, p. 23. (retornar ao texto)
Inclusão | 24/07/2006 |