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Primeira Edição: entrevista a Eugênio Bucci, Teoria e Debate, edição nº 1, Dez/1987
Fonte: Teoria e Debate
Transcrição: Alexandre Linares
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Fundador e presidente do CEMAP desde 1981, ele é também militante do Partido dos Trabalhadores. Dentro do Cemap, um dos poucos núcleos que têm como objetivo recuperar a história do movimento operário, Fúlvio Abramo reúne documentos, fotos e depoimentos do passado.
Memória é a especialidade do Centro de Documentação Mário Pedrosa, o Cemap. Memória é, também, a herança viva dos revolucionários das gerações passadas que depositam todo o seu aprendizado na construção do jovem Partido dos Trabalhadores. Memória, por excelência, é o terreno privilegiado da atividade política de Fúlvio Abramo, 78 anos de idade e 60 de combate socialista. Fundador e presidente do CEMAP desde 1981, ele é também militante do Partido dos Trabalhadores. Dentro do Cemap, um dos poucos núcleos que têm como objetivo recuperar a história do movimento operário, Fúlvio Abramo reúne documentos, fotos e depoimentos do passado. Publicou, este ano, em colaboração com o historiador Dainis Karepovs, o livro Na Contracorrente da História (editora Brasiliense), com os documentos mais importantes da primeira organização trotskista brasileira, da década de trinta, que até hoje estavam desaparecidos. Para dentro do PT, ele traz uma vida inteira de luta, uma luta que já é tradição em sua família. O seu avô materno, por exemplo, Bôrtolo Scarmagnan, anarquista ativo, fazia discursos em praça pública ainda quando da greve de 1917, em São Paulo. O seu sogro, por outro lado, o comunista Rudolf Josip Lauff, antes de chegar ao Brasil, havia combatido no Exército Vermelho, e acompanhado o trem comandado por Leon Trotsky, que percorria a vasta extensão da Rússia revolucionária invadida por potências estrangeiras. Em sua casa, nas proximidades da Universidade de São Paulo, onde vive com a mulher, Anna Steffania Lauff, de 74 anos, Fúlvio Abramo concedeu esta entrevista, no início de novembro. Nela, ele fala de memória. Da sua memória política. Da memória política dos trabalhadores brasileiros. Memória, afinal, é o nome da seção que ele vem inaugurar em TEORIA E DEBATE.
Comecemos pelo ano de 1917. Greve Geral no Brasil, vitória da Revolução Bolchevique na Rússia, você, aos 8 anos de idade, entre duas influências: o humanismo de seu pai, Vicenzo, e o anarquismo inflamado de seu avô, Bôrtolo.
Antes eu faço questão de frisar que não falo de minha pessoa, da minha participação pessoal. O que quero focalizar é, através desta minha participação, por modesta que ela tenha sido, as fases da história recente do nosso país e do nosso movimento de esquerda. A influência da educação elitista que meu pai deu a mim e meus irmãos começava pela grande biblioteca que ele sempre colocou à nossa disposição. Desde criança nós tínhamos que aprender a falar e escrever italiano, francês e português, como se fossem nossas línguas próprias. Além disso, no Dante Alighieri aprendíamos muito bem literatura universal, história etc. A Divina Comédia, por exemplo, nós passamos três anos lendo, comentando e estudando. Sem falar nos clássicos latinos e gregos. À parte esta educação clássica e aparentemente conservadora, recebíamos o influxo da participação do meu avô, que era forte dentro da família. Não apenas na minha família, mas também na família da outra filha do meu avô Bôrtolo, a Eginia, que era casada com um socialista italiano chamado Ettore Tommasini. Estavam sempre conosco, com seus filhos Alfio, um moço muito inteligente, que se dedicou precocemente à luta sindical, e o Arnaldo, mais novo. Meu avô, ajudado por seu filho Olindo, era confeiteiro. Uma vez ele juntou muito dinheiro e não achava certo um anarquista ter dinheiro. Então visitou os parentes na Itália, e quando voltou não tinha mais nenhum tostão. Como ele tinha seu próprio negócio, não era sindicalizado, mas era um anarquista superativo, que fazia discursos em praça pública. O último desses discursos que eu vi foi na praça da Sé, acho que em 1926. Ele falou por quase uma hora, naquela mistura de italiano, venetto e português, que realmente mantinha a massa empolgada. Era uma manifestação conduzida pelas centrais sindicais.
E a greve, Fúlvio?
A greve de 17 alterou totalmente o nosso ritmo de vida. Parecia uma revolução dentro da nossa rotina. A gente morava no lpiranga, pertinho do centro das grandes greves das indústrias têxteis dos Jaffé, e das indústrias de móveis. A gente assistiu a diferença entre os dias comuns e os dias de greve. Nós sofremos o bloqueio da cidade, quando o comitê de greve tomou conta da cidade inteira e organizou a distribuição de alimentos para a população. Para nós estes alimentos não chegavam. Passamos quase vinte dias comendo somente pombas — nós tínhamos uma grande criação de pombas — e polenta (risos). Eu me lembro muito bem. Havia falta de tudo, até de bondes. Os bondes não circulavam no lpiranga e muitas vezes passavam colunas de operários organizados pela avenida Independência, onde a gente morava. De repente os bondes voltaram e eu ouvi dizer, já naquele tempo, que os estudantes de Direito do largo de São Francisco tinham tomado a direção dos bondes.
Os estudantes foram lá furar uma greve que não era deles?
Pois é. Anos mais tarde eu vi uma piada que foi publicada no jornal A Platéia, de influência anarquista, e que depois passou a ser de influência comunista. Foi uma piada imortal. Dizia que havia uma greve em perspectiva e que os estudantes de Direito tinham bravamente se voluntariado a substituir os grevistas. A Platéia dizia então que dentro em breve seria declarada a greve das prostitutas e que a Faculdade de Direito já tinha se proposto a substituí-las.
Voltando a seu avô. Ele foi responsável por suas primeiras leituras anarquistas?
Mas é claro. Eu passava boa parte de minhas férias na casa de meu avô, que fazia com que eu lesse pra ele, em voz alta, os velhos anarquistas, como Kropotkin e Bakunin. Eu tinha dez, onze anos. Era uma forma muito inteligente dele fazer a gente se interessar pelo assunto. Como já líamos muito bem o italiano... porque em português não havia nada.
E quando você partiu para os primeiros agrupamentos?
Foi no que eu chamo de segunda fase de minha formação política, a partir de 1924, com a tentativa de golpe da Coluna Prestes. Nessa época eu já começo a discutir política com meu primo Arnaldo o meu irmão mais velho, Athos. Athos era poeta e crítico de teatro. Desde criança, eu e minha irmã Lélia participávamos de um grupinho de teatro do Athos. E foi, aliás, nesse teatrinho que se chamava Apolo, lá no Ipiranga, que minha irmã começou sua carreira de atriz. Bem, mas eu já discutia política com eles, mas naquela ocasião eu não aderi porque tinha certos problemas, coisas que para eles estavam resolvidas e para mim não estavam. De forma que não entrei no grupinho que eles formavam, Athos, Arnaldo, o Alfio e a minha prima Athia, que era uma das mulheres mais bonitas do mundo. Casou-se com meu irmão Athos. São os pais de Perseu Abramo. Pelo nome dela, Athia quer dizer atéia, você já vê. Só mesmo anarquistas para dar um nome desses.
Este grupo já era marxista?
Não. Mas já se interessavam pela Revolução Russa. Mas no Brasil a Revolução Russa teve uma repercussão muito torcida, porque ela não chegava aos militantes de base, diretamente. Ela era apenas acessível pelo que se publicava em espanhol ou então em italiano. Ficou acessível então só para uma pequena elite que sabia ler nestas línguas. Por isso, inclusive, a formação do Partido Comunista no Brasil foi tão prejudicada. Tão prejudicada que os anarquistas pensavam que a revolução era uma revolução anarquista. Tanto que formaram o primeiro partido comunista, formado pelo Leuenroth, e que depois não foi reconhecido pela Internacional — mas foi dos anarquistas pensavam que a Revolução era fundado no Brasil. Tão mal informado eles estavam. Agora: nós não estávamos desinformados.
Mas esse grupo do Athos não tinha relações com o PC reconhecido, o que foi fundado em 1922?
Tinha sim senhor, o Alfio era do PC. Eu é que não queria aderir porque tinha certas discordâncias.
Explique melhor essas discordâncias.
Toda a coisa chegava para nós de uma forma muito esquemática. Naquele tempo não havia análises que chegassem aqui sobre o movimento. Tinha o livro do John Reed, Os Dez Dias que Abalaram o Mundo. Foi uma forma fantástica de comunicação da Revolução com o resto do mundo, mas através do entusiasmo e do sentimento. Circulou entre nós em italiano. Mas eu sempre resisti a aderir por causa da concepção errada da forma que se poderia dar à revolução mundial, e também por causa da burocracia. Isso foi até 1928, quando eu, de uma vez por todas, me defini como contestador da linha do Partido Comunista, antes mesmo de conhecer Lívio Xavier e Mário Pedrosa, e antes mesmo deles romperem com o PC e começarem a sua luta contra a direção. Embora, é verdade, as discussões que eles colocavam viessem desde 1926. Heitor Ferreira Lima já me disse — e isso vou confirmar com ele numa pesquisa que faremos na revista do PC entre 1924 e 1926 — que aqueles problemas levantados pelos documentos trotskistas da década de 30, publicados no livro Na Contracorrente da História, em parte, já eram preocupações publicadas na revista do PC naquele período.
Seus primos e irmãos simpatizantes do PC e só você de fora?
Sim, mas logo eu comecei a influir sobre o Arnaldo, que é da mesma idade que eu. Além disso, o Athos começou a ter problemas com o pessoal do Partido, porque ele era muito inteligente, muito lido, muito informado e não podia aceitar aquelas generalizações primárias do PCB. Nos tínhamos uma cultura muito maior, este é o problema. Ainda que não tivéssemos experiência de luta nenhuma. Pombas, a gente já tinha lido a Ética de Espinosa, já tinha aprendido de cor o primeiro canto da Odisséia, o primeiro canto da Ilíada, em italiano (Fúlvio começa a declamar). Como é que eu podia aceitar aquele livro do Brandão, o chefão do PC, aquele livro que serviu de base para toda a linha do PC até 1930? Entretanto, nunca se pode esquecer, a presença do Partido Comunista não crescia por causa da atividade dos seus dirigentes. Os seus dirigentes, ao contrário, sempre conseguem impedir esse crescimento. A influência, a criação e a formação do PC se devem, antes, à repercussão e à influência da Revolução Russa. A publicidade que a burguesia fazia contra a Revolução encontrava repulsa entre os operários que ainda traziam em grande parte a educação anarquista. A massa operária, até antes da industrialização e de Getúlio Vargas, era, em média, mais esclarecida que a massa atual, do ponto de vista da consciência política. De um modo ou de outro, os anarquistas educaram a massa operária daquele tempo. Educaram e deseducaram de outro lado. Mas eles ensinaram os operários a analisar as atitudes da burguesia. Assim, a propaganda contrária que a burguesia fazia da Revolução gerava o efeito inverso, que desembocava na adesão ao Partido Comunista.
Até 1930, você então contesta sistematicamente o PC. Como foi que isso se desenvolveu?
A Revolução de 30 vai me encontrar num grupo que havia começado comigo, com Aziz Simão, minha irmã Lélia e meu primo Arnaldo, praticamente em 1928, e entramos no Partido Socialista, com mais outras pessoas.
Você já conhecia Trotsky?
Só muito ligeiramente. Eu conhecia mais a crítica de autores que eram partidários de Trotsky, como o iugoslavo Ciliga (que se opôs a Stalin bem antes de Trotsky) e o italiano Bordiga. Em 1929 eu me emprego no Diário, e passo a ter um trabalho político lá dentro. O dono do jornal, Assis Chateaubriand era um homem ultra-reacionário, queria ser o líder da reação, mas quase todos os que trabalhavam lá dentro eram comunistas ou socialistas. E ele gostou de mim. Eu fiz algumas reportagens que ele gostou e então ele ordenou que eu fosse imediatamente promovido a chefe de reportagem. Mesmo assim, nossa principal luta lá dentro era contra ele, o patrão. Lutávamos por salários e contra as horas extras que eram demais.
Que tal o Assis Chateaubriand?
Era um homem inteligente. E nós fizemos do jornal dele o maior jornal daquele tempo. Éramos eu, o Geraldo Ferraz, Miguel Macedo — tudo de esquerda, ele reuniu lá. Depois vieram o Lívio Xavier, os meus irmãos Athos e Lívio Abramo, que fez mais de mil charges, todo mundo. Ele dizia que, no Brasil, burguês era burro, dizia isso todo o dia. Dizia que a revolução burguesa não tinha sido feita, que ele ficava xuxando os capitalistas-idiotas a aprenderem capitalismo, mas eles não aprendiam, e que, assim, o pessoal de esquerda era mais inteligente.
Vocês conseguiram vitórias contra ele?
Algumas. Principalmente nas oficinas, com os gráficos. Naquele tempo a UTG (União dos Trabalhadores Gráficos) reunia gráficos e jornalistas num só sindicato. Foi essa união que fez a grande força do movimento trotskista no Brasil.
Quando é que você conhece Lívio Xavier e Mário Pedrosa e quando é que você se define trotskista de uma vez?
O Lívio Xavier e o Mário eu conheço na redação do Diário.
E ele logo começa conchavá-lo?
Não, quem me conchavou foi o Aristides Lobo, que era um colaborador na redação. Um dia, eu expliquei a ele qual era a situação do meu grupo, discutimos e ele me propôs: "Vamos formar já, entra na Liga já!".
A Liga era a Liga Comunista Internacionalista, a LCI. E aí vocês saíram do PS, onde seu grupo original estava organizado?
Não. A Liga nos autorizou a fazer entrismo no PS. Constituíamos o GB I (Grupo de Base I), da Liga, militando dentro do PS, onde defendíamos abertamente as posições do trotskismo, com autorização do próprio PS. Na verdade não havia razões para sair. Era um partido que a tinha por princípio tentar a união das esquerdas. Era este o ideal do Francisco Geraldo e de Zoroastro Gouveia. O Francisco Geraldo era um tenente da Coluna Prestes que havia rompido com as orientações do PCB. Reuniam-se lá dentro grupos de várias inspirações, desde prestistas até socialistas de direita.
Quantos Grupos de Base havia e quantos militantes formavam o GB 1?
O GB que eu centralizava tinha 12 ou 13 militantes. Todos importantes, que estavam fixados em três sindicatos importantes: a UTG, o Sindicato dos Comerciários e o Sindicato dos Metalúrgicos, com Mário Corleone, de São Caetano. Certa vez fui ajudá-lo numa greve, lá. Foi um episódio engraçado. Eu era mais ou menos diferente de operário, usava gravata, meio pequeno-burguês e tal. Uma velha espanhola chegou na minha frente e começou a xingar "hijo de una puta...." me acusando de policial. Depois eu soube que o filho dela tinha sido preso na greve. Tive que gritar, mostrar panfletos, berrar para convencer a massa que eu não era da polícia. Quase fui linchado, e tive que sair rápido de lá. Mas, voltando, havia mais quatro grupos de base, totalizando, mais ou menos, 50 militantes. O único que fazia entrismo era o nosso.
Quando é que vocês entram para a Liga Comunista Internacionalista?
Em 1930, começo de 1931.
E 1934, na batalha campal da praça da Sé, quando vocês, na direção da Frente Única Antifascista (FUA), colocaram seis mil integralistas pra correr? Sei que o episódio está detalhadamente narrado na publicação comemorativa do cinqüentenário da FUA, editada em 1984 pelo Cemap, mas você poderia resumi-lo em poucas palavras? Como se formou a FUA?
Em 1934, eu tinha brigado com o patrão nos Diários, saí do jornal e fui trabalhar no comércio, numa empresa de transportes. Eu era então o secretário do GB I, perante a Liga, secretário do mesmo grupo perante a direção do PS, e freqüentava muito o Sindicato dos Comerciários, e não era mais da UTG. Lélia era do mesmo sindicato, além de dois dirigentes do Partido Comunista em São Paulo, o Noé Gertel e o Pedroso D'Horta, da juventude comunista. Quando lançamos a proposta de Frente Única contra o fascismo, primeiro ganhamos a UTG, porque a direção era trotskista. Mário Pedrosa, Aristides Lobo e Lívio Xavier militavam lá. Eu e Lélia conseguimos no nosso sindicato compor um grupo minoritário mas muito mais ativo do que o do PCB, que era contra a Frente Única, porque mantinha sua política de aliança com a pequena burguesia. Foram discussões terríveis, mas devo dizer que eu me portei bem, porque ganhei aquela luta contra eles. Foi então que conseguimos reunir cerca de trinta organizações sindicais para a formação da Frente Única.
Qual foi a tática de vocês para dobrar o Sindicato dos Comerciários?
Bem, primeiro nós fizemos na UTG uma reunião menor que conseguiu aglutinar em torno da proposta os socialistas, os trotskistas, alguns grupos e personalidades italianas e duas entidades não sindicais do Brasil. Foi depois disso que, numa reunião nos Comerciários, eu consegui dobrar os comunistas e o presidente do Sindicato — que era um oportunista chamado Américo Paulo Sesti — e convocar a reunião da Frente Única. Foi a partir disso que ela passou a existir. Isso tudo foi em 1933. Eu me tornei o presidente da Frente Única e também de um organismo maior, a Coligação das Organizações Proletários Antiintegralistas, em nome da qual nós passamos a convocar manifestações públicas contra os fascistas, como a comemoração do 12 de maio de 1934. Creio que foi esta a fase mais importante de minha vida política.
Vamos agora para a tarde de domingo de 7 de outubro de 1934, na batalha campal da praça da Sé, onde estava programada uma manifestação que reunia 6 mil integralistas armados. A Frente Única vai até lá e dissolve a manifestação na base do enfrentamento físico e do tiroteio. Quantas pessoas estiveram lá aquela tarde, e quantas morreram?
Só os integralistas eram 6 mil. Armados. Mais os simpatizantes deles, e nós. Eu acho que tinha, no mínimo, umas 30 mil pessoas. Morreram pelo menos seis guardas civis e o militante da juventude comunista, Décio Pinto de Oliveira. Mário Pedrosa foi ferido.
Então o PC aderiu?
Só na véspera. Na última noite, na noite do dia 6, quando não havia como não aderir, por causa da pressão dos militantes de São Paulo, principalmente da juventude comunista. Décio Pinto de Oliveira, que morreu com um tiro na nuca, foi um dos que pressionaram pela adesão da direção do PCB. E Aristides Lobo, da direção da Liga, deixou de aderir e ainda nos denunciou a todos como aventureiros. Depois ele foi expulso, claro.
Vocês foram armados para a praça da Sé?
Não. Não fomos armados. Quem levou as armas para nós foi a minha mulher, Ana, que era operária de uma fábrica de fósforos.
Logo depois disso você foi preso pela primeira vez, não é?
É. O Mário estava ferido e eu fui visitá-lo na Santa Casa. Lá fui preso. Eu fui para o presídio Paraíso. Fiquei apenas 22 dias, mas tive uma infecção seriíssima no dente, que chegou a espalhar-se pelo peito. Fiquei num porão infecto junto com dois militantes do Partido Comunista, que se negaram a falar comigo. Eles podiam falar com os familiares, mas eu estava incomunicável. Só saí de lá porque meu pai conseguiu falar com um deputado estadual, que chegou lá no Paraíso aos gritos e me tirou de lá. Era ninguém menos que Adhemar de Barros. Meu pai sabia que eu estava doente pelo carcereiro e foi aí que o aconselharam a procurar um deputado médico. Adhemar de Barros, veja só.
Mas a sua prisão de um ano e meio foi em 1935, certo?
Foi. Logo que eu saí, em 34, pelas mãos do Adhemar, estava doente, mas a polícia já estava atrás de mim. Aí meu pai achou prudente me esconder, e acabei hospedado na casa de meu tio Olindo, que morava na Penha. Eu estava pronto para ir para o exílio quando fui pego. Saí um ano e meio depois, naquela manobra de Getúlio Vargas de abrir a campanha para a Presidência da República, para a qual Armando Salles Oliveira, que era o então presidente do estado de São Paulo, candidatou-se. Eu não acreditava naquela eleição e nem na manobra do Getúlio, e tratei de exilar-me.
Alguém dentro da Liga achava que a abertura política e as eleições diretas de Getúlio seriam pra valer?
Hylcar Leite. Ele acreditava. Tanto que ele pediu que eu passasse para ele os documentos da Liga que eu guardava comigo. Eu entreguei os documentos a ele, mas acontece que ele foi preso antes de mim, e todos aqueles documentos foram parar na polícia federal. Só muito recentemente é que o Cemap conseguiu recopiá-los.
Há algumas lendas em torno da sua saída para a Bolívia, como a de que você teria caminhado 400 quilômetros a pé em território boliviano. Isso confere?
Eu conto. Saímos a pé de São Paulo, às 5 horas da manhã, para pegar um táxi em Juqueri, disfarçados de camponeses, eu, o Mário e a Inês Besouchet e Fernando Bertollotti. Tudo isso para escapar da polícia. Acontece que em Juqueri, quando eu estava no estribo do táxi, me aparece um agente e pergunta para onde estávamos indo. Toda aquela caminhada para fugir foi em vão. Ele se virou pra mim e perguntou: "Você aí, qualé o seu nome?". Eu não tinha documento e a única coisa que eu tinha no bolso era uma nota de 500 cruzeiros, que vinha com a efígie do Barão do Rio Branco. Então eu respondi "eu sou o Barão do Rio Branco" e passei a nota pra ele. Ele olhou a nota e disse "confere, pode ir!". Fiquei sem nenhum tostão. Em Corumbá, para conseguir entrar na Bolívia, precisamos subornar um cônsul. Era o Sr. Ernesto Monastérios, que depois foi senador, que cobrou todo o dinheiro que tinha o Marino, 400 réis, para nos deixar entrar na Bolívia. Em Corumbá, o que nos salvou foi ter encontrado Miguel Costa Júnior, que está aí até hoje. Ele era da juventude comunista, em São Paulo, e estava escondido em Corumbá, como professor. Ele fez uma coleta, e arranjou dinheiro para nos pagar uma viagem de avião até Roboré. Nós tínhamos o visto de entrada, mas o nosso dinheiro tinha ficado com o cônsul. Naqueles dias, de 1937, o Getúlio tinha acabado de dar o golpe do Estado Novo. Saímos de Corumbá e chegamos a Roboré, na Bolívia, num Junker, um caça da Primeira Guerra Mundial. Foi em Roboré que começou a história dos 400 quilômetros a pé. Lá ficamos uns oito dias e a prefeitura, que tinha ordens para receber os exilados brasileiros, nos deu um carro de boi, muito pequeno, dois bois, arroz, carne seca, sal, laços, fuzil de caça, um fuzil 42 fabuloso, mauser, facas, munição, quatro redes de dormir, e mais alguma coisa, como fósforo, essas coisas. Foi aí que eu fui a pé, de Roboré até Santa Cruz, 400 quilômetros. Era preciso que alguém fosse guiando os bois, à frente do carro. O Marino não podia porque era tuberculoso, tinha que viajar deitado. A Inês era doente, também, tinha alergias terríveis. O Fernando Bertollotti estava com uma luxação no pé, não podia andar. Ele ia sentado, atrás, com os pés para fora, porque no carro não cabiam mais do que duas pessoas deitadas. Era janeiro de 1938. E eu fui a pé, andando 400 quilômetros por 25 dias, até chegar em Santa Cruz.
E qual foi a sua atividade na Bolívia?
Logo arranjei um emprego de cobrador de impostos, tomei-me conhecido em Santa Cruz e conheci a situação do campo. Aí eu propus para o senador da República — o nome dele era Salomon que encontrei em Santa Cruz a construção de uma escola de agronomia. Ele me disse pra fazer o projeto dessa escola, e eu tive a audácia de aceitar a missão. Nesta que veio a se chamar Escola de Agricultura e Veterinária de Santa Cruz de la Sierra, eu dei aula de Botânica e mais tarde fui diretor, até ser expulso da Bolívia em 1946. É que durante os quase dez anos em que estive lá, eu procurei me ligar a grupos de esquerda. O que eu mais fazia era dar aula aos militantes — aulas de marxismo pra formação política. Tive por aluno em 1941, num curso de 12 aulas, um militante que seria presidente da República um pouco mais tarde, o Siles Suazo. Naturalmente, na Presidência da República, ele não aplicou muito o que aprendeu.
Fúlvio, uma pergunta que incomoda a curiosidade de muita gente. Por que, na sua volta para o Brasil em 1946, você não se ligou às organizações trotskistas?
Eu não podia mais entrar na Liga porque o "seu" Hermínio Sacchetta não queria. Ele era da direção estadual do PC em 1934 e havia aderido ao trotskismo. O problema é que eu achava que o trotskismo tinha que fazer política de frente única, tínhamos que ampliar, e não fazer política de caranguejo, de se fechar em si mesmo. Ele chegou a proibir os militantes de falar comigo. Naquele tempo eu chamei o Sacchetta de stalinista às avessas. Aí Paulo Emilio Salles Gomes me convidou para entrar no Partido Socialista que eles estavam formando. Mário Pedrosa já não estava mais na organização, ele havia rompido. Ajudei a fundar o Partido Socialista e formei, lá dentro, ao lado de outros companheiros, um grupo de combate às posições oportunistas de direção nacional.
Antes de generalizar. Você poderia apontar um momento que tenha sido marcado por uma posição importante que o PS assumiu em função do seu combate como militante dentro da estrutura partidária?
Bem, uma coisa que a gente conseguiu e que foi um grande erro foi o apoio à candidatura de Jânio Quadros à Prefeitura de São Paulo. Depois eu fui participar do governo por ordem do Partido Socialista como chefe, de gabinete de Alipio Correia Neto, que era o secretário socialista na prefeitura. Foi depois que eu me tomei diretor do abastecimento. Fiquei um ano como chefe de gabinete e um ano na direção do abastecimento. Uma semana depois de eu ocupar o cargo de diretor, fiz um levantamento e notei que havia uma firma que tinha ganho uma concorrência — que não houve, fajuta — para construir um novo mercado municipal. O mercado velho seria transformado em garagem, da Companhia de Transportes Rodoviários, que era de propriedade do governador Adhemar de Barros. Era uma manobra para favorecer os interesses do Sr. Adhemar, um arquiinimigo de Jânio Quadros naquela época, e também de toda a esquerda. Eu me opus e, depois de muita barulheira, consegui impedir o projeto.
O Adhemar sabia que era você o mesmo jovem que ele tinha tirado do porão da prisão do Paraíso em 1934?
Não. Isso ele foi saber muito tempo depois. Foi quando ele tinha começado a conspirar contra o golpe de 1964. Eu estava na revista Manchete, ele me chamou para dar uma entrevista e já adiantou.
Você já não estava no PS?
Com o golpe de 64 eu, o Gikovate e outros companheiros que combatíamos a direção nacional estávamos perto de derrubá-la. Ou melhor: nós já estávamos a ponto de assumir a direção, quando o advento do golpe e do regime militar terminou por fechar o partido. Mas o Adhemar me deu aquela entrevista que saiu publicada na Manchete e, paralelamente, me adiantou algumas coisas dos planos deles. É claro que o ex-governador sabia muito bem quem eu era, embora ainda não soubesse que era eu naquele porão em 1934. Ele começou me dizendo assim: "Você tem um amigo no Rio de Janeiro..." E eu respondi: "Eu sei, o senhor sabe tudo. O senhor está falando de Bayard Boiteux..." E o Adhemar emendou: "E ele tem dois irmãos almirantes." De fato, Boiteux era meu companheiro no PS, trotskista, e que depois dirigiu a guerrilha de Caparaó. Os dois almirantes, irmãos dele, eram inimigos de 64 desde o primeiro minuto e Adhemar sabia deles também. Meses depois ele me chamou de novo, em 1966. Pediu que eu fosse sozinho. Eu me reuni com ele na avenida São Luís, na casa da amante dele. Ali ele me expôs os seus planos claramente. Disse que 64 tinha implantado uma ditadura que só acabaria quando a gente desse um outro golpe. Disse que era preciso organizar a derrubada do regime militar e me perguntou com que forças eu poderia contar. Eu respondi que não tinha forças, mas tinha possibilidade de contatar outras forças poderosas. "Posso contatar os comunistas e os socialistas com facilidade", eu acrescentei. Ele disse "eu sei, o senhor tem contatos. A minha polícia funcionava no meu tempo". Foi aí que eu contei que era eu que ele tinha tirado da cadeia em 1934 e ele se surpreendeu, pôs a mão na cabeça e se lembrou do caso, satisfeito. "Puxa vida, então era você!"
E os planos golpistas do Adhemar prosseguiram?
Sim, ele marcou uma segunda reunião e pediu pra que eu levasse o Bayard. Eu o chamei e ele trouxe seus dois irmãos almirantes. Nós nos reunimos na outra casa do Adhemar, na própria avenida São Luís. Aí ele achou que nosso plano não combinava com o dele. Nós queríamos democracia, liberdade sindical, ele achou que era ir muito adiante e...
...tirou o time.
É. A gente contribuiu para que o Adhemar desistisse de jogar o país numa nova aventura. "Mas o que vocês estão querendo é uma revolução social!", ele disse no fim da reunião. "Exatamente", nós confirmamos.
E depois... Caparaó, a luta armada. E a luta armada, Fúlvio, que teve participação até de militantes do PS? Você considerou uma forma acertada de luta política?
Muitos militantes do PS participaram, mas eu não apoiei. Eu sabia que não ia dar certo. A gente faz muita coisa que não dá certo. Não dá certo mas faz. Porque sabe que alguma coisa fica. Ficam pelo menos as cinzas que você pode aproveitar como adubo para o futuro. Mas daquilo não poderia ficar nada. Se tivesse sido maior a participação, teria sido muito maior o massacre. O povo tinha aceito sem luta o golpe de 64, sem nenhuma luta! O povo estava completamente desarmado! Eu estava aqui, tinha contato com muitos deles, e discordava. Mas eu já era considerado carta fora do baralho. Depois de tudo isso, eu desacreditei completamente das organizações, inclusive das organizações trotskistas.
Você se afastou...
Eu me afastei. Na realidade, foi uma época muito fecunda para mim. Eu organizei mais de 15 grupos independentes de militantes de base nas favelas da região de Santo Amaro.
Você ia pra lá sozinho, num trabalho individual, espontaneamente...
Espontaneamente. Por uma questão de identidade, de ser o que eu sou. Eu fiquei algum tempo parado e me pareceu excessivamente... vamos dizer, até pecaminoso. Então comecei a tomar contato com grupos de base. No primeiro grupo encontrei um velho companheiro metalúrgico, e com ele organizei aquele grupo numa região chamada Vila Joaniza. Durante esses anos da década de 70 eu fazia isso e tinha contatos espaçados com Mário Pedrosa, que vinha e ficava hospedado aqui ao lado de casa, na residência de meu irmão Cláudio. Mário também não sabia o que fazer — e tinha também uma necessidade compulsiva de fazer política. Num desses encontros, impressionado com a onda de greves do ABC e vendo que tinha surgido um líder de massas, o Mário resolveu escrever uma carta, na casa do Cláudio, endereçada ao Lula e chamou a mim e ao Plínio Mello para aprovarmos a carta, na qual ele propunha a fundação do partido. O Cláudio publicou a carta na Folha de S. Paulo, em 1977. Depois disso, quando nasceu o Partido dos Trabalhadores, eu resolvi suspender toda a minha atividade individual.
E você parte, então, para o trabalho de memória do movimento operário com a fundação do Cemap em 1981.
Certo, eu fiz o Cemap agora, mas antes eu tinha feito, no fim do PSB, a Fundação João Mangabeira, logo após a morte dele, para resistir ao que eu sabia que ia acontecer: a destruição de toda a documentação do movimento operário. Primeiro, todos os livros e documentos ficaram no sítio de Alípio Correia Neto. Mas em 1969 ele se desligou do socialismo e todo o acervo ficou aos cuidados de Edgar Leuenroth, que morreu. O filho de Leuenroth vendeu o material para a Unicamp. Então aquilo que entrou em Campinas levou junto o nosso arquivo, que pertence à Fundação João Mangabeira, que ainda existe. Então foi em duas ocasiões que eu me dediquei à memória do movimento operário. Na criação da Fundação João Mangabeira e, agora, na Presidência do Centro Mário Pedrosa. Acho, sinceramente, que o melhor da minha contribuição à luta dos trabalhadores, hoje, está neste tipo de trabalho. Não me sinto à vontade, não consigo militar muito com os novos militantes. A ética, o senso de disciplina e responsabilidade são diferentes dos meus. Achei então que a melhor coisa a fazer era trabalhar para recuperar a memória do movimento operário. Especialmente o movimento operário que não é o movimento oficial, ou seja, aquele que o Partido Comunista elegeu como sendo o único e verdadeiro.
Inclusão | 16/01/2016 |