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Os lapsos de memória de Lionel Jospin suscitaram uma onda de curiosidade relativamente ao "trotskismo". A sua presença espectral assombra o grémio mediático. Torna-se a última moda, "ter-se sido". Este interesse de circunstância colocou, no entanto, em evidência o desconhecimento histórico e político ligado a este vocábulo exótico que evoca, para a maioria dos nossos contemporâneos, a lenda da Revolução Russa, o Soviete de Petrogrado, a tomada do Palácio de Inverno ou a epopeia do Exército Vermelho. Para os mais cultos, está associado ao Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, redigido em 1938 por Léon Trotsky e André Breton. Quanto aos cinéfilos, lembram-se de um — mau — filme de Joseph Losey sobre o assassinato de Trotsky, com Richard Burton no papel-título e Alain Delon no do assassino teleguiado por Estaline.
Após as revelações sobre o passado do primeiro-ministro, numerosos comentadores admitiram, não sem alguma hipocrisia, que a sua trajectória ideológica não estava em causa: não é, de facto, nenhuma desonra, para um brilhante estudante dos anos 1950, ter sido "uma criança do Suez e de Budapeste", solidário tanto com as lutas de libertação nacional, como com os levantamentos anti-burocráticos da Polónia e da Hungria em 1956. Sob o pretexto de não uivar com os lobos(1), "os amigos da URSS" e os dirigentes dos partidos comunistas oficiais fechavam então os olhos aos danos colaterais criminosos do balanço "globalmente positivo" do estalinismo ou sobre a parte sangrenta da "Grande Revolução Cultural Proletária" na China. Mas os silêncios de Lionel Jospin também confortaram os fantasmas e a suspeição relativamente a um universo secreto, grupuscular e conspirativo, associado ao termo inquietante de "entrismo", propício às elucubrações policiais. Três observações introdutórias à compreensão histórica dos trotskismos parecem então ser necessárias.
Há, nas respostas dadas a estas questões, um esforço patético para salvaguardar a razão, apesar das irracionalidades e dos tumultos de um século obscuro. Uma existência minoritária tão longa (Trotsky não imaginava uma tão longa travessia do deserto) está cheia de patologias grupusculares. Os hábitos da luta a contra-corrente podem virar para o sectarismo. A desproporção entre a actividade teórica e a possibilidade de verificação prática levam a um exacerbar das disputas doutrinais e ao fetichismo dogmático da letra. Assim como existe um povo do livro, há de facto um comunismo do livro para o qual as divergências tácticas surgem como questões de vida ou de morte. Muitas vezes sem fundamento; às vezes com razão. Não o verificamos senão depois, quando o pássaro de Minerva iniciou o seu voo crepuscular.
Tendo de escovar a história a contrapelo durante tanto tempo, as organizações trotskistas seleccionaram com frequência personalidades desconfiadas, rebeldes e 'outsiders' de cabeça dura, mais aptos para a insubmissão e a dissidência do que para a construção e a conjugação, "pessoas inteligentes, constatava já Trotsky, que têm mau feitio e são sempre indisciplinadas".
Uma corrente longamente minoritária impregna-se igualmente, apesar de si própria, daquilo a que pretende resistir. Nunca é demais relembrar até que ponto a obsessão da traição e da violência física gangrenou durante décadas o movimento operário. As organizações trotskistas nem sempre escaparam à tentação de papaguear a mitologia bolchevique forjada pelo estalinismo triunfante. É preciso, porém, evitar a ilusão de uma vida política relativamente (e provisoriamente) pacificada pela rotina parlamentar. Se, como dizia o presidente Mao, a revolução não é um jantar de gala, os anos entre as duas guerras, durante os quais se formam as correntes de que aqui falamos, foram aqueles dos venenos e dos punhos, das infiltrações e das provocações, das liquidações e dos crimes, testemunhados por livros como Sem Pátria nem Fronteira, de Jan Valtin, Leglaive et lefourreau, de Gustav Regler, ou Homenagem à Catalunha, de George Orwell, sem falar nas numerosas biografias e testemunhos da Rússia sob Estaline.
A tumultuosa história dos trotskismos gira em torno de uma grande questão: como continuar "revolucionários sem revolução" (segundo o título das memórias do surrealista André Thirion)? Como o grande amor nos romances de Marguerite Duras, é o paradoxo de um imperativo tão impossível como necessário face às ameaças que pesam sobre o futuro da humanidade. Daí este heróico corpo a corpo com a época. Apesar das posturas em que a estética da derrota e o protesto moral superam por vezes a preocupação da eficácia imediata, a história dos trotskismos manifesta uma exigência eminentemente política de não ceder, não renunciar, não entregar as armas. A vitória póstuma de Trotsky e dos seus herdeiros, conhecidos ou anónimos, terá sido activar tesouros de coragem e de inteligência para não perder o Norte, enquanto tantas outras cabeças com reputação de bem feitas se juntavam, por lassidão ou oportunismo, aos vencedores do momento, quer se tratassem de potências ocidentais ou de burocracias totalitárias. Desenrolando o seu fio de Ariane nos labirintos de uma época opaca, estes combatentes da retaguarda salvaram os vencidos daquilo a que o historiador inglês E. P. Thompson chamava "a esmagadora condescendência da posteridade".
Basta contemplar o campo de ruínas do estalinismo decomposto e da social-democracia convertida ao liberalismo — confusão histórica, esterilidade teórica, inconsistência política, incapacidade de se explicarem com um passado que não passa — para apreciar a devida importância desta vitoriosa derrota. Ela preserva a possibilidade de recomeçar, transmitindo às novas gerações a memória e os elementos de compreensão do "século dos extremos", necessários para nos aventurarmos nas incertezas e nos perigos do século que começa.
Notas:
(1) A expressão francesa "hurler avec les loups" designa a participação acrítica e seguindo a opinião comum nos ataques a alguém [nota da tradução]. (retornar ao texto)
Este texto foi uma colaboração |
Inclusão | 09/03/2009 |
Última alteração | 13/04/2014 |