A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo III - O Materialismo Dialético


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§ 19. O materialismo e o idealismo na filosofia. O problema da objetividade

Examinando a questão da vontade humana, a questão de saber se ela era livre ou determinada por certas causas, como aliás tudo no mundo, concluímos que era necessário colocar-se no ponto de vista determinista. Vimos que a vontade humana nada tem de divino, que ela dependia de causa exteriores e do estado do organismo humano. Eis-nos chegados ao problema mais importante, que preocupou durante milhares de anos o pensamento humano, ao problema das relações entre a matéria e o espírito. Fala-se correntemente da "alma" e do "corpo". Distinguimos em geral dois gêneros de fenômenos. Alguns deles têm uma certa extensão, ocupam um certo lugar no espaço, são percebidos pelos nossos sentidos: podem ser vistos, ouvidos, tocados, etc. São chamados fenômenos materiais. Os outros não ocupam lugar no espaço, não podem ser tocados nem vistos; tal é por exemplo, o pensamento, a vontade ou uma sensação. Todos sabem que eles existem. Descartes considerava este fato como uma prova suficiente da existência do homem. Ele disse: "Eu penso logo existo". E no entanto não se pode tocar nem sentir o pensamento humano, ele não tem cor, e não pode ser medido diretamente com um metro. Tais fenômenos chamam-se psíquicos ou espirituais. Quais são as relações que existem entre estes dois gêneros de fenômenos? Será o espírito ou a matéria "'o começo de todas as coisas"? Qual é o fenômeno original? Qual é o fenômeno principal? Será a matéria que dá origem ao espírito, ou então o espírito à matéria? Tal é o problema fundamental da filosofia. Da resposta a esta pergunta, dependem outras questões que tocam o problema das ciências sociais.

Vamos tentar examinar esta questão, tanto quanto possível, sob todos os aspectos. Devemos antes de tudo ter em vista que o homem faz parte da natureza. Não sabemos com certeza se existem outros seres organizados de uma maneira superior, sobre outros planetas. Certamente que existem, pois que o numero de planetas é infinito. Mas vemos claramente que o ser pensante que se chama homem nada tem de divino, de exterior ao mundo, e que ele não caiu na terra vindo de um mundo desconhecido, misterioso. Ao contrario, sabemos pelas ciências naturais que o homem é um produto da natureza, uma parte desta natureza submetida às leis gerais. É pelo exemplo deste mundo que nós conhecemos, vemos que os fenômenos psíquicos, que o pretendido "espírito", constituem uma parcela ínfima de todos os fenômenos. De outro lado sabemos que o homem descende de outros animais e que no fim de contas "os seres viventes" não apareceram sobre a terra senão no fim de um certo tempo. Quando a terra não era ainda um planeta extinto, mas um globo incandescente, no gênero do nosso atual sol, não havia vida sobre ela, nem seres pensantes. Foi da natureza "morta" que se desenvolveu a natureza viva e foi da viva que saiu aquela que pensa. Existia a princípio uma matéria que não podia pensar, e dela se formou a natureza pensante: o homem. Se assim é — e as ciências naturais o provam, — está claro que foi a matéria que gerou o espírito e não o espírito a matéria. Pois não acontece nunca e em nenhum lugar, que os filhos sejam mais velhos que os pais. O "espírito" apareceu mais tarde. Foi ele, por conseguinte, que foi o filho e não o pai, ao contrario do que desejam dele fazer os admiradores demasiadamente fervorosos do "espiritual". Sabemos também que o espírito aparece ao mesmo tempo que a matéria quando organizada de certa maneira.

Não é um balão vazio nem um buraco, nem o "espírito" sem matéria que pensa, e sim o cérebro humano, uma parte do organismo humano. E o organismo humano é a matéria organizada de uma maneira extremamente complexa.

Em quarto lugar explica-se claramente pelo que precede, por que motivo a matéria pode existir sem o espírito, enquanto que o espírito não pode existir sem a matéria. A matéria existiu antes que o homem pensante tivesse aparecido; a terra existiu bem antes da aparição de qualquer "espírito" sobre esta terra.

Em outros termos, a matéria existe objetivamente, independentemente do "espírito". Ao contrario, os fenômenos psíquicos, o pretendido espírito, não existe nunca e em parte alguma sem a matéria, independentemente dela. Os pensamentos não existem sem cérebro, os desejos sem o organismo que deseja. O "espírito" é sempre fortemente ligado á "matéria" (foi somente na Bíblia que ele planava por cima dos abismos). Em outras palavras, os fenômenos psíquicos, os fenômenos da consciência não são outra coisa senão uma qualidade da matéria organizada de outra maneira, sua "função" (a função de uma grandeza qualquer é uma outra grandeza que depende da primeira). Tomemos, o homem, por exemplo. Ele é uma maquina delicadamente organizada. Destruí esta organização, desorganizai-a, decomponde-a, cortai-a em pedaços, e o "espírito" desaparecerá imediatamente. Se os homens dispusessem de meios para reconstituir todo este sistema, de tal maneira que o organismo humano começasse novamente a trabalhar, em outros termos, se os homens tivessem um meio de recompor, de reorganizar as parcelas materiais como elas eram antes, se eles pudessem em uma palavra, dar corda ao homem como se dá corda a um relógio, a consciência se restabeleceria imediatamente: Concerte o teu relógio e ele recomeçará a funcionar; reconstitua o organismo humano e ele recomeçará a pensar. Certamente os homens não chegaram até este ponto. Mas nós já vimos, ao examinar o problema do determinismo, que o estado de "espírito", o estado de consciência depende do estado do organismo. Envenenai o organismo com álcool, e a consciência se tornará obscura, o "espírito" titubeará. Tornai a pôr o organismo em seu estado normal (administrai-lhe um antídoto) e o "espírito" recomeçará a trabalhar como de costume. Isto prova claramente que a consciência depende da matéria ou, em outros termos, que o "pensamento" depende do organismo. Já dissemos e ficou visto que os fenômenos psíquicos constituem uma propriedade da matéria organizada de uma certa maneira. Pode haver nestes limites certas flutuações, diversas formas de organização da matéria, por isto mesmo, formas diferentes da vida psíquica. O homem, com o seu cérebro está organizado de uma maneira; ele tem a mais completa vida psíquica, ele tem uma verdadeira consciência. Um cão está organizado de outra maneira, e esta é a razão porque a vida psíquica de um cão difere da do homem; uma minhoca é constituída ainda de maneira diferente, e por esta razão o "espírito" de uma minhoca é muito pobre e não pode de maneira alguma ser comparado ao espírito humano. Uma pedra, por exemplo, pela sua organização constitui uma matéria inanimada, ela não tem nenhuma vida psíquica. Uma organização particular e complicada da matéria, é necessária para que a vida psíquica possa aparecer, e a que chamamos consciência. Sobre a terra, esta consciência aparece somente quando existe a matéria organizada, tal como o organismo humano, com o seu instrumento complexo: o cérebro.

Assim, o espírito, não pode existir sem a matéria, a matéria pode existir muito bem sem o espírito, pois que existiu antes dele, o (espírito) é uma qualidade particular da matéria, organizada de uma maneira particular.

É assim que se resolve o problema das relações entre o materialismo e o idealismo, na filosofia.

O matenallsmo considera a matéria como causa primaria e fundamental! O idealismo ao contrario, considera em primeiro lugar o espírito. Para os materialistas, o espírito é um produto da matéria; para os idealistas, ao contrario, é a matéria que é o produto do espírito.

Não é difícil ver que o idealismo, isto é, a doutrina que considera as idéias, "o espírito", como base de tudo que existe, não é outra coisa senão uma forma amenizada das concepções religiosas. O sentido destas concepções religiosas consiste precisamente no fato de uma força divina e misteriosa estar colocada, acima da natureza, de que a força humana é considerada como uma faísca dessa força divina, e de que o homem é um ser eleito por Deus. O ponto de vista idealista conduz no seu desenvolvimento a uma série de absurdos, que os filósofos das classes dominantes defendem muitas vezes com muita seriedade. Neste caso estão principalmente as concepções que negam o mundo exterior, isto é a existência objetiva das coisas e dos outros homens independentemente da consciência humana. A forma extrema deduzida do idealismo é o solipismo (da palavra latina "solus" — só). Os solipsistas raciocinam da seguinte maneira: O que me é dado diretamente? Minha consciência e nada mais, a casa que eu vejo é minha sensação, o mesmo acontece com o homem a quem eu falo. Em uma palavra, nada existe fora de mim mesmo; somente meu "eu" existe, minha consciência, minha essência espiritual; nenhum mundo exterior independente de mim existe: Tudo isto, é criação do meu espírito. Pois eu não conheço senão a minha vida interior, da qual eu não posso me desembaraçar.

Tudo o que eu vejo, ouço, provo, tudo que eu penso, tudo isto, são minhas sensações, minhas imagens, meus pensamentos. Esta filosofia absurda, da qual Schopenhauer disse que não poderia encontrar adeptos sinceros senão num hospício de alienados (o que não impediu ao mesmo Schopenhauer de considerar o mundo como vontade e representação, isto é, de ser um idealista da mais pura essência) é desmentido a todo momento pela prática humana. Os homens comem, empreendem uma luta de classes, calçam os sapatos, colhem flores, escrevem livros, casam-se; ninguém duvida um só instante que o mundo exterior exista, isto é, ninguém duvida da existência da comida que se come, dos sapatos que se calçam, das mulheres com que nos casamos, etc. Entretanto, todos estes absurdos decorrem das proposições essenciais do idealismo. Com efeito, se o "espírito" é a base de tudo, o que faremos do tempo em que o homem não existia ainda? De duas uma: Ou bem é preciso admitir que existiu um espírito não humano, divino, no gênero daquele ao qual se referem os antigos contos judaicos e a Bíblia, ou então é preciso dizer que a própria época antiga não é senão o fruto do trabalho de minha imaginação. A primeira hipótese conduz ao que chamamos de "idealismo objetivo". O idealismo objetivo admite a existência de um mundo exterior independente de "minha" consciência. Mas ele vê a essência deste mundo no princípio espiritual, em um Deus ou numa "razão superior" que substitui às vezes o Deus; numa "vontade universal" e em outras fantasias diabólicas deste gênero. A segunda hipótese conduz diretamente ao solipsismo através do idealismo subjetivo, que não admite senão a existência dos seres espirituais, dos seres pensantes individuais. Não é difícil ver que o solipsismo constitui a forma mais consequente do idealismo. Com efeito, qual é a fonte, qual é a base do idealismo? Porque crê ele que o princípio espiritual é o primeiro e o essencial? Por que ele considera, no fim de contas, que só existem as sensações, que me são fornecidas diretamente. Mas se assim é, a minha própria existência fica tão duvidosa como a de um objeto qualquer, como a de qualquer outro homem, e entre eles a de meus próprios pais. Aqui, o solipsismo se mata a si mesmo, mas ele mata ao mesmo tempo todo o idealismo na filosofia, pois desenvolvendo logicamente as concepções idealistas, ele conduz ao absurdo mais completo, que contradiz a cada passo a prática humana.

É preciso não confundir "o idealismo prático" e o "materialismo" com o materialismo e idealismo teóricos. São coisas que nada têm de comum com as doutrinas que acabamos de analisar. Dá-se o nome de idealista, no sentido prático da palavra, a um homem dedicado a uma idéia e pronto a fazer todos os sacrifícios por ela. Está claro que um tal idealista pode ser o adversário mais encarniçado do idealismo filosófico, do idealismo teórico. Um comunista que sacrifica a sua vida é um idealista prático, e ao mesmo tempo materialista até a medula dos ossos. Um burguês que suspira pelo bom Deus tem habitualmente concepções muito idealistas, o que não impede de ser bastante covarde, obtuso e egoísta.

Considera-se habitualmente o filósofo grego Platão como o pai do idealismo filosófico. Segundo ele, com efeito, não existem objetivamente senão" idéias" (conceitos), não homens, peras, carrinhos, mas idéia do homem, da pera, e do carrinho. Todas estas idéias modelo e preexistentes, planam "acima do céu", tal o espírito divino, "a idéia superior", a "idéia do bem'. Um certo desvio para o idealismo subjetivo foi feito a princípio pelos filósofos gregos conhecidos pelo nome de sofistas (Protágoras, Gorgeas, etc...) que emitiram a proposição segundo a qual "o homem é a medida de todas as coisas". Na idade média, as idéias de Platão eram consideradas como os modelos, de acordo com os quais Deus cria todas as coisas visíveis. Por exemplo, a pulga visível é criada por Deus, segundo uma "idéia" da pulga, que está colocada num "mundo para além da razão". Nos tempos modernos, foi o bispo Berkeley que desenvolveu da maneira mais consequente o ponto de vista do idealismo subjetivo na Inglaterra; segundo ele, somente o espírito existe, todo o resto não é senão a sua representação. Na Alemanha, Fichte pensava que o objeto (mundo exterior) não existe sem o sujeito (o espírito que conhece), e a matéria é a expressão da idéia. Segundo Schelling, as idéias são a essência das coisas, tendo por base a eternidade divina. Segundo Hegel, tudo o que existe não é senão a manifestação da "Razão objetiva", que se desenvolve por si mesma. Segundo Shopenhauer o mundo é vontade e representação. Segundo Kant, o mundo objetivo existe ("a coisa em si"), mas dele não se pode ter conhecimento, pois a sua natureza é imaterial. Na filosofia moderna, o idealismo, dividiu-se em diversas tonalidades, e reforçou-se consideravelmente com a tendência da burguesia para o misticismo e o mistério. É o sinal de uma profunda decadência da burguesia que, desesperada, procura uma consolação espiritual.

A primeira corrente filosófica materialista é encontrada nos filósofos gregos da escola jônica, que consideravam a matéria como base de tudo o que existe, mas que pensaram ao mesmo tempo que toda a matéria tinha até certo ponto a propriedade da percepção. Por este motivo são estes filósofos chamados "hilozoistas" (isto é, em grego, os que animam a matéria).

Certamente, estes primeiros passos não deram grandes resultados. Assim Thales procurou a base de tudo que existe na água, Anaximenes no ar, Heráclito no fogo, Anaximandro numa substancia indefinida e que envolve tudo (ele a chamou "infinito" ou "ilimitado"); é preciso acrescentar aos hilozoístas os estóicos, segundo os quais tudo o que existe é material. O materialismo foi em seguida desenvolvido pelos gregos Demócrito e Épicuro e o latino Lucrecio. Demócrito assentou genialmente as bases da teoria dos átomos. Segundo ele, o mundo é composto de parcelas materiais ínfimas que se movem e cujas combinações criam o mundo visível. Na idade média, eram em gerai ruminadas as concepções idealistas. O filósofo B. Spinoza desenvolveu as idéias dos materialistas hilozoístas de uma maneira brilhante e profunda. Na Inglaterra, foi Hobbes (1578-1679) quem defendeu os princípios materialistas. É a época da preparação da grande Revolução francesa, que produziu toda uma série de filósofos materialistas de primeira ordem, tais como: Diderot, Helvetius, Holbach (cuja obra principal "Sistema da natureza" apareceu em 1770).

La Metrie ("O homem maquina", 1748). Este grupo de filósofos da burguesia, nessa época revolucionaria, formulou de uma maneira magnífica a teoria materialista (ver N. Beltov: "Contribuição ao desenvolvimento da concepção monista da historia" e V. Lenin: "Materialismo e Empiro Criticismo"). Diderot ridicularizou com fineza os idealistas do gênero de Berkeley.

"Houve, diz ele, um momento de loucura, quando um cravo consciente imaginou que ele era o único cravo existente no mundo e que toda a harmonia do universo pertencia a ele".

No século XIX, o materialismo foi desenvolvido na Alemanha por Ludwig Feuerbach que exerceu influencia sobre Marx e Engels; estes dois últimos formularam a mais perfeita teoria do materialismo. Eles ligaram o materialismo a um método dialético (do qual falaremos adiante) e aplicaram a doutrina materialista às ciências sociais, expulsando assim o idealismo do seu ultimo reduto. É natural que a burguesia no seu gatismo, babe sobre o materialismo, invocando o velho bom Deus. É lógico também que o materialismo se torne a teoria revolucionaria da jovem classe revolucionaria — o proletariado.

§ 20. A concepção materialista nas ciências sociais

É evidente que o debate entre o materialismo e o idealismo não pode deixar de ter repercussão nas ciências sociais. Com efeito, examinemos a sociedade humana. Vemos nela fenômenos de gêneros diferentes. Há os de "ordem superior": A religião, a filosofia, a moral. Encontramos também a política do Estado com suas leis, novas idéias nos diferentes domínios, troca de mercadorias e a distribuição dos produtos, a luta das diferentes classes entre si; a produção dos diferentes objetos: da cevada, do feijão, dos calçados, das maquinas, segundo as condições de tempo e de espaço. Como fazer para estudar esta sociedade? Por que lado começar? O que deve ser considerado como essencial? Como primordial? O que é secundário, derivado? Evidentemente, aí estão, na sua essência, os mesmos problemas que a filosofia formula e que dividem filósofos em dois grandes campos: materialistas e idealistas. Pode-se, com efeito, imaginar, de um lado, que os homens aplicam ao estudo da sociedade o método seguinte: A sociedade é composta de homens, os homens pensam, agem, desejam, se inspiram de idéias, de pensamentos, de "opiniões", de onde se conclui: "As opiniões governam o mundo", as mudanças de opinião, as mudanças de ponto de vista dos homens, constituem a causa primaria de tudo o que se passa numa sociedade; por conseguinte, a ciência social deve estudar em primeiro lugar este lado do problema, a "consciência social". Isto seria o ponto de vista idealista nas ciências sociais. Mas vimos acima que o idealismo presume que se admite a independência das idéias relativamente aos fatos materiais, e que pelo contrario, estas idéias dependem de coisas divinas e misteriosas. Eis a razão pela qual a concepção materialista se liga diretamente à mística e às fantasias diabólicas nas ciências sociais, e por conseguinte, conduz à destruição da ciência social e à sua substituição pela fé, pela crença numa Providência ou outra coisa análoga. É assim que Bossuet, no seu "discurso sobre a historia universal" em 1682, declarou que se encontra na historia a direção divina do gênero humano". O filósofo idealista alemão Lessing afirmava que a historia é "a educação do gênero humano por Deus"; Fichte dizia que a razão é que agia na historia; Schelling, que a historia é uma "revelação constante do absoluto, revelação que se descobre pouco a pouco, isto é, em ultima analise, a revelação de Deus". Hegel, o maior filósofo do idealismo definia a historia universal como "um desenvolvimento inteligente e necessário do espírito universal". Podíamos citar ainda um grande numero de exemplos, mas os que acabamos de dar são suficientes para mostrar a que ponto as concepções filosóficas tem ligação estreita com as ciências sociais.

Assim, as ciências sociais e a sociologia idealista observam na sociedade, antes de tudo as "idéias" desta sociedade: Elas consideram a sociedade, ela mesma, como fenômeno psíquico e material; a sociedade, segundo eles, é uma mistura de desejos, de sentimentos, de pensamentos, de vontades humanas, que se entrecruzam, formando infinitas combinações; em outros termos, é a psicologia social e a consciência social, o "espírito" da sociedade. Pode-se entretanto examinar a sociedade de outra maneira. Vimos, ao estudar o problema do determinismo, que a vontade humana não era livre, que ela era determinada pelas condições exteriores da existência humana. A sociedade não estará submetida às mesmas leis? Onde encontrar a chave para explicar a consciência social? Do que depende ela?

Ao formularmos estas perguntas, estamos em presença da concepção materialista das ciências sociais. A sociedade humana é um produto da natureza, tanto quanto o gênero humano na sua totalidade. Ela depende desta natureza. Ela não pode existir sem tirar desta natureza tudo que lhe é útil. E ela extrai estas coisas úteis por meio da produção. Ela não age sempre de uma maneira consciente. Somente uma sociedade organizada trabalha segundo um plano preestabelecido. Pelo contrario, uma sociedade desorganizada tudo faz de uma maneira inconsciente: Assim por exemplo, em regime capitalista, um fabricante que quer obter maiores lucros aumenta com este fim a produção (e não para ajudar a sociedade humana); um camponês produz para se nutrir e para vender uma parte de seus produtos, afim de pagar os impostos; um artesão, para se manter tanto quanto possível e para tentar progredir; um operário, para não morrer de fome. E acontece, no fim de contas que a sociedade continua a viver mal e mal. A produção material e seus meios ("as forças materiais produtivas"), eis o que constitui a base da existência de uma sociedade humana. Sem esta produção, nenhuma "consciência social", nenhuma "cultura espiritual" é possível, do mesmo modo que um pensamento não pode existir sem o cérebro. Examinaremos detalhadamente este problema mais tarde. Contentemo-nos, no momento, de examinar o seguinte: Representemo-nos duas sociedades humanas, uma de selvagens, a outra capitalista em declínio. Na primeira, todo o tempo é gasto na procura da alimentação por meio da caça, da pesca, da colheita de raízes, da cultura de plantas, etc.; encontramos nela muito poucas "ideias", "cultura espiritual", etc. Estamos diante de animais, de semi-macacos. Na outra sociedade, vemos uma rica "cultura espiritual", toda uma torre de Babel, a moral, o direito, com suas leis interminável, as ciências, a filosofia, a religião, a arte, a começar pela arquitetura e acabando pelas gravuras de modas. Ao mesmo tempo, a burguesia dominante tem a sua própria torre de Babel, os proletários possuem outra, os camponeses uma terceira, etc.. Em uma palavra, como se diz habitualmente, "a rica cultura espiritual", o "espírito" social, as "idéias" cresceram aqui em proporções consideráveis. Como pôde este espírito se desenvolver? Quais foram as condições que determinaram o seu crescimento? O desenvolvimento da produção material, o poder crescente do homem sobre a natureza, o aumento da produtividade do trabalho-humano. É somente depois disto que o homem não é mais obrigado a sacrificar todo o seu tempo ao duro trabalho material: Os homens têm momentos de repouso que se lhes permitem pensar, refletir, fazer um trabalho intelectual, de criar uma "cultura" espiritual.

Assim, do mesmo modo que a natureza é no fundo a mãe do espírito, e não o espírito o pai da matéria, assim também, numa sociedade, não é a "cultura espiritual" social ("a consciência social") que cria a matéria social, isto é, a produção material, mas ao contrario, é o desenvolvimento desta matéria social, que forma a base da, por assim dizer, "cultura espiritual". Em outros termos, a vida espiritual da sociedade depende, e não pode deixar de depender, do estado da produção material, do grau de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. A vida espiritual da sociedade é, como dizem os sábios, função das forças produtivas. Qual é a essência desta função? De que maneira depende a vida espiritual da sociedade das forças produtivas? Veremos isto mais tarde. Indiquemos somente no momento que, segundo esta concepção, a sociedade se apresenta evidentemente não como um "organismo psíquico", não como um conjunto de opiniões diferentes, pertencendo ao domínio do "belo", do "puro", e do "sublime", mas antes de tudo como uma organização de trabalho (Marx dizia às vezes: "Organismo produtor"). Este é o ponto de vista materialista em sociologia. Como sabemos, a concepção materialista não nega a existência das "idéias". Marx, referindo-se ao grau de consciência mais elevado, da teoria cientifica, exprimiu-se da seguinte maneira:

"cada teoria se transforma em força material, quando as massas delas se apoderam".

Mas os materialistas não se podem contentar em dizer que "os homens pensaram assim". Eles perguntam entre si por que motivo os homens pensaram de uma certa maneira em certo momento e lugar, e diferentemente em outras condições. Porque, em uma sociedade civilizada, pensam os homens muito e produzem montanhas de livros, e porque não fazem o mesmo os selvagens? A explicação disto está nas condições materiais da vida social. É assim que o materialismo nos permite explicar os fenômenos da "vida espiritual" da sociedade. O idealismo, pelo contrario, é incapaz de o fazer. Para ele, as "idéias" se desenvolvem por si mesmas, independentemente desta "miserável terra". Esta é a razão pela qual os idealistas são obrigados a recorrer a Deus para poder dar um arremedo de explicação:

"Este Bem", escreveu Hegel na sua "Filosofia da Historia", esta razão, na sua forma mais completa, é Deus. Deus governa o mundo, e a historia universal constitui a substancia do seu reino, a realização de seu plano. (Philosophie der Geschichte, Reklams Verlag, pag. 74).

Recorrer a este velho infeliz que sendo, segundo seus adoradores, a própria perfeição, é obrigado a criar ao mesmo-tempo que Adão, as pulgas e as prostitutas, os assassinos e os pesteados, a fome e a miséria, a sífilis e a cachaça para punir os pecadores criados por ele, e pecando por sua vontade, e, para representar eternamente esta comédia diante do mundo-admirado, recorrer a Deus, tal é o destino inevitável da teoria idealista. Mas, do ponto de vista cientifico, esta "teoria" nos leva ao absurdo.

E é assim que, nas ciências sociais por sua vez, o único ponto de vista justo é o ponto de vista materialista.

A aplicação da concepção materialista às ciências sociais foi feita de maneira consequente por Marx e Engels. No mesmo ano (1859) em que apareceu o livro de Marx "Contribuição à Economia Política", no qual Marx esboçou sua doutrina sociológica (a teoria do materialismo histórico) apareceu também a obra principal do grande sábio inglês Charles Darwin (A origem das espécies) na qual Darwin mostrou e provou que as modificações na fauna e na flora se produzem sob a influencia das condições materiais da existência. Entretanto, não resulta daí que se possa aplicar diretamente à sociedade as leis de Darwin. O problema consiste em mostrar de que maneira as leis gerais das ciências naturais se manifestam na sociedade humana e, qual é a forma particular sob a qual elas podem ser aplicadas á sociedade humana. Marx criticou acerbamente aqueles que não o compreenderam. Ele escreveu a propósito de um sábio alemão F. A. Lange:

"Sr. Lange fez, bem o vedes, uma grande descoberta. Pode-se submeter a historia, parece, a uma só grande lei natural. Esta lei natural está encerrada em uma só frase: the struggle for life (a luta pela existência), (a expressão de Darwin, aplicada assim, torna-se uma frase sem sentido...). Por conseguinte, invés de analisar este "struggle for life" e ver como ele se manifestou historicamente nas diferentes formas sociais, resta somente fazer uma coisa: substituir toda luta concreta pela frase: "struggle for life". (Cartas a Kugelmann, carta de 27 de junho de 1870).

É claro que Marx teve antecessores, e particularmente na pessoa dos socialistas utópicos (Saint Simon). Mas a concepção materialista nunca foi estudada a fundo antes de Marx, pela única maneira susceptível de criar a verdadeira sociologia científica.

§ 21. O ponto de vista dinâmico e as relações dos fenômenos entre si

Tudo o que se passa na natureza e na sociedade pode ser examinado de duas maneiras diferentes. Uns crêem que nada muda: "Assim é e assim será sempre". Nada se produz de novo. Outros pensam, ao contrario, que nem na natureza nem na sociedade, nada há nem pode haver de imutável. "O que foi passou" e "isto não voltará jamais". Esta segunda concepção, esta segunda maneira de examinar tudo o que existe, se chama dinâmica ("dynames", em grego: força, movimento), a primeira se chama estática. Qual das duas é justa? O mundo será constante e imutável? Ou então ao contrario, mudará ele constantemente e, não será mais hoje o que ele foi ontem? Um só golpe de vista sobre a natureza é suficiente para nos mostrar que nada há de imutável. Outrora, os homens pensavam que a lua e as estrelas não se mexiam e que elas eram fincadas no céu como pregos de ouro; que a terra também era imóvel, etc... Agora, nós sabemos que as estrelas e a lua e a nossa terra giram com uma rapidez vertiginosa através de espaços imensos. Mais ainda, sabemos agora que as mais ínfimas partículas de matéria, os átomos, são compostos de partículas ainda menores, que são chamados electrons que giram no interior do átomo, como os corpos celestes do sistema solar em torno do sol. E são eles que compõem o mundo. O que pode haver de constante no mundo, si todas estas parcelas que o compõem se movem com maior velocidade que o vento? Outrora, os homens pensavam também que existiam tantas plantas e animais quantas Deus havia criado: o burro, a doninha, o percevejo e o bacilo da lepra, a filoxera e o elefante, a rosa e a urtiga — tudo isto existe tal qual Deus criou nos primeiros dias do mundo. Não há tantas espécies de animais e plantas quantas Deus quis criar. As plantas e os animais que existem hoje sobre a terra, parecem-se muito pouco com aqueles que existiram outrora. Não encontramos senão esqueletos, impressões na pedra, ou no gelo, de restos de animais enormes e de plantas que existiram há milhares de anos: lagartos voadores gigantescos (pterodactilos), fetos gigantescos, florestas inteiras petrificadas (o carvão não é senão a madeira das florestas primitivas), verdadeiros monstros, tais como os ictiosauros, os brontosauros, etc.... Eis o que já existia e não existe mais. Por outro lado, não existiam nem pinheiros, bétulas, nem vacas, nem carneiros, — em uma palavra, tudo se transformou sob o sol. E infelizmente! Os homens, descendentes dos macacos peludos, não existiam ainda: eles só apareceram na terra há relativamente pouco tempo. Não nos admiramos mais vendo as espécies animais e as plantas se transformarem. Admiramo-nos tanto menos que já chegamos às vezes a fazer melhor do que o próprio Deus: um bom criador de porcos, escolhendo bem a alimentação e cruzando as espécies criteriosamente pode criar pouco a pouco novas raças: os porcos de Yorkshire que não podem andar de tão gordos, são criação do homem, da mesma forma que as rosas pretas e as diferentes espécies de animais domésticos e de plantas. E o próprio homem não muda também quase a olhos vistos? O operário russo do tempo da Revolução parece-se no que quer que seja ao slavo selvagem caçador, dos tempos antigos?

A raça, o aspecto dos homens mudam como tudo no mundo. Que conclusões podemos tirar daí? Que evidentemente, nada existe de imutável, nada é fixo no mundo. Tudo muda, tudo se move. Ou, em outros termos, as coisas fixas, os objetos não existem na realidade, existem apenas processos. A mesa sobre a qual escrevo neste momento não é absolutamente uma coisa imóvel: ela muda a cada instante. É verdade que ela muda de uma maneira imperceptível para o olho e o ouvido humano. Mas no fim de longos, longos anos, ela apodrece e torna-se em pó. De um só golpe? Não certamente, mas como resultado do que anteriormente se passou. As partículas desta mesa serão perdidas? Não, elas terão tomado uma outra forma, elas serão levadas pelo vento, elas serão uma parte do solo, nutrirão as plantas e se transformarão em tecidos vegetais, etc.: mudança eterna, eterna viagem de formas sempre novas. O mundo não é mais do que matéria em movimento. Eis porque para se compreender um fenômeno, é preciso examiná-lo em sua origem (como, de onde e porque tem ele lugar), no seu desenvolvimento e no seu fim; em uma palavra, em movimento e não no decurso de um repouso imaginário. Esta concepção dinâmica se chama também dialética (a dialética tem ainda outros sinais característicos dos quais falaremos adiante).

Já, a antiga filosofia grega, distinguia os dois pontos de vista o dinâmico e o estático. A escola dos eleatas, com Parmenides à frente, ensinava que tudo o que existe é imóvel. O ser, segundo Parmenides é eterno, constante, imutável, uno, indivisível, imóvel, inteiro, uniforme, e se parece com uma esfera em repouso. Um dos eleatas, Zenon, tentou provar com raciocínios muito sutís que qualquer movimento é impossível. Heráclito, pelo contrario, ensinava que nada é imutável, ele afirmava que tudo muda, que tudo corre". Segundo Heráclito, é impossível entrar duas vezes num mesmo rio, pois ele muda todo momento. Um filósofo da mesma escola Cratiles, dizia que era impossível banhar-se mesmo uma só vez num mesmo rio, porque este muda constantemente. Demócrito considerava também o movimento como a base de tudo, especialmente o movimento retilíneo dos átomos. Entre os filósofos modernos, Hegel, do qual Marx foi discípulo, insistia particularmente sobre o movimento e o "tornar". Mas, para Hegel, é um movimento do espírito que serve de base ao mundo, enquanto que Marx, segundo suas próprias palavras, pôs de pé a dialética de Hegel, substituindo o movimento do espírito pelo da matéria. Nas ciência naturais desde o princípio do século XIX prevaleceu a opinião expressa pelo celebre naturalista Lineu. Há tantas espécies quantas Deus criou (teoria da constância das espécies). O representante mais em voga da opinião contrária foi Lamarck, e depois dele Charles Darwin, ao qual já nos referimos acima, e que definitivamente rejeitou as antigas concepções.

Do fato de estar o mundo constantemente em movimento resulta a necessidade de se examinarem os fenômenos nas suas relações mutuas e não como fenômenos absolutamente separados (isolados).

Todas as partes do mundo são, na realidade, ligadas entre si e influem umas sobre as outras. Basta uma modificação mínima num lugar para que tudo mude. Qual é a importância desta mudança? Isto é outra questão, mas mudança sempre há. Tomemos um exemplo. Os homens, admitamos, abaterem as florestas da margem do Volga. Devido a isto, a umidade se conserva menos, o clima varia dentro de certo limite, baixam as águas dos rios, a navegação se torna mais difícil, torna-se necessário pôr em movimento um maior numero de dragas, de fabricar um maior numero desses aparelhos, de empregar mais homens na sua fabricação, etc; por outro lado, os animais que habitavam estas florestas desaparecem, outras espécies animais aparecem, os antigos morrem ou partem para países onde haja florestas etc.. Mas podemos encarar outras questões: se o clima muda, é evidente que o estado de todo o planeta muda também, e desta maneira a mudança do clima do Volga exerce a sua influencia mais ou menos em toda parte. Mas, na realidade, se o aspecto da terra muda, por pouco que seja, é evidente que as relações entre a terra e a lua ou o sol mudam também. Escrevo neste momento sobre papel, movo a minha pena, minha ação produz uma ação sobre a mesa, a mesa exerce uma pressão sobre a terra, e assim se produz uma série de outras modificações. Movendo a pena, eu agito o ar, e as suas ondas perdem-se não sabemos onde. Pouco importa que todas estas modificações sejam ínfimas, elas não deixam por isso de existir. Tudo está ligado no mundo por liames inextricáveis, nada está isolado, nada independe do exterior. Em outros termos, nada há no mundo que seja absolutamente isolado. Certamente, não podemos sempre observar as relações gerais entre os fenômenos: referindo-nos por exemplo, à criação de galinhas não podemos, está visto, formular problemas astronômicos concernentes ao sol e à lua; isto seria perfeitamente ridículo, pois essas considerações sobre as relações gerais entre os fenômenos de nada nos serviriam na ocorrência. Mas, examinando problemas teóricos, somos muitas vezes obrigados a tomar em consideração estas relações. É preciso muitas vezes contar com elas na vida prática. Quando se diz que um fulano não enxerga um palmo adiante do nariz, o que entendemos por isto? Entendemos que ele estuda o seu pequeno canto como um fenômeno isolado, à margem de tudo o que envolve este seu campo. O camponês leva os seus produtos ao mercado e pensa fazer bons negócios. Ora, acontece que os preços estão tão baixos que ele não pode cobrir as suas despesas. Como acontece isto? A razão disto é que o camponês está ligado por meio do mercado a outros produtores. Ele percebe que foi produzido e trazido ao mercado uma tal quantidade de trigo que os preços caíram. Porque motivo enganou-se o nosso camponês? Porque ele não viu (e ele não pôde ver do seu pequeno recanto) os liames que o ligam ao mercado mundial. Invés de se enriquecer depois da guerra, a burguesia se encontrou em frente a uma Revolução operaria. Por que? Porque a guerra estava ligada a toda uma série de fenômenos que a burguesia não havia observado. Os mencheviques, os socialistas-revolucionários, os social-patriotas de todos os países afirmaram que o poder bolchevique não se manteria senão muito pouco tempo na Rússia. Por que cometeram eles este erro? Porque consideraram a Rússia como um caso isolado, sem relação com a Europa ocidental, separadamente da Revolução mundial em progresso, que ajuda os bolcheviques. Quando se diz correntemente e com muita razão que é preciso pesar todas as circunstancias com isto se diz que é preciso examinar um fenômeno ou certo problema nas suas relações com os outros fenômenos e com as outras circunstancias, em geral.

Assim, o método dialético de investigação de tudo que existe exige um estudo de todos os fenômenos, primeiro nas suas relações mutuas indissolúveis e segundo, no seu movimento.

§ 22. O ponto de vista histórico nas ciências sociais

Do fato de tudo se mover no mundo e de tudo estar ligado indissoluvelmente, decorrem certas consequências determinadas para as ciências sociais.

Estamos diante de uma determinada sociedade humana. Teria ela sempre sido organizada da mesma maneira? Absolutamente não. Conhecemos formas extremamente variadas de sociedades humanas. Assim, na Rússia, por exemplo, desde o mês de novembro de 1917, é a classe operaria que está no poder; ela é seguida pelos camponeses; a burguesia está segura; e uma parte (cerca de dois milhões) fugiu para o estrangeiro. As fábricas, as usinas, as vias férreas estão nas mãos do Estado operário. Outrora, antes de 1917 era a burguesia e a nobreza que estavam no poder e que possuíam tudo, enquanto os camponeses e os operários trabalhavam para eles. E tempos mais antigos ainda, antes da libertação dos servos, em 1861, a burguesa era principalmente comercial e existiam poucas usinas. Quanto aos nobres, estes possuíam os camponeses como se possui o gado; eles podiam maltratá-los, vendê-los, ou trocá-los. Se nos transportarmos a épocas muito afastadas, encontramos povos nômades e semi-selvagens. Todas estas coisas são tão pouco semelhantes entre si, que um nobre do tempo da servidão, amador do knout e de cães de caça, ressuscitado por milagre e trazido a uma reunião de comitê de usina ou de soviet, seria capaz de sucumbir de uma ruptura de aneurisma.

Conhecemos também outras formas de sociedades. Na Grécia antiga, por exemplo, no tempo em que filosofavam os Platões e os Heráclitos, tudo era baseado sobre o trabalho dos escravos, que constituíam a propriedade de grandes proprietários do solo. No antigo Estado americano dos Incas, a economia nacional era regulada e organizada, ela se achava nas mãos da classe dos nobres e dos sacerdotes, uma espécie de classe intelectual, que governava o país e dirigia a economia nacional, como classe dominante, colocada acima de todas as outras. Poderia-mos dar grande número de outros exemplos para mostrar que a estrutura social muda constantemente. Isto absolutamente não quer dizer que a evolução do gênero humano esteja continuamente progredindo, isto é, tendendo para um aperfeiçoamento constante. Nós já vimos que havia casos em que sociedades humanas muito desenvolvidas pereceram. Assim pereceu, entre outros, o país dos sábios gregos e dos proprietários de escravos. Mas a Grécia e Roma ao menos exerceram uma influencia enorme sobre a marcha posterior dos acontecimentos: Eles serviram de adubo para a história. Mas aconteceu também que civilizações inteiras desapareceram sem deixar traços de si. Eduardo Mayer escreve da seguinte maneira a respeito dos vestígios de uma das mais antigas "civilizações", vestígios descobertos na França por meio de escavações:

"...estamos diante da civilização do homem primitivo em pleno desenvolvimento... civilização que foi destruída em seguida por uma catástrofe grandiosa e que não exerceu influência alguma sobre as épocas posteriores. Não existe nenhuma ligação histórica entre esta civilização paleolítica e os princípios da época neolítica"... (Ed. Mayer: Geschichte des Altertuns, 1.º volume, 2.ª edição página 245).

Mas se não há sempre desenvolvimento, sempre há movimento e transformação, mesmo se o fim é a decomposição e a morte.

Não nos apercebemos deste movimento apenas porque a ordem social muda. Não, a vida social se modifica incontestavelmente em todas as suas manifestações. A técnica da qual se serve a sociedade, evolui: é suficiente comparar os machados e as pontas de lanças em sílex com um martelo pilão, um dínamo, um telefone sem fio; a moral e os costumes mudam: Sabe-se, por exemplo, que certos povos comem com prazer os seus prisioneiros, coisa que mesmo um imperialista francês é incapaz de fazer diretamente; ele se contenta em cortar as orelhas dos cadáveres pelas mãos de suas tropas negras que salvam a civilização; em alguns povos existia o costume de matar os velhos e as crianças do sexo feminino e este costume era considerado como altamente moral e sagrado. O regime político muda: Vimos com nossos próprios olhos o absolutismo substituído por uma Republica democrática e em seguida pela dos Soviets; as concepções cientificas, a religião, as condições de existência, as relações entre os homens se transformam. O que nos parece habitual, não foi sempre assim: os jornais, o sabão, a roupa, não existiram sempre, nem tão pouco o Estado, a crença em Deus, o capital ou os fuzis. Mesmo nossas concepções do falso e do feio mudam igualmente. As formas da família não são tão pouco imutáveis: Sabemos muito bem que existe a poligamia, a poliandria, a monogamia e as "ligações irregulares". Em uma palavra, a vida social tanto quanto tudo na natureza está sujeita à continuas transformações.

Certamente, a sociedade humana passa por diversos graus, por diferentes formas de desenvolvimento ou de decadência.

Resulta daí, primeiramente, que é preciso compreender bem e examinar cada uma destas formas sociais em todas as suas particularidades. Isto quer dizer que não se pode aplicar a mesma medida em todas as épocas, em todos os tempos, em todas as formas sociais. Não se pode misturar sem distinção os servos, os escravos, os proletários. Não é possível deixar de ver a diferença entre um proprietário de escravos grego, um russo nobre que comanda servos e um industrial capitalista. O regime de escravidão, tem os seus traços próprios, seu desenvolvimento particular. A servidão representa uma outra espécie de regime, o capitalismo uma terceira, etc. E o comunismo é o regime do futuro; é um regime todo particular. O período de transição que conduz ao comunismo, a época da ditadura do proletariado, constitui um regime a parte. Cada um destes regimes tem seus traços particulares, que devem ser estudados. Somente então, compreenderemos o processo de transformação. Com efeito, se cada forma social tem os seus traços particulares, ela deve também estar submetida a leis de evolução particulares, a leis particulares de movimento. Tomemos, como exemplo, o regime capitalista. Marx escreveu no "Capital" que se propusera como problema "descobrir a lei do movimento da sociedade capitalista". Neste intuito, Marx teve de explicar todas as particularidades do capitalismo, todos os seus traços característicos. E foi somente desta maneira que Marx conseguiu descobrir "a lei do movimento" e predizer a desaparição inevitável da pequena produção em proveito da grande, o crescimento do proletariado, o conflito entre este e a burguesia, a Revolução da classe operaria e, ao mesmo tempo, a passagem ao regime da ditadura do proletariado. Não é desta maneira que procede a maioria dos historiadores burgueses. Eles assimilam, por exemplo, frequentemente, os comerciantes da antiguidade aos capitalistas contemporâneos, e a plebe parasita da Grécia e de Roma aos nossos proletários contemporâneos. A burguesia precisa destes processos para mostrar a vitalidade do capitalismo e para provar que a revolta dos proletários nada pode produzir, do mesmo modo que a insurreição dos escravos da antiga Roma nada produziu. E entretanto, os "proletários", romanos nada têm de comum com os operários modernos, do mesmo modo que os comerciantes de Roma têm muito pouca semelhança com os capitalistas de nossa época. O regime todo era outro; não é portanto de espantar que a marcha da evolução da sua existência fosse também outra. Segundo Marx, "cada período histórico tem suas leis... mas logo que a vida ultrapassa o período de uma dada evolução, que ela sai de um determinado estágio, e passa para um outro, ela começa a ser governada por outras leis". (K. Marx "O Capital", vol. l.°). Quanto á sociologia, esta ciência social mais geral, que estuda não as formas particulares da sociedade, mas a sociedade em geral, é importante estabelecer esta proposição como uma espécie de palavra de ordem para as ciências sociais particulares, em frente às quais a sociologia, como já sabemos, desempenha o papel de um método de pesquisa.

Em segundo lugar é preciso estudar cada forma particular no processo de sua transformação interna. É preciso não pensar que uma forma social imóvel substitui outra forma social também imóvel. Nunca acontece em uma sociedade que o capitalismo, por exemplo, exista durante um certo tempo em uma forma cristalizada, e que ele seja substituído em seguida por um regime socialista também imóvel. Na realidade, cada uma destas formas, evolui continuamente durante toda a sua existência. Examinemos um pouco a época capitalista. O capitalismo teria sido sempre o mesmo? Absolutamente que não. Sabemos que ele atravessou "estágios" diferente na sua evolução: O capitalismo comercial, industrial, financeiro com sua política imperialista, o capitalismo de Estado durante a guerra mundial. Mas, mesmo nos limites de cada um destes períodos, conservou-se o capitalismo imóvel? Não. Se ele estivesse imóvel, uma de suas formas não teria podido se transformar em outra. Na realidade cada estágio precedente preparava o seguinte. Assim, por exemplo, durante o período do capitalismo industrial, tivemos o processo da centralização do capital. É sobre esta base que se desenvolveu em seguida o capitalismo financeiro, com seus bancos e seus "trustes."

Em terceiro lugar, é preciso estudar cada forma social nas suas origens e na sua desaparição inevitável, isto é, relativamente a outras formas sociais. Nenhuma forma social cai do céu; ela constitui uma consequência necessária do estado precedente. É difícil às vezes determinar exatamente os limites onde uma acaba e a outra começa; um período superpõe-se ao outro. Em geral, as etapas históricas não têm tamanhos fixos e imóveis; são processos, formas de flutuação vital que mudam continuamente. Para compreender convenientemente uma destas formas, é preciso encontrar esta raiz no passado, examinar as causas de seu aparecimento, as condições de sua formação, as formas motrizes de seu desenvolvimento. É também necessário estudar as causas de seu fim inevitável, a direção do movimento ou, como se diz, as "tendências da evolução" que determinam a desaparição inevitável dessa forma e preparo á sua substituição por um regime social novo. Assim, cada etapa constitui um elo que se liga por suas duas extremidades a outros elos. Mas se os sábios burgueses o compreendem às vezes, quando se trata do passado, é-lhes completamente impossível admitir que no presente, o capitalismo, está destinado a morrer. Eles aceitam a pesquisa das raízes do capitalismo, mas têm medo de pensar que também é preciso procurar as condições que conduzirão o capitalismo à sua ruína.

"É no esquecimento deste fato que consiste, por exemplo, toda a essência dos economistas contemporâneos, que afirmam a perenidade e a harmonia das relações sociais existentes" (K. Marx: "Eínleitung zu einer Kritik der politischen Oekonomie", p. XVI).

O capitalismo saiu do regime feudal graças ao desenvolvimento da circulação das mercadorias. O capitalismo se dirige para o comunismo pela ditadura do proletariado. É somente depois de ter examinado a relação do capitalismo com o regime precedente, assim como sua transformação necessária em comunismo, que nós compreenderemos esta forma social. É da mesma maneira que devemos estudar qualquer outra forma social. Esta é outra condição do método dialético; este ultimo pode também ser chamado de concepção histórica, cada forma nele sendo examinada não como eterna, mas também como historicamente passageira, como aparecendo em um determinado momento histórico, para desaparecer em outro.

Esta concepção histórica de Marx nada tem de comum com a pretensa "escola histórica" do direito e da economia política. Esta escola reacionária considera seu dever principal provar a lentidão de todas as transformações e defender todas as puerilidades antigas, em virtude da sua idade histórica venerável. É a respeito desta escola que Hehri Heine escreve com razão:

Não vá à Fulda, não vá lá, meu amigo;
Lá o ar é pesado e pernicioso;
Tome cuidado com a polícia e os policiais:
E com toda a escola histórica
(Contos de inverno)

Manter as "santas tradições" — tal é a imperiosa necessidade que se impõe á burguesia. Resulta daí desde logo que os fenômenos, cujas origens se encontram em um determinado período histórico, são considerados como eternos, impostos por Deus, e, portanto, imutáveis. Vamos citar alguns exemplos:

1.º: O Estado. Sabemos muito bem hoje em dia que o Estado é uma organização de classe, que ele não pode existir sem classes; que o Estado acima de todas as classes, é uma fantasia como um quadrado redondo, e que o Estado nasceu em um certo período da evolução humana.

Mas, consultemos os sábios burgueses, e mesmo os melhores!

E. Mayer escreve:

"Observei muitas vezes, há uns trinta anos, entre os cães que enchem as ruas de Constantinopla, até onde pôde chegar a formação de agrupamentos orgânicos de animais; eles se organizam em grupos rigorosamente separados nos diferentes bairros, onde não é permitida a entrada de cães estranhos, e todas as noites os cães do quarteirão organizam reuniões em uma praça deserta, reuniões estas que duravam meia hora aproximadamente e eram acompanhadas de latidos fortes. Pode-se, por conseguinte, falar neste caso em Estados de cães limitados no espaço". (E. Mayer: "Geschichte des Altertums. Elemente der Anthropologie", pag. 7).

Nada admira, que depois disto Meyer considere o Estado como uma propriedade imutável da sociedade humana! Se até os cães têm os seus Estados (e, por conseguinte, leis, direitos, etc.) como poderiam os homens dispensá-los?

2.°: É de uma maneira análoga que os economistas burgueses consideram o capital. Sabemos perfeitamente que o capitalismo, como o próprio capital, não existiu sempre.

Os capitalistas e os operários são formações históricas que nada têm de eternas. Entretanto, os sábios burgueses sempre definiram o capital como se o capital e o regime capitalista sempre tivessem existido. Assim, Torrens escreve:

"Na primeira pedra que o selvagem atira contra a caça, na primeira vara que ele usa para colher frutos... vemos a apropriação de objetos com o fim de adquirir outros, e descobrimos assim a origem do capital". (K. Marx, "o Capital", t. 1, anotação).

"É assim que um macaco que derruba nozes é um capitalista" (é verdade que sem operário)!

Os economistas burgueses mais modernos não raciocinam melhor. Para provar a perenidade do poder, são os coitados forçados a equiparar cachorros a Lloyds Georges; macacos a Rothschilds.

3.º: Os burgueses que estudam a questão do imperialismo definem frequentemente este ultimo como uma tendência de qualquer forma vital para a sua expansão. Sabemos perfeitamente que o imperialismo, é a política do capital financeiro, que o próprio capital financeiro nasceu somente no fim do século XIX como forma econômica dominante. Mas os sábios burgueses disso não se preocupam. Para mostrar que "sempre foi assim e que sempre será assim", eles elevam a galinha que cisca ao nível dos imperialistas, porque ela "anexa" o grão! O cão estadista, o macaco capitalista e a galinha imperialista caracterizam suficientemente o nível da ciência burguesa moderna.

§ 23. As contradições na evolução histórica

Assim, é a lei da variação, a lei do movimento incessante que constitui a base de tudo. Dois filósofos, um antigo (Heráclito), outro mais moderno (Hegel), como vimos defenderam a concepção segundo a qual tudo o que existe muda e se move. Mas eles não se limitaram a isto. Formularam também a pergunta de como se processa este movimento. E foi assim que descobriram o fato das variações serem provocadas pelas contradições internas crescentes, por uma luta interior.

"A luta é a mãe de tudo o que se passa", dizia Heráclito.

"A contradição, é aquilo que impele para frente", escreveu Hegel.

Esta proposição é incontestavelmente exata. Com efeito, imaginemos um instante que não haja no mundo nenhum conflito de forças, nenhuma luta, que as forças diferentes não sejam dirigidas umas contra as outras. O que significaria isto? Significaria que o mundo inteiro se acha em estado de equilibro, isto é, em estado de estabilidade inteira e absoluta, em estado de completo repouso, excluindo qualquer movimento. Onde vemos nós o repouso? Ele existe nos lugares onde todas as parcelas, todas as forças se encontram de tal forma relacionadas que entre elas não haja lugar para conflito, noutras palavras, onde não existe nenhuma contradição, nenhuma oposição de forças em luta, onde o equilíbrio jamais se rompe, onde domina, pelo contrario, uma perfeita estabilidade. Mas nós já sabemos que de fato "tudo se move", "tudo corre". O repouso, a estabilidade absoluta não existem. Vamos explicar isto de uma forma mais precisa.

Como sabemos, a biologia (ciências dos organismos) fala em adaptação. Compreende-se pelo nome de adaptação um estado de coisas em que aquilo que se adapta à outra pode coexistir por muito tempo com ela. Se, por exemplo, se diz que uma espécie de animais "adaptou-se" à um certo meio, isto quer dizer que ela pode viver neste meio; ela se habituou a este ultimo, e suas qualidades são tais que lhe permitem viver nele. Uma toupeira está "adaptada" às condições que ela encontra debaixo da terra, um peixe está adaptado à água; mas jogai uma toupeira na água ou enterrai um peixe, ambos morrerão.

Observamos também um fenômeno análogo na, por assim dizer, natureza "morta"; assim, a terra não cai sobre o sol, e sim gira em torno dele, sem nele "esbarrar". O sistema solar por inteiro se encontra em relação com o resto do universo de tal maneira que ele pode existir de uma forma durável, etc. Aqui, fala-se habitualmente, não mais de adaptação, mas de equilíbrio entre os corpos, entre os sistemas de corpos, etc.

Enfim, observamos também um fenômeno análogo na sociedade. A sociedade vive bem ou mal no meio da natureza; a ela se "adaptou" mais ou menos bem, com ela se acha em equilíbrio mais ou menos instável. Enquanto vive, as suas diferentes partes estão adaptadas umas às outras de tal maneira que a sua coexistência é possível; com efeito, os capitalistas e os operários coexistem já há muito tempo!

Por estes exemplos, se vê que na realidade, trata-se em ambos os casos de uma mesma coisa: do equilíbrio. Se assim é, porque falar em contradições e em lutas? Ao contrario, a luta é uma ruptura de equilíbrio! Pois bem, o equilíbrio que observamos na natureza e na sociedade não é absoluto e nem imóvel: é um equilíbrio instável. Toda a questão repousa nisto; o que significa este termo? significa que o equilíbrio uma vez estabelecido logo se destrói, para se restabelecer em outra base, e ser novamente destruído. E assim por diante.

A noção exata de equilíbrio é mais ou menos a seguinte:

"Diz-se que um determinado sistema está em equilíbrio quando não pode por si mesmo sair desse estado, isto é, sem o auxilio de uma energia exterior".

Se, por exemplo, forças que se equilibram mutuamente exercem uma pressão sobre um corpo qualquer, este ultimo se acha em estado de equilíbrio; é suficiente diminuir ou aumentar uma destas forças para que o equilíbrio seja destruído.

Se um corpo volta rapidamente ao seu equilíbrio momentaneamente rompido, diz-se que o equilíbrio é estável; no caso contrario, isto é, quando o corpo não volta ao estado de equilíbrio anterior diz-se que o equilíbrio é instável. Nas ciências naturais, distingue-se o equilíbrio mecânico, químico, biológico (Ver "Handworterbuch der Naturwissenschaften", tomo 2, pag. 470-518). Pode-se ainda exprimir isto de outra maneira. Existem no mundo forças diferentes dirigidas umas contra as outras. Elas não se equilibram mutuamente senão em casos excepcionais. É então que vemos aparecer um estado de "repouso", isto é, que a "luta" real entre estas forças não é aparente. Mas basta que uma destas forças mude para que as "contradições internas" apareçam, para que o equilíbrio se rompa, e um outro equilíbrio se estabelece então, cujo princípio será outro, com combinações de forças diferentes, etc. O que podemos concluir daí? Concluímos que a "luta", as "contradições", isto é, os antagonismos entre as forças dirigidas diferentemente determinam o movimento.

Por outro lado, vemos também aqui a forma destes processos: em primeiro lugar, o estado de equilíbrio, em segundo lugar a ruptura deste equilíbrio, em terceiro lugar o restabelecimento do equilíbrio em uma base nova. Em seguida, a história recomeça: o novo equilíbrio torna-se o ponto de partida de uma nova ruptura de equilíbrio, e assim por diante, até o infinito. Temos diante dos olhos, em conjunto, o processo dum acontecimento determinado pelo desenvolvimento das contradições internas.

Hegel, apercebeu-se deste caráter do movimento e exprimiu-o da seguinte maneira: ele denominou o equilíbrio primitivo "tese"; a ruptura de equilíbrio, "antítese", isto é, oposição; o restabelecimento de equilíbrio sobre uma nova base, "síntese" (estado de unificação na qual todas as contradições entram em acordo). É a este caráter do movimento de tudo o que existe, expresso em uma formula composta de três partes (a tríade), que Hegel deu o nome de dialética.

O termo "dialética" significava para os antigos gregos a arte de falar, de discutir. Como é que se discute quando dois homens se contradizem? Um diz uma coisa, outro uma coisa contraria (esse "nega" aquilo que diz o primeiro); enfim, "a verdade nasce da discussão" e contém aquilo que era verdadeiro nas duas afirmações (a síntese). É também da mesma maneira, que se desenvolve o processo do pensamento. Hegel, sendo idealista, representava tudo como o desenvolvimento independente do espírito. Está claro que ele nunca pensou em rupturas de equilíbrio. As qualidades do pensamento, este sendo uma coisa espiritual e primaria, eram para ele, por esta razão, as qualidades da existência. A este propósito, Marx escreveu

"o método dialético não somente difere, quanto ao fundo, do método de Hegel, mas ainda ele lhe é completamente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento, que ele transforma, sob o nome de idéia, em um sujeito independente, é a sua manifestação exterior. Para mim, ao contrario, a idéia não é mais do que o mundo material traduzido e transformado pelo cérebro humano." "A dialética de Hegel está colocada de pernas para cima. É preciso colocá-la de cabeça para cima, para descobrir o núcleo racional sob o seu envelope místico". (Marx: "O Capital", tomo 1, prefacio).

Para Marx, a dialética, isto é, o desenvolvimento pelas contradições, é, antes de tudo, a lei de "existência", a lei do movimento da matéria, a lei do movimento da natureza e da sociedade. O processo do pensamento não é senão a sua expressão. O método dialético, a maneira dialética de pensar é indispensável, porque ela permite apanhar a dialética da natureza.

Nós consideramos perfeitamente possível traduzir a linguagem "mística", como a chamou Marx, da dialética de Hegel, para a linguagem da mecânica moderna. Há relativamente pouco tempo quase todos os marxistas protestaram contra as definições de ordem mecânica. Eles agiram assim porque a antiga concepção dos átomos considerava estes últimos como parcelas isoladas, sem nenhuma ligação umas com as outras. Na hora atual, graças à teoria dos elétrons e dos átomos considerados como sistemas inteiros, análogos ao sistema solar, não há mais razão para temer as definições mecânicas. A corrente mais adiantada do pensamento cientifico formula em toda parte o problema exatamente desta maneira. Marx faz claramente alusão a uma maneira análoga de formular a pergunta (a teoria do equilíbrio entre os diversos ramos da produção, a teoria do valor do trabalho que se prende a ela, etc.). Podemos considerar qualquer objeto seja ele uma pedra, um ser vivo, a sociedade humana ou outro, como um composto de elementos ligados entre si. Em outros termos, podemos examinar este conjunto como um sistema. Cada objeto deste gênero (sistema) não existe no vazio; ele está envolto por outros elementos da natureza que constituem o seu ambiente (meio). Para uma arvore que cresce em uma floresta, seu meio é constituído por outras arvores, pelos riachos, pela terra, pela erva, os arbustos, etc., com todas as suas qualidades. Para um homem, o ambiente, é a sociedade humana, dentro da qual ele vive (daí vem o termo "meio"). Para a sociedade humana, o meio é constituído pela natureza exterior, etc. Existe uma relação constante entre o meio e o sistema. O "meio" exerce uma influencia sobre o "sistema"; este ultimo influi por sua vez sobre o "meio". Devemos em primeiro lugar responder a uma questão de princípio: Quais são as relações entre o meio e o sistema? Como podem ser determinadas? Quais são as suas formas? Que significação têm elas para o sistema?

Entre estas relações, distinguimos imediatamente três tipo principais:

1.° O equilíbrio estável. — O equilíbrio estável se produz quando as relações mutuas entre o meio e o sistema se exprimem por um estado de coisas constante, ou então por desordens passageiras, depois das quais o sistema volta ao estado primitivo. Suponhamos, por exemplo, uma espécie de animais vivendo na estepe. O meio em si não muda, a quantidade de alimentação necessária para essa espécie permanece constante. A quantidade de feras tão pouco muda: Todas as moléstias de origem microbiana (tudo isto compõe o "meio") reinam nas mesmas proporções. O que acontecerá então? Em geral, o numero dos animais, ficará invariável: uns morrerão ou perecerão por culpa das feras, outros nascerão, mas a espécie em questão, em tais condições do meio, será considerada tal qual ela sempre foi. Temos aqui um exemplo de estagnação. Por que? Porque a relação entre o sistema (a espécie de animais considerada) e o seu meio permanece invariável. Temos aqui um caso de equilíbrio estável. Este ultimo não está sempre em um estado de completa imobilidade. O movimento pode existir, mas cada ruptura de equilíbrio é seguida pelo seu restabelecimento sobre a base antiga. Neste caso, a oposição entre o meio e o sistema se repete constantemente na mesma relação quantitativa. O mesmo exemplo nos é oferecido por uma sociedade em estagnação (tornaremos a falar disto em detalhe mais adiante). Se a relação entre a sociedade e a natureza permanece a mesma, isto é, se esta sociedade, pela sua produção, tira da natureza tanta energia quanto ela mesma perde, a oposição entre a sociedade e a natureza se reproduzirá sempre na sua forma antiga. A sociedade não sai do lugar, e estamos em presença de um equilíbrio estável.

2.° O equilíbrio instável com sinal positivo (o desenvolvimento do sistema). — De fato, o equilíbrio estável não existe. Não é senão uma ficção "ideal". Na realidade, a relação entre o meio e o sistema nunca se reproduz nas mesmas proporções. Em outros termos, a ruptura de equilíbrio não traz, na realidade, a reconstituição deste sobre a mesma base, mas, pelo contrario, um novo equilíbrio que se estabelece em uma nova base. Vamos supor por exemplo, voltando aos animais dos quais já tratamos acima, que a quantidade de feras diminuiu por uma razão qualquer e que, pelo contrario, a quantidade de alimentos aumentou. Não é duvidoso, que neste caso, o numero de animais aumentará. Nosso "sistema" se desenvolverá, um novo equilíbrio se estabelecerá sobre uma base mais elevada. Estamos aqui em presença de um desenvolvimento. Em outras palavras, a oposição entre o meio e o sistema mudou quantitativamente.

Se invés de animais, tomamos uma sociedade humana e supomos que a relação entre ela e a natureza muda de tal forma que a sociedade tira da natureza mais energia do que perde (o solo se tornou fértil ou então inventaram-se novos instrumentos, etc.), então essa sociedade crescerá, e não mais marcará passo. O novo equilíbrio será cada vez diferente. A oposição entre a sociedade e a natureza se reproduzirá cada vez sobre uma mesma base "mais elevada", graças a qual o sistema aumentará, e se desenvolverá. Estamos aqui em presença de um equilíbrio por assim dizer, de sentido positivo.

3.º Equilíbrio instável, com sinal negativo (a destruição do sistema). — Um caso absolutamente contrario pode-se apresentar, quando o equilíbrio se estabelece sobre uma base "inferior". Vamos supor por exemplo, que a quantidade de alimentos tenha diminuído para os nossos animais, ou então, que o numero de feras que deles se alimentavam tenha aumentado. Neste caso, nossa espécie tenderá a "desaparecer". O equilíbrio entre o meio e o sistema se restabelecerá cada vez à custa de uma parte deste sistema; as oposições se reproduzirão sobre uma outra base no sentido negativo. Examinemos o exemplo da sociedade. Vamos supor que a relação entre a natureza e a sociedade muda de tal forma que esta última seja obrigada a perder cada vez mais energia e receber cada vez menos (o solo se esgota, os meios técnicos pioram, etc.). Então, o novo equilíbrio se restabelecerá cada vez sobre uma base inferior, em detrimento da sociedade, e uma parte desta perecerá. Teremos aqui um movimento no sentido negativo, a sociedade caminhará para a decomposição e a morte.

Pode-se reduzir todos os casos a um destes três. Na base do movimento, como já vimos, acha-se na realidade, a oposição entre o meio e o sistema, oposição que renasce continuamente.

Mas o problema apresenta ainda um outro aspecto. Não falamos até este momento senão nas contradições entre o meio e o sistema, nas contradições externas. Mas existem também contradições internas, no interior do próprio sistema. Cada sistema é composto de diferentes elementos ligados entre si; a sociedade humana é composta de homens; a floresta, de arvores e arbustos; um rebanho, de animais; um monte, de pedras, etc... É entre estes elementos componentes que se encontra um grande numero de oposições, de encontros, de conflitos. Um equilíbrio absoluto não prevalece. Se, estritamente falando o equilíbrio absoluto entre o meio e o sistema nunca se realiza, não existe tão pouco um tal equilíbrio entre os elementos do mesmo sistema.

É pelo exemplo do sistema mais complexo, o da sociedade humana, que melhor verificamos isto. Não encontramos nele um numero infinito de contradições? A luta das classes é a expressão mais clara destas "contradições sociais" e sabemos que "a luta de classes é a alavanca da historia". As oposições entre as classes, entre os agrupamentos, entre as idéias, as oposições entre os modos de produção e de repartição, a desordem na produção — a anarquia capitalista da produção — tudo isto forma uma corrente sem fim de contradições e constitui outras tantas contradições no interior do sistema, devidas à própria estrutura desta última (contradições da estrutura). Entretanto, estas contradições por si mesmas não destroem a sociedade. Elas podem destruí-la (quando por exemplo as duas classes em luta perecem em uma guerra civil), mas elas podem muitas vezes não destruí-la.

Neste ultimo caso, é preciso que exista um equilíbrio instável entre os elementos da sociedade. A analise deste equilíbrio será objeto de nosso estudo ulterior. No momento só uma coisa nos importa: não se pode considerar a sociedade, como o fazem frequentemente os sábios burgueses, como se não existissem no seu seio contradições. Ao contrario, o estudo cientifico da sociedade pressupõe o exame desta do ponto de vista das contradições que ela encerra. "A evolução" histórica é uma evolução contraditória.

É preciso que detenhamos nossa atenção também sobre um fato ao qual voltaremos muitas vezes nesta obra. Como já dissemos, há duas espécies de contradições: entre o meio e o sistema e entre os elementos do próprio sistema. Existirá uma ligação qualquer entre estes dois fenômenos?

Basta refletir um instante para responder afirmativamente.

É evidente que a estrutura interior do sistema (o equilíbrio interno) deve mudar segundo as relações existentes entre o sistema e o meio. A relação entre o sistema e o meio é um fator que determina com efeito o estado do sistema; as formas essenciais de seu movimento (decadência, desenvolvimento, estagnação), são determinadas por esta relação.

Examinemos a questão da seguinte maneira: Vimos acima que o caráter do equilíbrio entre a sociedade e a natureza determina a linha essencial do movimento social. Nestas condições a estrutura interna poderá desenvolver-se por muito tempo em uma direção contraria? Certamente que não. Admitamos que estamos tratando de uma sociedade em desenvolvimento. Será possível que, nestas condições, a estrutura interna da sociedade piore continuamente? Certamente que não. Se entretanto, graças à sua estrutura, a situação interna se agrava, enquanto a sociedade em si se desenvolve, isto é, se a sua desordem interna aumenta, isto prova que estamos em presença de uma nova contradição entre o equilíbrio interno e externo. O que acontecerá então? Se a sociedade continua a se desenvolver ela será obrigada a se reconstruir; isto quer dizer que a sua estrutura interna deverá se adaptar ao caráter do equilíbrio externo. Por conseguinte: o equilíbrio interno (da estrutura) é um fator que depende do equilíbrio externo. Ele é "função" deste equilíbrio externo.

§ 24. A teoria das transformações por saltos e a teoria das transformações revolucionárias nas ciências sociais

Falta-nos agora examinar o ultimo lado do método dialético, a saber: a teoria das transformações por saltos. Como sabemos, existe uma opinião muito generalizada, segundo a qual a natureza não dá saltos (natura non facit saltus). Esta sábia locução é usada habitualmente para provar de uma maneira "sólida" a impossibilidade da Revolução, bem que as Revoluções continuem a existir, apesar de todos os sábios professores. Mas, na realidade, será a natureza tão moderada e ordenada quanto afirmam?

Hegel escreve a este respeito na sua "ciência da lógica" ("Wissenschaft der Logic", Hegels Werke, 2.ª edição, v. 3, pag. 434):

"Diz-se que a natureza ignora os saltos e isto é claro quando se trata de uma simples aparição ou desaparição no sentido de um desenvolvimento gradual; ora, a transformação não é somente quantitativa, mas também qualitativa, e consiste na aparição de uma coisa nova, diferente, na ruptura da forma do ser."

O que significa isto?

Hegel fala da passagem da quantidade à qualidade. Vamos explicar isto com um exemplo muito simples. Vamos supor que aquecemos água. Enquanto a temperatura estiver abaixo de 100°, ela não entrará em ebulição e não se transforma em vapor. Suas parcelas se agitam cada vez mais rapidamente mas não surgem na superfície em estado de vapor. Não observamos senão uma transformação de quantidade, as partículas se agitam cada vez mais rapidamente, a temperatura sobe, mas a água continua água, com todas as suas qualidades. A quantidade muda continuamente, mas a qualidade permanece a mesma. Mas quando a água chegar à temperatura de 100°, isto é, no ponto de ebulição, ela começa a ferver bruscamente, como se as parcelas, que giravam com uma velocidade vertiginosa, tivessem perdido a cabeça e saltado à tona em forma de bolhas de vapor. A água deixa de ser água: ela torna-se vapor, gás. É uma nova matéria, tendo novas qualidades. Aqui notamos duas particularidades principais no processo de transformação.

Em primeiro lugar, num certo grau de movimento, as transformações quantitativas provocam modificações qualitativas (ou, como se diz mais brevemente: "a quantidade se transforma em qualidade"); em segundo lugar, esta passagem da quantidade à qualidade faz-se por um salto, a continuidade e a "gradação" sendo bruscamente transtornadas. A água não se transforma constantemente e em sábia progressão, primeiro em um "pequeno" vapor, que em seguida se torna um "grande vapor. Ela não ferveu até um certo momento, mas começou a fazê-lo no momento em que chegou a um certo "ponto". É a isto que se denomina um salto.

A transformação da quantidade em qualidade é uma das leis essenciais do movimento da matéria, que pode ser seguida na natureza e na sociedade, literalmente passo a passo. Suspendei um peso a um fio e juntai pouco a pouco pesos suplementares. Até um certo limite, o fio resiste, mas logo que ultrapassarmos um certo limite, ele se quebra instantaneamente (por salto). Condensai o vapor numa caldeira. Até um certo momento, tudo irá bem; somente o ponteiro do manômetro (instrumento que indica a pressão do vapor) marcará uma mudança quantitativa da pressão exercida pelo vapor sobre as paredes da caldeira. Mas logo que a agulha tiver passado de um certo limite, a caldeira arrebentará. A pressão do vapor foi um pouco maior do que a resistência das paredes. Até este momento, as transformações quantitativas não tiveram como consequência um "salto", uma transformação qualitativa, mas chegando a um certo ponto, a caldeira estourou. Muitos homens são incapazes de levantar uma pedra; um homem se junta a eles, e eles ainda não conseguem levantá-la; chega uma mulher fraca e todos era conjunto levantam a pedra. Foi necessário um muito pequeno suplemento de força, e com ele, foi possível levantar a pedra. Tomemos ainda um exemplo no domínio da sensação humana. Existe um conto de Léon Tolstoi intitulado "três pães e um bolinho", que trata do seguinte: um homem tinha fome e não conseguia matá-la; ele come um pão e a fome continua; ele come um outro e a fome persiste; o mesmo acontece depois do terceiro; mas depois de comer o bolinho, ele percebe repentinamente que não tem mais fome. Ele começa então a se injuriar por não ter comido em primeiro lugar o bolinho; não teria sido preciso, diz ele, comer os três pães. Entretanto, está claro que o homem se engana. Aqui também, a transformação qualitativa, a passagem da sensação de fome à sensação de saciedade, produz-se mais ou menos por "salto" (depois do bolinho). Mas esta transformação qualitativa foi preparada por uma transformação quantitativa: se ele não tivesse comido os pães, o bolinho não o teria saciado.

Vemos assim que é absurdo negar os "saltos" e de falar somente em progressão prudente. Na realidade, frequentemente encontramos saltos na natureza e o ditado segundo o qual "a natureza não dá saltos" não é senão a expressão de um medo dos "saltos" na sociedade, isto é, a expressão do medo das revoluções.

É característico verificar que as antigas teorias burguesas relativas ao problema da origem do mundo eram teorias catastróficas, certamente muito ingênuas e inexatas. Assim é, por exemplo, a teoria de Cuvier. Ela foi substituída em seguida pela teoria da evolução que trouxe muita coisa nova, mas que, por princípio, negava os saltos. Em geologia, por exemplo, assim são as teorias Lyell ("Principies of Geology); mas, desde o fim do século passado, viram-se aparecer novamente teorias que reconhecem o importante papel desempenhado pelos saltos. Assim a teoria do botânico De Vries ("La theorie des Mutations": "mutation" — mudança súbita", que afirma, que de tempos em tempos, como consequência de modificações anteriores, produzem-se transformações súbitas, que em seguida, se consolidam e tornam-se o ponto de partida de uma nova evolução. Não se vai longe hoje em dia com as antigas concepções que negavam os "saltos". Estas concepções (Leibnitz diz, por exemplo: "Tudo na natureza caminha gradativamente e nada por saltos") se originam evidentemente no conservadorismo social.

Se os sábios burgueses negam o caráter contraditório da evolução, eles o fazem de medo da luta de classe e com o fim de encobrir as contradições sociais. Da mesma maneira, o medo dos saltos se baseia no medo da revolução. Toda esta sabedoria se reduz ao seguinte raciocínio: a natureza ignora os saltos que não existem e não podem existir. Portanto, proletários, não pensai em fazer a Revolução!

Mas nota-se aqui com clareza a que ponto a ciência burguesa contradiz os postulados científicos os mais essenciais. Com efeito, todos sabem que houve um grande numero de revoluções É impossível negar a Revolução inglesa ou a grande Revolução Francesa ou ainda a de 1848, ou enfim a Revolução Russa de 1917-1921. E, se estes saltos se produzem na vida social, não compete à ciência "negá-los", isto é, esconder-se diante da realidade como o avestruz, mas sim compreendê-los e explicá-los.

As revoluções na sociedade são o equivalente dos saltos na natureza. Elas não são devido a surpresas. Elas são preparadas pela evolução anterior, como a ebulição da água é preparada pelo aquecimento ou a explosão da caldeira pela crescente pressão do vapor sobre as suas paredes. A revolução na sociedade, é a sua reconstrução, "a modificação do sistema no ponto de vista de sua estrutura"; ela decorre infalivelmente como consequência de uma contradição entre a estrutura da sociedade e as necessidades de seu desenvolvimento.

Diremos adiante como isto se produz. No momento, é preciso saber uma coisa:

"tanto na sociedade quanto na natureza, certas coisas se fazem por saltos; na sociedade, tanto quanto na natureza, estes saltos são preparados pela marcha anterior dos acontecimentos ou em outros termos, na sociedade e na natureza a evolução (desenvolvimento gradual) conduz para a Revolução (salto): os saltos pressupõem uma modificação continua, e a modificação contínua conduz aos saltos. São dois momentos necessários do mesmo processo" (Plekhanov: "Criticas de nossas criticas", 1903.)

O problema das contradições na evolução e dos saltos constituem um dos pontos essenciais da teoria. Toda uma série de escolas e de tendências burguesas podem ser hostis à teleologia, favorável ao determinismo, etc. Mas elas tropeçam cada vez que tocam neste problema.

A teoria de Marx não é uma teoria evolucionista, mas revolucionaria. É por esta razão que ela é inaceitável para os teóricos da burguesia. E é por esta razão que eles estão prontos a "admitir" tudo nesta teoria, com exceção... da dialética revolucionaria. A sua critica do marxismo segue habitualmente a mesma linha. Assim, por exemplo, o professor alemão Werner Sombart se inclina respeitosamente diante de Marx enquanto se trata de evolução, mas ele começa imediatamente a atacá-lo quando verifica os elementos revolucionários do marxismo. Teorias completas são forjadas com este fim. Marx, dizem, é um sábio enquanto é evolucionista, mas, logo que ele se torna, mesmo em teoria, revolucionário, deixa de ser sábio, deixa-se levar por paixões revolucionárias e abandona a ciência. O Sr. Pierre Strouvé, ex-marxista, autor do primeiro manifesto da social-democracia russa, tornou-se, em seguida, líder monarquista e principal teórico da contra-revolução; também começou a sua critica de Marx pela teoria dos saltos. Plekhanov, que era então revolucionário, escreveu a este respeito:

"O sr. Strouvé encarregou-se de nos mostrar que a natureza não dá saltos, e que o intelecto (a razão) não os admite. Como se explica isto? Talvez não tenha ele em vista senão o seu próprio intelecto que, com efeito, não suporta saltos pela simples razão de que o Sr. Strouvé, como se diz, não pode suportar uma certa ditadura ("Critica de nossas criticas"). A pretensa "escola orgânica", os "positivistas", os partidários de Spencer, os evolucionistas, etc., são todos adversários dos saltos, pois eles não gostam de "uma certa ditadura".

Bibliografia do Capítulo III

As obras já citadas nos dois primeiros capítulos. Além destas:


Inclusão 01/06/2011
Última alteração 29/03/2012