Sobre o texto de Lenin, “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, a condenação dos futuros renegados

Il Programma Comunista


II. História da Rússia ou da humanidade?


Revolução russa e mundial

Ao empreendermos uma exposição ordenada dessa obra de Lenin [Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo] — por motivos “urgentes”, essa obra introduziu a sistematização teórica das teses do II Congresso Mundial, contando em grande parte com a colaboração pessoal de Lenin, e a espera das quais a brochura atual, em sua segunda edição, recebeu o subtítulo: “ensaio para um debate popular sobre a estratégia e a tática marxistas” (devido à modéstia do autor, assim como o clássico “Imperialismo”, que tem “ensaio popular” como subtítulo) –, devemos nos perguntar se todos aqueles que a citam, como está na moda, contra a Esquerda Comunista, ou seja, contra a única corrente fiel ao marxismo, sequer leram a primeira página.

Basta a primeira página para destruir a obra-prima da infâmia stalinista, cujos efeitos contrarrevolucionárias superaram em muito o impacto nefasto de todos os social-patriotas de 1914; isto é, a desprezível “teoria” do socialismo em um só país. Ainda hoje, os jornais stalin-khruschevistas e o “retificado” Breve curso sobre a história do partido bolchevique(1) insistem em dizer que essa pretensa teoria foi fundada por Lenin!

Que socialista direitista da II Internacional chegou a escrever tamanha falsificação como a seguinte, extraída do jornal L’Unità(2), de 31 de agosto de 1960?

Da falsa suposição de que as conquistas da revolução socialista na Rússia só poderiam ser defendidas com o apoio de uma revolução socialista mundial, os “esquerdistas” concluíram que o papel do poder soviético seria, em primeiro plano, o de fomentar a revolução em outros países, por meio de uma guerra contra o imperialismo mundial.

Aqui está a primeira falsificação contra a esquerda, que queria incitar a revolução fora da Rússia por meio da ação da Internacional dos partidos comunistas, e não por uma guerra do Estado russo; esta ideia define mais o stalinismo em seu início, muito distinto do moderno e ainda mais desprezível khruschevismo.

Mas a maior falsificação é feita às custas de Lenin. O novo manual afirma que

Lenin demonstrou que a teoria de “fomentar” a revolução internacional em nada tinha a ver com o marxismo, segundo o qual o desenvolvimento da revolução depende da maturação da luta de classes dentro dos países capitalistas. Na verdade, essa é uma das pressuposições da concepção leninista da ‘coexistência pacífica’ [!](1)

Desse modo, para os compiladores do novo manual (que o exaltam como livre de certas falsificações na primeira edição, como a suposta conspiração de Trotski para assassinar Lenin à época de Brest-Litovsk, mas continuam mentindo que Trotski não seguiu a política de Lenin), o marxismo-leninismo deve ser uma teoria para o “adormecimento” da revolução!

Havíamos recordado que o primeiro capítulo trata da importância internacional da revolução russa. Aqueles que releram a definição explícita de Lenin sobre o caráter da revolução russa, que tem um valor geral internacional, não devem esquecer a tese oficial dos leninistas de hoje, do mesmo calibre de Khruschev e Togliatti. Desde o XX Congresso russo, esses senhores proclamam que cada país tem sua própria “via nacional” para o socialismo; portanto, que cada caso seria diverso da via russa. Mas quais seriam, segundo essa manipulação, as características da revolução russa que não seriam, para usar um termo de Lenin, obrigatórias em todas as outras revoluções? Eles não escondem suas posições. Teriam sido características apenas acidentais ao caso russo justamente a ditadura do proletariado, o sistema de sovietes, o terrorismo revolucionário e, por que não, a violência insurrecional. Justamente a destruição do parlamento (a assembleia constituinte) seria uma peculiaridade da revolução russa e não, como exultamos na época, de forma entusiástica e unânime em concordância com o verdadeiro Lenin, a primeira realização da teoria marxista da revolução proletária, que esperávamos em todos os países.

Agora leiamos Lenin:

nos primeiros meses após a conquista do poder político pelo proletariado na Rússia (25 de outubro a 7 de novembro de 1917), parecia que a enorme diferença entre a Rússia atrasada e os países desenvolvidos da Europa Ocidental tornaria a revolução proletária nesses países muito pouco similar à nossa(3)

Convém nos determos nesse trecho, apesar de se tratar de um ensaio popular e não de um palimpsesto. Em primeiro lugar, Lenin não compara a revolução russa com a revolução mundial, mas fala da Europa Ocidental. De fato, em 1920, Lenin, e nós ao lado dele (nada proíbe que alguém nos chame de idiotas, mas não se pode dizer leninista quem pensa na direção oposta a todo o fronte), esperávamos a revolução não na Ásia ou na América, mas entre a Rússia e o Atlântico. Essa era a condição para que a revolução russa não capitulasse historicamente, como ela teve que fazer.

Por que parecia que o desenvolvimento da revolução na Europa Ocidental seria distinto do que se passou na Rússia, e em que sentido? A Rússia era atrasada, sobretudo politicamente, visto que há poucos meses havia saído do despotismo feudal e, sendo assim, sua revolução seria distinta à de um país onde o despotismo e o feudalismo haviam sido suplantados há séculos, como na França ou na Inglaterra. Isso, e todas as outras diferenças, poderiam sugerir que a expectativa geral sobre a revolução proletária russa seria um pouco apagada, incerta e hesitante se comparada àquela dos países de capitalismo pleno, onde se poderia esperar, com razão, que ela fosse mais nítida, decidida e arrebatadora. É suficiente pensar que a hegemonia do proletariado e seu partido sobre os “demais trabalhadores”, postulado central nessa obra de Lenin, seria muito mais fácil e completa na Europa Ocidental industrializada.

Só alguns filisteus da II Internacional, superados somente por outros mais repugnantes que emergiram do cadáver da III Internacional, poderiam insinuar que o terror proletário, a ditadura e a dissolução do parlamento não seriam características européias, mas “asiáticas” — assim foi cunhado esse senso comum tão ridículo.

Os oportunistas daquela época faziam isso para caluniar a Rússia vermelha, enquanto oportunistas mais infames no presente os repetem, esperando que se acredite que eles estão a exaltando.

Se a revolução russa se livrou do parlamento poucos meses após a instituição de um verdadeiro sistema eleitoral, qual seria a suposta diferença para os países que possuíam parlamentos há um século? É necessário o rosto chifrudo dos traidores de hoje para insinuar que, nesses países, o parlamento se tornaria uma via possível ao socialismo (diziam algo pior os social-democratas no começo deste século?); para eles, o parlamento na Rússia foi enxotado a baionetas por diversão, por descuido ou porque o grande Vladimir estava bêbado de vodka!

Características de todas as revoluções

Lenin estabelece que, apesar da diferença radical dos pontos de partida social e históricos, os processos essenciais da revolução bolchevique estarão presentes em todos os países. Quais são esses processos? Um estudo rigoroso deste trabalho, junto com a totalidade dos trabalhos marxistas-leninistas não falsificados, nos permite responder de forma clara. É claro que qualquer um pode acreditar que os eventos dos últimos quarenta deram um curso diferente à história, e assim passe a renunciar ao marxismo-leninismo.

Agora [em abril de 1920] temos já uma experiência internacional muito considerável, que diz com a mais completa precisão que alguns dos traços fundamentais da nossa revolução têm uma importância não local, não nacional particular, não apenas russa, mas internacional.

Aqui o autor tem medo de ser mal compreendido e quer ser mais preciso:

não falo aqui da importância internacional no sentido amplo da palavra: não são apenas alguns, mas todos os traços fundamentais e muitos dos secundários da nossa revolução que têm importância internacional no sentido da influência sobre todos os países. Não, no sentido mais estrito da palavra, isto é, entendendo por importância internacional o significado [talvez valor seja uma tradução melhor] internacional ou a inevitabilidade histórica da repetição à escala internacional daquilo que aconteceu no nosso país, é preciso reconhecer essa importância a alguns traços fundamentais da nossa revolução. (Ibid. p. 279)

Alguns, mas não todos? Essa é precisamente a tese da esquerda nos congressos da Internacional comunista. Lenin explica isso em seguida. Mas vale a pena apontar por que, em sentido amplo, todos os eventos são de importância mundial e, em sentido estrito, somente alguns, que são colocados (ou melhor, confirmados) pelo programa marxista da revolução, têm a mesma importância. A supressão da família imperial foi da maior importância internacional, e ainda há os que resmungam sobre isso. Mas, no sentido estrito, essa não é uma característica a ser “inevitavelmente repetida em todo lugar”. Em países sem uma dinastia, isso não será uma necessidade. Os filhos do czar foram mortos por conta do direito dinástico da sucessão; onde não existe esse direito, o assassínio é inútil.

Assim, das características válidas no sentido estrito, somente algumas serão válidas para todas as revoluções fora da Rússia; outras não serão válidas. Quais e por quê? Basta somente ler com atenção, e será possível aprender com uma passagem da maior importância.

Naturalmente, seria o maior erro exagerar essa verdade, estendendo-a não só a alguns traços fundamentais da nossa revolução. Seria igualmente errado perder de vista que, depois da vitória da revolução proletária, ainda que apenas num dos países avançados, começará por certo uma mudança brusca, a saber: a Rússia deixará logo depois disso de ser uma país modelo, será outra vez um país atrasado (no sentido “soviético” e socialista). (Ibid. p. 279)

Essa é uma ideia central ao leninismo: a revolução logo se alastrará pela Europa, e após sua vitória, por exemplo, na Alemanha, a Rússia passará para trás no caminho social que leva ao socialismo econômico, enquanto a estrutura alemã a ultrapassará consideravelmente. A ideia de Lenin complementa-se com o conceito de que, ao lado de uma Alemanha soviética, ou, melhor ainda, uma Europa soviética, a sociedade russa poderá diminuir o caminho de sua velha economia para o capitalismo e, daí, apesar de por meio de uma forma estatal, para o socialismo.

Essa doutrina é a exata negação da ideia vazia do país do socialismo, e do país modelo, ou do país guia, que prevaleceu obscenamente depois de Lenin. Entre a teoria do modelo a ser imitado e a passagem imediata da Rússia na traseira da revolução, há a mesma contradição existente entre a latrina da via nacional ao socialismo e a já citada declaração:

a inevitabilidade histórica da repetição à escala internacional daquilo que aconteceu no nosso país.

A teoria do modelo russo foi apenas a primeira formulação da atual superstição a respeito da coexistência emulativa.

Ao voltar da Rússia em 1920, diante de uma massa de proletários que esperavam a descrição de uma terra prometida, nós, humildes alunos do grande Lenin, combatemos a ilusão de que tínhamos ido ver o socialismo como ele era, como ele funcionava, como se fosse um brinquedo de criança, ou uma espécie de sputnik, uma coisa inventada e criada.

Ainda que o socialismo ainda não tenha existido no mundo, nós sabíamos, como marxistas, como ele deveria vir a ser, e tínhamos certeza disso, pelo mundo e pela Rússia, onde esse brilhante mecanismo humano ainda não tinha começado a funcionar. Esplêndida era a força da revolução em marcha, dura, dolorosa e aceita, rumo à distante felicidade comunista: todos os proletários europeus deviam alcançá-la, e somente eles poderiam fazê-lo, para eles mesmos e para os russos, assim que conseguissem suplantar todos os Estados burgueses do continente.

A posição antimarxista e antileninista, que sobrevive hoje na nefasta teoria da coexistência, jaz na teoria do modelo. Gramsci personificou na Itália esse erro grotesco quando comentou sobre a revolução de outubro no texto “A revolução contra o Capital”.(4) Nesse texto, segundo o materialismo histórico, a revolução proletária na Rússia, onde o capitalismo ainda não era suficientemente desenvolvido, seria impossível; se ela tivesse vencido, a conclusão a ser tirada era óbvia: tanto a determinação econômica como o materialismo estavam errados; em vez disso, seria verdadeiro e radiante o idealismo voluntarista, e Lenin o herói desse mito, capaz de forçar a história e criar, nas mais adversas condições, o Modelo e a tão sonhada Utopia. Nada há de ser feito além de peregrinações para beijar a bainha do manto do Profeta, contemplar o modelo e reportar sua lenda e seu segredo às massas ocidentais, que deveriam copiá-lo.

Mas Lenin está lá; sem posar de messias e, por isso, muito mais simples e grandioso. Ele se refere em todos os aspectos ao materialismo de de Marx, esclarece a dialética dessa história viva, e ridiculariza o modelo, tão pobre que não tardará a ser superado, o que ele tem em vista e deseja que aconteça.

Aqueles que acreditavam que ele seria o justiceiro a derrotar o Capital vão baixar suas cabeças e abrir seus olhos para a luz: Gramsci o fez, pelo menos até que sua pobre força física conseguiu sustentar a agudeza de seu olhar.

Hoje, a luz azulada dos olhos de Vladimir também se esvaiu, mas entre outras coisas ainda mantemos seu desprezo pela crença no modelo a ser imitado, que sempre basta para confundir, com seu brutal poder de polêmica, a estúpida edificação de um mundo que se tornaria comunista por meio de uma imitação milagrosa.

O que a Rússia nos ensinou

A revolução russa não tinha então, do ponto de vista leniniano, a função de apresentar ao mundo uma estrutura socialista, mas uma função internacional distinta e muito maior, a de ensinar sob quais meios e armas, em todos os lugares, o poder do Capital e seus associados poderiam ser derrubados.

Esse ensinamento já existia nas linhas fundamentais da doutrina, mas pela primeira vez ele pôde ser confirmado nos fatos, na história.

Não era uma questão de fotografar a estrutura russa — embora, à época, fosse muito menos contaminada pela estigmas reais do capitalismo mercantil, emulando esse maldito Ocidente — mas, se é que podemos permitir tal imagem, tratava-se de mostrar um filme do evento revolucionário, e dele tirar o que poderiam ser chamadas de sequências decisivas, válidas universalmente para toda a Europa.

Nesse sentido, um modelo dinâmico, não estático, foi ao encontro do nosso imenso entusiasmo naquela época gloriosa: não uma receita enjoativa, mas a erupção violenta da palingenesia social.

Lenin diz, então:

no momento histórico atual, porém, trata-se exatamente de que o exemplo russo ensina algo a todos [assinalem isso, senhores canalhas] os países, algo muito substancial, a respeito de seu futuro próximo e inevitável (Ibid. p. 279)

Talvez tenhamos falado de forma muito prolixa, mas gostaríamos de insistir na demonstração. Nosso modelo não é um “projeto” presente para a reprodução do presente, mas é a construção de uma lição sobre o passado, que deve servir a um futuro inevitável.

Apesar de o ser humano ser um animal ingenuamente imitativo, e a humanidade de 1960 vem dando provas vergonhosas disso, em 1920 sentimos claramente que desempenharíamos o poder do salto do passado para o futuro, assim como a fé de imensas multidões na infalibilidade da grandiosa teoria revolucionária.

Vivíamos em uma época ardente e fecunda. Lenin escreveu:

os operários avançados de todos os países já compreenderam isso há muito tempo e, mais que compreender, já perceberam, sentiram com seu instinto de classe revolucionária. (Ibid. p. 279)

Não com a cultura, emulando as escolas burguesas, mas com o instinto!

No curso de seu estudo luminoso, Lenin vai nos indicar os vários traços essenciais da linha revolucionária universal.

Daí a “significação” internacional (no sentido estrito da palavra) do Poder Soviético e dos fundamentos da teoria e da tática bolcheviques. (Ibid. p. 279)

Aqui o capítulo introdutório do Esquerdismo entra numa espécie de digressão por exigência da polêmica que, como veremos, é da mais alta importância e envolve observações atuais. Mas as palavras acima nos permitem comentar o que Lenin promete especificar como os traços fundamentais da revolução russa, que preferimos dizer “sempre válidos”.

Esses são os traços “principais”, que Lenin admite serem de dois tipos: a teoria e a tática do bolchevismo.

Pois o que caracterizou o glorioso partido comunista bolchevique, com repercussões internacionais, foi um sistema de princípios em sua doutrina. Mas ninguém tem o direito de dizer que a teoria é regida por um sistema de princípios, enquanto a tática pode ser livre, sem princípios. O que nossa Esquerda defendeu em diversos congressos em Moscou tem como base a formulação de Lenin: também para a tática, não só para a teoria, é necessário estabelecer um sistema de princípios; além disso, eles devem ser válidos para todos os países e partidos da Internacional. As Teses de Roma de 1922 foram um ensaio disso.

O texto acusa os líderes traidores da Segunda Internacional e os líderes centristas como Kautsky, Bauer e Adler, que — mesmo não sendo social-patriotas triviais –, não tendo entendido a validade geral do sistema de princípios teóricos e táticos que levou o partido bolchevique à vitória, “converteram-se em reacionários” e traidores. Aqui Lenin estapeia o pedantismo, a baixeza e a humilhação do panfleto de Bauer chamado A Revolução Mundial, que hipocritamente contrasta as características imaginárias, democráticas, pacíficas e sem sangue (temos hoje o direito de adicionar “emulativas”) da revolução mundial às da revolução russa, mais precisamente às características da revolução russa que deviam pertencer a todas as revoluções, seguindo a linha na qual em 1920 se conduzia, sabendo que tudo estava em jogo, a batalha pela revolução na Europa Ocidental.

Depois dessa surra nos centristas, Lenin cita Kautsky para mostrar que, quando este era marxista, no longínquo ano de 1902, ele havia escrito um artigo chamado Os eslavos e a revolução, admitindo que o proletariado russo poderia tomar as rédeas da revolução europeia; após o centro revolucionário ter se manifestado na França e às vezes na Inglaterra, na primeira metade do século XIX, e na Alemanha, na segunda metade. Em 1920, Kautsky insultou trivialmente a Rússia revolucionária e contestou fraudulentamente o princípio da ditadura, mas trinta anos antes ele havia concluído liricamente que talvez estivesse destinado aos eslavos, que em 1948 foram a forte geada que despedaçou as flores da primavera dos povos, serem o furacão que esmagaria o Czar e o seu aliado, o Capital europeu, arrebentando o gelo da contrarrevolução.

Como Kautsky escrevia bem há dezoito anos! Assim exclama Lenin. Até sua morte não tão distante, ele sempre escreveu do mesmo modo. Hoje podemos ecoar: como Kautsky escrevia bem há cinquenta e oito anos!

Uma crosta de gelo recobriu a ultra-memorável proeza do proletariado eslavo e, na lápide formada por esse gelo tumular, está inscrito: pacifismo, coexistência, distensão [détente] e uma via democrática e parlamentar ao socialismo!

Enquanto Lenin condenou a infame Liga das Nações como uma fortaleza do capital, a Rússia de hoje, que o renegou, inscreve tais epitáfios nas não menos sórdidas mesas de apostas da Organização das Nações Unidas.

Os revolucionários marxistas certamente não estão realizando uma Olimpíada dos tempos modernos, em que a chama da revolução comunista é passada de mão em mão. Mas se Marx e Engels, um Kautsky ainda não apodrecido e um sempre brilhante Lenin viram essa passagem da Inglaterra à França, à Alemanha e à Rússia, hoje a Rússia ruiu depois de ter sido coberta de glórias. Hoje estamos certos de que a grande chama vai se alastrar novamente, pensamos na Europa Ocidental que Lenin vaticinou no início do Esquerdismo, a única que pode se levantar contra a opressão emulativa dos Estados Unidos da América torpes e da Rússia degenerada; talvez sendo alavancada, enquanto os diplomatas sinistros de ambos os lados manobram de forma obscena a questão de uma Alemanha acabada, num país que (no longo prazo) vê uma revolução proletária em sua história, se rebelando contra a Rússia e a América, não importando se serão amigos ou inimigos.

Ou talvez o meio século que nós, brancos, perdemos poderá ser recuperado pela marcha, que acelera estrondosamente, de nossos irmãos amarelos e negros.

A ditadura e os filisteus

Não vamos encerrar esse capítulo introdutório do texto de Lenin sem desenvolver algumas deduções de seu ataque destruidor aos mencionados Karl Kautsky, Otto Bauer e Friedrich Adler. Para nós, tem um significado historicamente imenso o fato de que Lenin sempre dirigia seus ataques mais ácidos contra tais indivíduos, chamados naquela época de centristas, independentes, membros da Internacional dois e meio, no meio do caminho entre a Segunda e a Terceira. Lenin os considera mais perigosos que os direitistas, os social-democratas ou os social patriotas, aliados assumidos e serventes da burguesia, cujos nomes eram Scheidemann, Noske, Vandervelde, MacDonald, etc; com seus atos vergonhosos durante a guerra e depois dela.

De fato, na Alemanha, Kautsky foi o primeiro a se opor ao social-chauvinismo da maioria parlamentar (faremos um balanço do parlamentarismo em outro momento, mas não se deve esquecer que o próprio Karl Liebknecht, em 14 de agosto de 1914, curvando-se à disciplina partidária, que era então a disciplina ao grupo parlamentar, infelizmente votou calado a favor dos créditos de guerra ao governo do Kaiser). Na Áustria, Bauer e Fritz Adler, filho do velho marxista Victor Adler, eram os líderes do chamado Austro-Marxismo (como se pudesse haver algo como um marxismo nacional!): recordemos que, em Viena, Fritz foi julgado por sua oposição corajosa à guerra.

Mas esses indivíduos defenderam, como teóricos — aproveitando-se dessa fama durante décadas –, que havia uma incompatibilidade entre marxismo e a ditadura, difamando acidamente o bolchevismo e o leninismo como uma violação do socialismo saudável. Segundo essa gente, os marxistas tinham o dever de não violar as normas do livre consenso democrático, da adesão das massas, da opinião liberal-democrática da maioria dos “cidadãos”; foram eles os que criaram a mais vergonhosa das falsificações de Marx.

Lenin parte contra eles a ferro e fogo, e como testemunhas e militantes dessa batalha histórica até a morte, não esquecemos seu ensinamento histórico. Ousamos dizer que tal comportamento real, prático e material, que nossos eternos opositores chamariam pelo adjetivo burguesoide de “concreto”, é mais significativo hoje, como estilo e ensinamento, que a insuperável forma que Lenin redigia suas polêmicas. Assumindo suas tremendas responsabilidades com a história, esse condutor das massas absolutamente não-academicista não teria cedido ao sucesso fácil dos renegados, diante da imaturidade dos proletários que acabaram de emergir de uma revolução antidespótica, o que teria acontecido se ele tivesse escrito abertamente: não nos importamos com consultas e consensos expressos numericamente, mas estamos certos de que, quando seguimos na direção oposta a esses resquícios patológicos da servidão e do servilismo dos tempos burgueses, então estamos no caminho certo.

Mas aqueles que ainda eram jovens e não haviam sido corrompidos, não podiam se esquecer da regra geral (embora não estivesse escrita em teses ou livros teóricos): dê boas porradas naqueles que lhe parecem mais próximos em termos políticos, assim você nunca mais será enganado!

De um lado temos o exemplo de Lenin, ou seja, da vida revolucionária naqueles anos, em uma realidade de confronto entre milhões de pessoas; do outro, temos os lamentáveis e infames idiotas que, com um largo emprego de falsificações sem-vergonhas sobre o que Lenin escreveu e realizou, seguiram a regra oposta, que consistia no bloco, na frente e no isolamento à direita de um inimigo fictício; apenas uma repetição do que fizeram os traidores na Primeira Guerra Mundial. Os campeões da terceira onda histórica da praga oportunista não se contentaram com a formação de um bloco com os socialistas de centro e de direita, mas foram muito além — não só em tempos de guerra, mas também nos de paz –, até o bloco com democratas, liberais burgueses e católicos. Do ponto de vista social, formaram não apenas um bloco com o proletariado corrompido, mas também com a pequena-burguesia e, por fim e descaradamente, com uma média burguesia empreendedora.

Questões teóricas não são distintas das questões práticas. Lenin não se contentava simplesmente em confundir esses professores por sua falsa exegese de Marx; a questão era outra. Esses canalhas, no momento em que os exércitos apoiados pela burguesia ocidental lançaram-se para esmagar o poder bolchevique e a revolução como um todo, solidarizaram-se com os brancos, desejosos de uma vitória como punição pelos crimes de “ditadura” e “terrorismo” cometidos pela gloriosa vanguarda leninista. Então aprendemos que, sempre que a vitória proletária está prestes a ser atingida, em sua única via histórica “inevitavelmente previsível”, aqueles canalhas amantes das frentes vão agir dessa forma, e o proletariado, se não estiver ciente disso, será traído e sucumbirá.

Não foi por acaso que, quando Kautsky, o mais truculento antibolchevique, escreveu tais coisas, enquanto na Rússia debatia-se a tiros de canhão, Lenin escreveu A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, e Trotski o formidável Terrorismo e Comunismo.

De que forma Kautsky e sua laia diferem-se daqueles que hoje proclamam que a ditadura e o terror foram métodos “particulares à Rússia de 1917”, de que os demais países deveriam ser poupados? Como Lenin disse numa sentença sem apelo, não são eles também marxistas-liberais, marxistas que foram, com mala e tudo, ao lado do liberalismo e da burguesia?

A calúnia é sempre a mesma

Ainda hoje os nomes dos senhores Bauer e Adler podem ser mencionados (veja o jornal Messagero, de Roma, de 2 de setembro de 1960) para recordar suas críticas ao bolchevismo e, ao mesmo tempo, para tentar declarar ridícula sua teoria de um movimento proletário e socialista bem sucedido “sem ditadura e terror”; o que está substancialmente correto (é sempre assim, da extremidade oposta se vê melhor do que nas bancadas próximas a nós, se nos permitimos usar essa imagem do circo parlamentar).

Um polonês, Deutscher, depois da morte de Stálin, escreveu um livro intitulado A Rússia após Stálin. Essa obra recente tem a tese de que a Rússia moderna caminha em direção a uma forma liberal, ou social-democrática, como quer que se chame. No entanto, outro “russólogo” americano, Croan, contestou que a tese de Deutscher não é nova, mas é a mesma do famoso livro de Otto Bauer de 1931, Capitalismo e socialismo em direção da guerra mundial.

Se, depois de quarenta anos, ainda temos em nosso caminho um Otto Bauer, de quem Lenin já havia se livrado definitivamente, de quem é a culpa senão dos supostos seguidores e imundos falsificadores do leninismo?