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Primeira Edição: http://www.monthlyreview.org/0306amin.htm
Fonte: http://resistir.info/ http://www.un.org/ millenniumgoals/index.html -
Tradução: Pedro Santos
HTML: Fernando Araújo.
Em Setembro de 2000, na Cimeira Milénio das Nações Unidas, os 191 países membros da ONU acordaram um conjunto de oito Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio (Millenium Development Goals)para as nações mais pobres do mundo. Estes objectivos, a serem concretizados até 2015, foram desde sempre o cerne das questões políticas discutidas e das acções relativas ao desenvolvimento sócio-económico. Encontros e conferências sobre os objectivos sob a égide da ONU e de elementos governamentais dos países membros realizaram-se regularmente desde 2001, e mais recentemente na Cimeira 2005 Milénio + 5. O propósito destes encontros e conferências foi reiterar os objectivos e reafirmar o compromisso dos países para com ele, bem como para assessorar a extensão, para a qual o progresso tem vindo a apontar. A maioria dos Objectivos do Desenvolvimento para o Milénio pode ser vista à primeira vista como inquestionável. Contudo, não resultaram de uma iniciativa do próprio Sul, mas foram trazidas primariamente pela tríade (EUA, Europa e Japão), e foram co-patrocinados pelo Banco Mundial, pelo FMI, e pela OCDE. Tudo isto levantou a questão de saber se eles são o disfarce ideológico (ou pior) para iniciativas neoliberais. A crítica sistemática e reveladora de Samir Amin aos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio é assim da maior importância. Os próprios objectivos estão anexos a este artigo. A declaração adoptada pela assembleia geral está disponível em http://www.un.org/millennium/declaration/ares552e.pdf . - Ed. da Monthly Review
Os Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio (ODM) foram adoptados por aclamação em Setembro de 2000 por uma resolução da Assembleia Geral da ONU intitulada "Declaração do Milénio das Nações Unidas". Esta inovação processual, chamada de "consenso", contrasta bastante com a tradição da ONU, que sempre requereu que textos deste tipo fossem cuidadosamente preparados e discutidos a uma grande profundidade em comités. Isto reflecte simplesmente uma mudança no equilíbrio do poder internacional. Os EUA e os seus aliados europeus e japoneses são agora capazes de exercer uma hegemonia sobre uma ONU domesticada. De facto, Ted Gordon, bem conhecido consultor da CIA, foi quem traçou os objectivos do milénio!
É feita a afirmação de que os ODM siguem as conclusões alcançadas no ciclo de cimeiras organizado na década de 90. Isso é ir longe de mais. Os encontros preparatórios para estas cimeiras tentaram uma coisa nova ao organizar assembleias dos chamados representantes da sociedade civil em paralelo com as conferências oficiais onde apenas os representantes dos estados tinham assento. Embora as coisas tenham sido organizadas para reservar os melhores lugares para as ONG´s caritativas, as quais são beneficiárias do apoio financeiro de grandes fundações e estados, e geralmente para excluir as organizações populares que combatiam por progressos sociais e democráticos (organizações populares autênticas são sempre pobres por definição), por vezes as vozes destas últimas foram ouvidas. Nas próprias conferências oficiais, os pontos de vista da tríade e do Sul divergiram amiúde. É muitas vezes esquecido que as propostas da tríade foram rejeitadas em Seattle, não apenas nas ruas, mas também nos estados do Sul. Também é importante recordar que a reconstrução (ou pelo menos os primeiros sinais de reconstrução) de um grupo (se não uma frente) do Sul teve lugar em Doha. Todas estas divergências foram suavizadas pela suposta síntese dos ODM. Em vez de se formar um comité genuíno com o objectivo de discutir o documento, preparou-se um esboço nos bastidores de uma agência obscura. O único denominador comum está limitado à expressão da piedosa esperança de reduzir a pobreza. No que se segue, examinarei como estes objectivos estão formulados e as condições exigidas para alcançá-los.
Oito conjuntos de objectivos foram definidos para os próximos quinze anos (2000-15). O cumprimento de cada um dos alvos que os definem especificamente é baseado em indicadores mensuráveis, geralmente aceitáveis no seu todo.
Cada um destes objectivos é certamente recomendável (quem desaprovaria a redução da pobreza ou a melhoria da saúde?). Contudo, a sua definição é amiúde extremamente vaga. Ainda assim, debates relacionados com as condições requeridas para alcançar os objectivos são muitas vezes dispensados. É assumido sem questionamento que o liberalismo é perfeitamente compatível com o cumprimento dos objectivos.
Objectivo 1: Redução da pobreza extrema e da fome à metade.
Isto não é senão uma fórmula encantatória vazia enquanto as políticas que geram pobreza não forem analisadas e denunciadas e propostas as alternativas.
Objectivo 2: Alcançar a educação primária universal.
A UNESCO dedicou-se a este objectivo em 1960, esperando alcançá-lo em dez anos. Foi feito progresso durante as duas décadas subsequentes, mas tem-se perdido terreno desde então. A quase óbvia relação entre este terreno perdido, a redução da despesa pública, e a privatização da educação não é examinada nem na prática nem em teoria.
Objectivo 3: Promover igualdade de género e dar poder às mulheres.
A igualdade em questão está reduzida ao acesso à educação e a delegação de poder é medida pela proporção de mulheres assalariadas. Os fundamentalistas neoconservadores cristãos dos EUA, Polónia e alhures, os muçulmanos da Arábia Saudita, Paquistão e outros países, e os fundamentalistas hindus concordam em eliminar qualquer referência aos direitos das mulheres e da família. Sem discussão, declarações sobre esta questão são apenas conversa fiada.
Objectivos 4, 5 e 6: (Relativos à Saúde) reduzir a mortalidade infantil para dois terços e a mortalidade maternal em três quartos; parar com a disseminação de doenças pandémicas (SIDA, malária, tuberculose).
Os meios implementados nestas áreas pressupõem que sejam completamente compatíveis com a privatização extrema e o respeito total pelos "direitos de propriedade intelectual" das corporações transnacionais e, bastante curiosamente, são recomendados no Objectivo 8 relativo à suposta parceria entre o Norte e o Sul!
Objectivo 7: Garantir a sustentabilidade ambiental.
Um princípio geral é afirmado ("integrar os princípios do desenvolvimento sustentável" em políticas nacionais e globais), mas nenhum conteúdo definido é tornado explícito. Além disso, qualquer menção da recusa dos EUA em promover as condições necessárias para a protecção ambiental (i.e., a sua rejeição do Protocolo de Quioto) é cuidadosamente evitada.
Pressupõe-se, pois, que a racionalidade da estratégia económica capitalista é compatível com os requisitos do "desenvolvimento sustentável". Não é obviamente o caso já que a estratégia capitalista é fundada sobre o conceito do desconto rápido do tempo económico (com as decisões do investimento do governo a nunca excederem uns poucos anos no máximo), enquanto que as questões levantadas aqui dizem respeito ao longo prazo. Os objectivos específicos estão assim de facto reduzidos a nada de mais: reduzir para metade a população que não tem acesso a água potável, melhorar as condições de vida nos bairros de lata – dois objectivos vulgares da simples saúde pública.
Os critérios para medir os resultados (emissões de CO 2 , alteração na camada do ozono) tornam possível sem dúvida monitorizar a degradação do ambiente, mas não o diminuem certamente. Note-se a estranha timidez dos redactores relativamente à biodiversidade (não se trata de infringir os grandes direitos das transnacionais!): eles propõem-se apenas "observar" a evolução das áreas dos territórios protegidos da destruição da biodiversidade! Mas acima de tudo não travá-la!
Objectivo 8: Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento.
Os redactores trataram imediatamente de estabelecer uma equivalência entre esta "parceria" e os princípios do liberalismo ao declarar que o objectivo é estabelecer um sistema financeiro multilateral e comercial aberto! A parceria torna-se assim sinónima de submissão às exigências dos poderes imperialistas. Progresso em acesso ao mercado é medido pelo volume de exportações no PIB (um aumento neste ratio é assim sinónimo de progresso independentemente do preço social!), progresso nas condições de não-discriminação pela redução dos subsídios.
Para prosseguir com esta "parceria liberal" requer-se, no fim, nada mais do que lutar contra a pobreza (o único objectivo "social" permitido). A isto é acrescentado, como cabelo na sopa, "boa governação", a frase preferida pelo establishment dos Estados Unidos que nunca é definida e é adoptada acriticamente pelos europeus e pelas instituições do sistema global (ONU, Banco Mundial, etc.).
Muitos objectivos são acrescentados a este texto completamente contraditório, os quais completam suas lacunas e apresentam recomendações. Seleccionei cinco deles para um exame mais detido:
Perdão de parte da dívida aos países pobres mais pesadamente endividados.
Na verdade, o programa implementado a este respeito para os países fortemente endividados impõe uma tutela genuinamente colonial sobre eles. Que os governos dos países em questão tenham internalizado o abandono da sua soberania em nada altera as coisas. Na verdade, no passado, chefes de estado por vezes abdicaram face à colonização. Mas tal abdicação nunca fora aceite como legítima pelos povos envolvidos.
Tratar de forma abrangente dos problemas da dívida dos países em desenvolvimento através de medidas nacionais e internacionais para torná-la sustentável a longo prazo.
Esta exortação não é acompanhada por qualquer informação relativa ao que se deve seguir (negociações internacionais? dentro de que estrutura?) ou aos princípios sobre quais tais medidas deveriam ser fundamentadas. Contudo, algumas coisas razoáveis podem ser ditas sobre o assunto, tais como a necessidade de uma auditoria que torne possível classificar as dívidas (imoral, ilegal, aceitável...) e uma elaboração de legislação que torne possível definir para o futuro as condições legais das dívidas e a criação de tribunais encarregados da aplicação da lei nesta área. É perfeitamente óbvio que tudo isto é ignorado pelos redactores dos ODM!
Em cooperação com as companhias farmacêuticas, proporcionar acesso a medicamentos essenciais baratos nos países em desenvolvimento.
O significado da intenção generosa em possibilitar acesso a medicamentos é imediatamente anulado pela especificação de que isto seria "em cooperação com a indústria farmacêutica", precisamente aqueles que proíbem toda a gente de por em causa o seu monopólio abusivo!
Em cooperação com o sector privado, tornar disponível os benefícios das novas tecnologias – mormente tecnologias de informação e comunicação.
Aqui novamente uma intenção é sujeita a uma condição que a esvazia de qualquer significado – "em cooperação com o sector privado"!
Mais assistência oficial generosa ao desenvolvimento para países comprometidos em reduzir a pobreza.
Há melhor comédia do que esta proposta, infinitamente repetida nos últimos cinquenta anos por aqueles que são responsáveis pela sua implementação e que no entanto nunca a concretizam?
Um exame crítico da formulação dos objectivos bem como da definição dos meios que são requeridos para implementá-los apenas pode levar â conclusão de que os ODM não podem ser levados a sério. Uma litania de esperanças piedosas não compromete ninguém. E quando a expressão destas esperanças piedosas é acompanhada por condições que no essencial eliminam a possibilidade delas se tornarem realidade, deve-se formular a pergunta: não estão os autores do documento a perseguir outras prioridades que nada têm a ver com "redução da pobreza" e tudo o mais? Neste caso, não deveria o exercício ser descrito como pura hipocrisia, como atirar areia para os olhos daqueles que estão a ser forçados a aceitar os ditames do liberalismo ao serviço de interesses bastante particulares e exclusivos do capital globalizado dominante?
Além disso, os ODM não podem ser verdadeiramente levados a sério pelos seus próprios promotores na tríade imperialista, os quais implementam apenas quando lhes é conveniente e ignoram-nos em caso contrário, nem pelos estados do Sul que, não querendo correr riscos agora, se abstêm de rejeitar formalmente as propostas. Noutra altura, um texto deste tipo não teria sido adoptado e os estados do Sul teriam, pelo menos, imposto um compromisso.
Os ODM fazem parte de uma série de discursos que têm por objectivo legitimar as políticas e práticas implementadas pelo capital dominante e por aqueles que o apoiam, i. e., em primeiro lugar os governos dos países da tríade, e em segundo os governos do Sul. Os verdadeiros objectivos, reconhecidos explicitamente como tais, são:
1- Privatização extrema, destinada a abrir novos campos para a expansão do capital. Tal privatização levanta a questão da existência da propriedade nacional do estado, a qual deveria ser liquidada em mercados livres, inclusive pelo capital estrangeiro. Para além disso, a privatização aponta para a eliminação de serviços públicos, em especial a educação e a saúde. Aqui, as ideias desenvolvidas nos ODM relativas à eliminação da iliteracia e à melhoria da saúde perde toda a credibilidade. A privatização da propriedade e o acesso a importantes recursos naturais, em especial o petróleo e a água, facilita a pilhagem destes recursos para o esbanjamento da tríade, reduzindo o discurso do desenvolvimento sustentável a uma pura retórica vazia.
2- A generalização da apropriação privada da terra agrícola. Tal como os produtos agrícolas e alimentos, a terra também tem que estar sujeita à lei geral do mercado. Esta ofensiva geral aponta para nada menos do que a política extensiva de "enclosures" (referente às "enclosures" implementadas na Inglaterra dos séculos XVII - XVIII e depois expandida ao resto da Europa no século XIX) ao mundo inteiro. O seu êxito levaria à destruição das sociedades camponesas que constituem metade da humanidade. Esta destruição, já em andamento (e o liberalismo gostaria de ver o tempo a acelerar), é já a grande causa do pauperização do terceiro mundo, a qual resulta na migração do campo para os subúrbios urbanos. Porém, isso é de somenos importância, já que a minoria dos chamados modernos produtores rurais, que sobreviverão ao massacre, e estarão sujeitos às exigências do agronegócio, produzirão superlucros que este último pretende capturar. Nada mais importa.
3- "Abertura" comercial dentro de um contexto de desregulação máxima. É um meio de remover todos os obstáculos à expansão de um comércio que é tão desigual quanto poderia ser em condições caracterizadas por um desenvolvimento mundial polarizado e uma concentração crescente de poder nas mãos de transnacionais que controlam o comércio de matérias-primas e produtos agrícolas. O exemplo do café ilustra os desastrosos efeitos sociais desta escolha sistemática. Há vinte anos, todos os produtores de café recebiam nove mil milhões de dólares e todos os consumidores pagavam 20 mil milhões por este mesmo café. Hoje em dia, estes dois números são respectivamente seis e 30 mil milhões. A diferença entre eles está na gigantesca margem de lucro capturada por um punhado de intermediários oligopolistas. Não é preciso dizer que nestas condições campanhas a favor do chamado comércio justo, mesmo quando os seus promotores são movidos pelas mais impecáveis intenções morais, não estão ao nível do desafio. A correcção destes termos de comércio deteriorados para os produtores só pode ser obtida através da intervenção política de autoridades governamentais – tanto através de legislação nacional como de negociações internacionais e legislação.
4- A igualmente descontrolada abertura dos movimentos de capitais. O pretexto falacioso avançado é que a desregulação tornaria possível atrair capital estrangeiro. Todavia é bem conhecido que a China, que atrai mais deste capital do que outros países, tem mantido um controlo apertado sobre as empresas estrangeiras. Por outro lado, investimentos directos estrangeiros são destinados a pouco mais do que pilhar os recursos naturais. Na verdade, o FMI impôs a abertura de "contas de capital" para facilitar o endividamento dos EUA, permitir ao capital especulativo efectuar ataques de pilhagem, e sujeitar as divisas do Sul à subvalorização sistemática. Esta subvalorização, por sua vez, torna possível os activos locais destes países serem comprados por quase nada, para a vantagem evidente das corporações transnacionais.
5- Os Estados são proibidos em princípio de interferir nos assuntos económicos. Internamente, o estado é reduzido a estritas funções de polícia. Internacionalmente, é reduzido a garantir o serviço da dívida, como a primeira (e quase exclusiva!) prioridade em gastos públicos. A dívida não é nada mais do que uma forma particularmente primitiva de exploração e pilhagem.
Este modelo é apresentado como sendo sem alternativa porque ele é imposto pelas exigências "objectivas" da globalização, as quais negam o poder dos estados nacionais. Na verdade, a relação causal é exactamente o inverso: a esta forma particular (entre outras possíveis) de globalização está destinado o objectivo de destruir a capacidade das nações e dos estados de resistir à expansão do capital transnacional.
É por isso que todos estes princípios, adoptados livremente pelos autores dos ODM, podem apenas produzir o que já descrevi noutro lado como apartheid numa escala mundial, reproduzindo e acentuando a polarização global. Como contraponto, a restauração de uma margem de autonomia para os estados e o reconhecimento da legitimidade da intervenção do estado (a definição mesmo de democracia) dentro de uma perspectiva multipolar são as condições iniludíveis exigidas para atingir os objectivos sociais proclamados pelos ODM.
Na realidade, os objectivos sociais proclamados pelos ODM não constituem os verdadeiros objectivos do exercício no seu todo. A sua suposta embalagem democrática tem, por sua vez, de ser sujeita a uma dúvida legítima. Nenhuma democracia poderá criar raízes se não apoia o progresso social mas, ao invés vez disso, estiver associada à regressão social. Esta é sem dúvida a razão porque a noção insípida de "governação" é servida como um acompanhamento da retórica vazia dos ODM.
Os autores do documento parecem não ter prestado atenção aos factos. No decorrer das três décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a mais taxa alta de crescimento conhecida na história aconteceu ao mesmo tempo com pleno emprego e notável avanço do movimento social e, se não sempre com redução da desigualdade, pelo menos com a estabilização de estruturas apontava para uma distribuição dos rendimentos mais equitativa. Mas parece que, como os sistemas vigentes naquele tempo regulavam os mercados, estes procedimentos eram "irracionais" e os seus resultados "maus". Ao longo das três décadas seguintes, com a bem-vinda desregulação, houve um colapso de crescimento, um aumento do desemprego de tirar a respiração, a precarização e outras manifestações de pauperização, e um amontoar de desigualdades. Todavia parece que este sistema é ainda assim melhor e mais racional. Isto acontece indubitavelmente porque nos sistemas anteriores a taxa de retorno do capital estava na casa dos 4 a 8 por cento e desde então duplicou para 8 a 16 por cento.
A questão central diz respeito ao conceito de desenvolvimento mantido, explícita ou implicitamente, nos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio. Pode ser formulado desta forma: Nos sucessivos sistemas económicos e políticos globalizados dos tempos modernos, quem foi forçado a ajustar-se a quem? Os sujeitos em causa podem ser classe ou grupos sociais, regiões ou países.
Na lógica capitalista fundada sobre a propriedade privada, é o capital (a firma) que comanda e emprega o trabalho. Os trabalhadores não têm acesso directo aos meios de produção, os quais não são usados para a sua satisfação. Na sua expansão global, o capitalismo está a polarizar, isto é, está fundado no ajustamento assimétrico. As periferias são moldadas para servir o modelo de acumulação dos centros dominantes. A ideologia do capitalismo ignora o conceito de desenvolvimento substantivo, pois reconhece apenas a expansão de mercados.
É significativo que o termo "desenvolvimento" apareça apenas após a Segunda Guerra Mundial (durante o período colonial, a exploração das colónias foi cinicamente excluída), apoiado pelos governos dos estados asiáticos e africanos que surgiram dos movimentos de libertação nacional. Neste sentido, a conferência de 1955 de estados asiáticos e africanos em Bandung foi o local de nascimento do projecto de desenvolver o novo terceiro mundo. Era um projecto multidimensional de modernização: da economia (através da industrialização), da sociedade e do estado. Este projecto de modernização aparece dentro de um tipo de globalização e não é de todo um convite à autarquia económica e cultural. Mas implicava que neste processo o Norte se ajustaria às exigências de desenvolvimento do Sul, desenvolvimento conceptualizado como um "alcançar" (catching up). A globalização neste contexto é pois reconhecida como tendo de ser o resultado – para além dos conflitos – de negociações entre parceiros que reconhecem a divergência dos seus interesses. Na América Latina, o desarrollismo propõe um modelo análogo de desenvolvimento.
A globalização capitalista assenta em alianças sociais transnacionais. Assim, os modelos de acumulação nos centros dominantes e nas periferias dominadas não poderiam ser reproduzidos sem cada um destes passos. O modelo "colonial", desafiado após a Segunda Guerra Mundial, envolveu o comando de sociedades da periferia pelas classes compradoras locais de uma dado tipo (mercadores intermediários, grandes proprietários). O novo modelo resultante da descolonização envolvia reformas sociais que privavam as antigas classes compradoras do seu poder e substituíam por blocos hegemónicos de um novo tipo (populismo nacional). Este modelo é a base dos êxitos (não dos fracassos!) da transformação económica e social do terceiro mundo nos anos 50, 60 e 70. Mas foi sempre combatido – com violência – pelos poderes da tríade imperialista.
A reviravolta da conjuntura política iniciada nos anos 80 trouxe-nos de volta a tempos antigos, antes do desenvolvimento, ao qual na verdade mostrou a porta. É significativo que a nova linguagem da ciência economia dominante abandone mesmo este termo e o substitua por "ajuste estrutural", isto é, ajuste das sociedades e economias do Sul às exigências da busca da acumulação no Norte. Simultaneamente, esta reviravolta no equilíbrio do poder em benefício do capital aparece por todo o lado – tanto no Norte como no Sul – como um fortalecimento da sujeição do trabalho ao capital. O novo liberalismo doutrinário reconhece apenas mercados em expansão, não a deliberada transformação política de estruturas sociais e económicas.
Apesar de imposto com extrema brutalidade sobre as sociedades do Sul, o novo modelo (neocolonial dizem alguns, mas o termo é pobre – é na verdade uma questão de pensamento "paleo-colonial") teve que ser revestido de um discurso que lhe dá aparência de legitimidade. Foi necessário reintroduzir a palavra "desenvolvimento" (como nos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio) mas esvaziando-a de todo significado. Isto foi feito reduzindo-a à luta contra a pobreza e pela boa governação.
Uma série de documentos preparou esta revisão no sentido das palavras. As agências acordaram administrar o resto do mundo (85 por cento da população da terra, as periferias dominadas) através do imperialismo colectivo (a tríade) que preenchia as funções deles esperadas. O Banco Mundial (a que chamo o Ministério de Propaganda do G7) elaborou, neste espírito, documentos aflitivos intitulados Documentos de Estratégia da Redução da Pobreza (Poverty Reducation Strategy Papers, PRSP). O FMI (a autoridade colectiva monetária colonial da tríade) impôs a prioridade do serviço da dívida, a própria dívida sendo o meio de impor ajustamentos estruturais. A OMC, longe de ser um instituição responsável pelo controlo do comércio mundial, está dedicada ao objectivo de moldar os sistemas produtivos das periferias às necessidades da expansão comercial do Norte, isto é, a operar como um ministério colectivo das colónias. A União Europeia – alinhada com a ofensiva geral da tríade imperialista – integra as relações entre a UE e o Grupo de Estados Africanos, das Caraíbas e do Pacífico (ACP) dentro deste mesmo contexto, perseguido literalmente na convenção para o desenvolvimento dos ACP.
Poder-se-ia perguntar por que é que os governos do países do Sul subscreveram todos estes mandamentos delineados nos centros imperialistas. A resposta, em termos gerais, é que deveríamos olhar para os blocos sociais hegemónicos acima mencionados que tornam possível a reprodução da globalização assimétrica. Há uma nova classe compradora nos países da periferia que na verdade deriva a sua existência do novo modelo de liberalismo globalizado. Esta classe compradora participou nos arranjos do novo governo que se seguiram à erosão dos modelos populistas nacionais inspirados por Bandung.
Para ser mais preciso, é possível distinguir, dentre as razões que levaram o Sul a "juntar-se ao liberalismo". Há aquelas que são provavelmente exclusivas dos chamados países emergentes (China em primeiro lugar). Nestes países, os governos presentes vivem de ilusões: pensam em "alcançar" (através de crescimento forte) enquanto estão a ser construídos como as periferias industrializadas do amanhã, e dominados pelos novos monopólios na base dos quais centros imperialista reproduzem o seu domínio (monopólios de tecnologia, acesso aos recursos naturais do planeta, e armas de destruição maciça). Pensam em construir uma "nação forte e independente", mas nessa conexão devem ignorar que os EUA preparam "guerras preventivas" contra eles que não lhes permitirá ter esta oportunidade. À História indubitavelmente será dada a responsabilidade de dissipar estas ilusões.
Aqui darei mais ênfase às lógicas oferecidos em relação às regiões periféricas mais vulneráveis, África em particular. O discurso desenvolvido nesta matéria pelo pensamento dominante é bem conhecido: a África é marginalizada na nova globalização. É por sua própria culpa, tendo afundado num nacionalismo excessivo durante o período de Bandung. Ela só pode ser sair desta difícil situação se aceitar ser "mais integrada" na globalização por uma abertura totalmente descontrolada que permitirá ao capital estrangeiro "desenvolvê-la". As misérias associadas a esta opção, para a qual não há alternativa, será apenas "transitória" e pode ser atenuada por programas de "luta contra a pobreza". Esta opção exigirá, além disso, administração política democrática chamada "boa governação".
Este discurso abunda em contradições e inadequações. A África não está menos integrada na globalização do que outras regiões, mas estava e está integrada de um modo diferente. As formas da nova integração proposta, baseada na especialização agro-mineral, não são novas mas são pelo contrário um retorno ao antigo (paleo-colonial). Estas formas podem apenas acentuar o empobrecimento e exclusão de enormes massas da população, em especial os camponeses. Mas simultânea e independentemente, elas facilitam a pilhagem dos recursos naturais do continente (petróleo, minerais e madeira), que é o principal objectivo do grande capital transnacional em África. Os investimentos estrangeiros directos não virão para África para nada mais.
A responsabilidade das actuais equipas governamentais – e por detrás delas as novas classes compradoras – não devem ser desculpadas. Mas isso não absolve as forças dominantes nos centros imperialistas do sistema global da sua responsabilidade.
A Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (New Partnership for Africa's Development, NEPAD) é sem dúvida parte do novo pensamento liberal, mas parece que não com grande convicção. Deveria ser lembrado que originariamente por trás desta iniciativa estava a recusa justificada do discurso racista "afro-pessimista" e a proclamação por Thabo Mbeki em 1998 de que "os africanos devem e podem apropriar a modernidade", um modo de indicar o renascimento da África a que ele apelava. Mas Mbeki enveredou pelo mesmo discurso de especificar que esta apropriação deveria ser feita "em cooperação com os países desenvolvidos", ignorando, ou pretendendo ignorar, que isso nunca sucedera até então. O NEPAD inclui mesmo no seu título o termo "parceria", usado durante longo tempo pela União Europeia e adoptado, por sua vez, pelo discurso do Milénio das Nações Unidas.
No seu conteúdo, o documento fundador da NEPAD, New Partnership for Africa's Development, NEOPAD) não é de facto muito coerente.(1) Identifica os gargalos que bloqueiam o desenvolvimento em África, que identifica em todos os aspectos da realidade (infra-estruturas e energia, educação e saúde, agricultura familiar e ambiente, e tecnologias modernas, particularmente tecnologia de computadores), dando a impressão de que leva em consideração as práticas hostis do comércio mundial. Mas ao mesmo tempo, o documento alinha com o pensamento liberal dominante: abandona a centralidade da indústria que o Plano Lagos tinha, no seu tempo e com bom razão, tomado como o eixo central do desenvolvimento para este que é o menos industrializado continente da Terra. Adere a um modelo agro-mineral de crescimento (paleo-colonial), e adopta o discurso da redução de pobreza.
Inquestionavelmente ainda mais sério, o documento da NEPAD alinha com o pensamento liberal no discurso da "boa governação". Isto é um conceito que é útil como meio para dissociar o progresso democrático do progresso social, para negar a sua igual importância e conexão inextricável um com o outro, e para reduzir a democracia à boa gestão sujeita a exigências do capital privado, uma gestão "apolítica" por uma sociedade civil anódina, inspirada pela ideologia medíocre dos Estados Unidos. Este discurso aparece no preciso momento em que a interrupção na construção do estado (iniciada no período Bandung) imposta pelo ajuste estrutural criou, não condições para um avanço democrático mas, ao invés disso condições para a mudança em direcção à primazia das identidades étnicas e religiosas (para-étnica e para-religiosa, de facto) que são manipuladas por máfias locais, beneficiam de apoios externos, e muitas vezes degeneram em "guerras civis" atrozes (na verdade conflitos entre senhores da guerra). Como argumenta Bernard Founou-Tchuigoua, é menos uma questão de parceria Norte-Sul (aqui UE/ACP) do que uma nova fase no ajuste estrutural assimétrico.
A exposição dos documentos da NEPAD, as suas hesitações ou carácter anódino, adquire o seu significado neste contexto. Por exemplo, o desejo de aliviar a dívida é expresso, mas isto é feito precisamente porque a dívida cumpriu a sua função de impor o ajuste estrutural. O NEPAD também propõe um desenvolvimento "integrado" (Pan-Africano), tal como a UE, dando preferência a acordos com grupos regionais africanos. Mas, no fim, este documento permanece, tanto quanto as suas propostas sobre comércio, transferências de capitais, de tecnologia e patentes estão relacionadas, alinhado com dogmas liberais.
Direi em conclusão que um sistema deste tipo dificilmente tem qualquer futuro. Nem os ODM nem o NEPAD conseguirão atenuar a seriedade dos problemas e diminuir os processos resultantes da involução política e social. A legitimidade dos governos desapareceu. Assim, estão maduras condições para a emergência de outras hegemonias sociais que tornam possível um renascimento do desenvolvimento concebido como deve ser: a combinação indissociável de progresso social, avanço democrático e a afirmação da independência nacional dentro de uma globalização multipolar negociada. A possibilidade destas novas hegemonias sociais está já visível no horizonte. Aposto que no fim de 2015, ninguém vai propor uma folha de balanço das realizações dos ODM ou da NEPAD, que há muito estarão esquecidos.
Objectivo 1: Erradicar a fome e pobreza extremas;
Objectivo 2: Alcançar a educação primária universal;
Objectivo 3: Promover a igualdade de género e conceder poder às mulheres.
Objectivo 4: Reduzir a mortalidade infantil;
Objectivo 5: Melhorar a saúde maternal;
Objectivo 6: Combater a SIDA, malária e outras doenças;
Objectivo 7: Assegurar sustentabilidade ambiental;
Objectivo 8: Desenvolver uma parceria global com países em desenvolvimento, desenvolver e implementar estratégias para trabalho decente e produtivo para a juventude;
Notas de rodapé:
(1) O documento quadro da NEPAD foi adoptado pela 37ª Cimeira da Organização de Unidade Africana em Julho de 2001 em Lusaca, Zâmbia, e está disponível em http://www.nepad.org/2005/files/inbrief.php (retornar ao texto)